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Vários modos de apresentar a regra de Fé
Não há necessidade de fundamentar nosso caso nessa única citação de Santo Irineu, que tem, de fato, sido objeto de numerosos comentários doutos [11], particularmente nos últimos anos; nem trazer à baila testemunhas ao longo das épocas para o pensamento da Igreja no que tange a função de seu Magistério. Nós preferiríamos retornar diretamente ao Concílio do Vaticano para questionar como aqueles sucessores dos Apóstolos procuravam renovar a apresentação do depósito revelado da verdade.
Ao definir a regra de fé, a Constituição Dei Filius (O Filho de Deus) aproveitou a oportunidade para tornar definitivo o procedimento duplo para a apresentação doutrinal, à qual os fiéis estão obrigados a responder crendo na verdade a eles apresentada em nome de Deus.
Deve-se, pois, crer com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra divina escrita ou transmitida pela Tradição, bem como tudo o que a Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos propõe a crer como revelado por Deus. [12]
O depósito revelado pode ser apresentado de duas maneiras. Ele pode consistir em um juízo solene cercado pelas garantias necessárias para protegê-lo contra qualquer equívoco, que em si mesmo pronuncia conclusiva e infalivelmente sobre o objeto da Fé.
Mas este método de apresentação, às vezes chamado o Magistério extraordinário, é apenas uma ocorrência excepcional. Ele é mais comumente usado para responder a um erro, colocar fim a uma controvérsia [13] ou, quando a intenção é evitar antecipadamente toda dúvida possível, solenemente pronunciar que uma verdade já admitida torna-se agora um dogma de fé.
A maioria das verdades que se deve crer é proposta pelo Magistério Ordinário [14] da Igreja.
Este não consiste em uma proposição isolada, pronunciando-se irrevogavelmente sobre a Fé e contendo suas próprias garantias de verdade, mas em um conjunto de atos que podem concorrer ao comunicar um ensinamento.
É o procedimento normal pelo qual a Tradição, no sentido pleno do termo [15], é transmitida; foi praticamente o único procedimento conhecido nos primeiros séculos, e também é o que mais geralmente alcança todo o conjunto de cristãos.
O Magistério Ordinário, assim como o juízo solene, igualmente demanda crença na doutrina proposta. Portanto, ambos carregam segurança contra o erro. Se faltasse esta certeza, com efeito, ninguém estaria obrigado a lhe dar seu assentimento leal, isto é, a aderir a ele na autoridade da verdade suprema [16]. Considerados do ponto de vista de obrigar a crença, esses dois métodos de exposição são apresentados pelo Concílio como equivalentes, ao menos na obrigação moral de crer. Ninguém pode, de fato, suspender a crença no que lhe é revelado de maneira certa: mas não é apenas aquilo que é definido como tal que é revelado certamente, mas tudo que é manifestadamente ensinado como tal pelo Magistério Ordinário da Igreja. A nota teológica de heresia tem de ser aplicada não apenas ao que contradiz uma verdade revelada, mas também ao que conflita com uma verdade claramente proposta pelo Magistério Ordinário [17].
Continua…
[11] Além do artigo de Bostein (vide nota 9) c.f.: R. Jacquin, “Le témoignage de Saint Irenée sur l’Eglise de Rome”, in L’Anne Theologique IX, (1948) pp. 95; C. Mohrmann, “About Irenaeus Adv. Haer.” 3, 3, I, em Vigiliae christianae III, (1949) pp. 57; R. Jacquin, “Comment comprendre ‘ab his qui sunt undique’ dans le texte St. Irénée sur l’Eglise de Rome.” Revue Sr. XXIV. (1950) pp. 72; F. Sagnard, O.P., “Irénée de Lyon, Contre les Hérésies, Livre III,” Sources chrétiennes, 34, (Paris-Lyon, 1952).
[12] CL. c. 252 bc. Latin text — nesta tradução, usada a versão portuguesa publicada pela Associação Cultural Montfort em http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=concilios&artigo=vaticano1&lang=bra.
[13] Non pro veritate cognoscenda erant necessariae synodi generales, sed ad errores reprimendos” CL, c 397 Be; isto é: “Sínodos gerais (assembléias eclesiásticas) não são necessários para conhecer a verdade, mas para reprimir erros”.
“Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que estando contidas, pelo menos implicitamente, no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia”. (Papa Pio XI, Mortalium Animos, 6 de janeiro de 1928).
Pe. H. de Lubac, Catholicisme, (Paris, 1938) p. 241, descreve o caráter do Magistério Extraordinário como “ocasional, fragmentário e normalmente mais negativo que positivo”.
[14] “Esse modo de expor a doutrina (visto em si mesmo) é aquele encontrado na profissão e pregação eclesiástica normal e permanente”. J.B. Franzelin, relatório ao Concílio do Vaticano sobre o esboço da constituição dogmática”, CL c. 1611.
[15] Cf. M.L. Guérard des Lauriers, op. cit. 1, p. 298.
[16] Cf. ibid. t. II p. 151, nota 661;
[17] Segundo H. Dezinger, Enchiridion Symbolorum, (1921) prefácio p. 7; e B.H. Merkelbach, in Angelicum, T. VII, (1930) p. 526. Cf. também: Código de Direito Canônico, cânones 1323 e 1325.