O Vaticano II é um problema?

Aproxima-se o congresso dos Franciscanos da Imaculada sobre o Concílio Vaticano II como concílio pastoral [ndr: na realidade, o congresso ocorreu no fim de semana passado], em um clima ardente e um crescente debate,  sinal de que aqui reside um problema combinado com uma esperança. Deseja-se destacar a verdadeira natureza do Concílio, o que o Concílio desejou ser, algo frequentemente incompreendido, para fazer do Vaticano II ou o único concílio dogmático do cristianismo ou um “concílio-meteorito”, podendo assim simplesmente descartá-lo. Até pouco tempo, o simples pensamento de poder colocar-se criticamente diante do Vaticano II parecia como uma cripto-heresia pela cortina de silêncio, que necessariamente devia reinar, que o cobria apenas com elogios e louvores. No entanto, depois de mais de quarenta anos, deparamo-nos com um fato inegável: prevaleceram a ruptura e o espírito do Concílio, isto é, aquele modo de descontextualizá-lo da Tradição bimilenar, e a Igreja, lenta e progressivmente,  foi secularizada. O mundo, em certo sentido, venceu a Igreja; aquele mundo que a Igreja quis alcançar de todo modo. O Vaticano II é um problema? Sim, no sentido de que as raízes da inspiração pós-conciliar não estão apenas no pós-concílio. O pós-concílio não causou-se a si mesmo. Logo, é necessário tomar a causa de examinar a raiz do problema, por amor à Igreja e pelo futuro da fé no mundo.

Trata-se de uma questão muito sutil e delicada, que requer atenção e precisão. Obviamente, não partilhamos daquela excessiva dogmatização do Vaticano II pelo simples fato de ser um Concílio Ecumênico, que visa defender o Concílio das duras invectivas do tradicionalismo avançado. Os problemas da ruptura não são reconhecíveis apenas depois do Concílio, mas dentro do próprio Concílio e, se quisermos, em uma teologia que já havia sido delineada no pré-concílio: a teologia que preferia o método das ciências humanas e da filosofia moderna (Rahner é um exemplo) em vez do método metafísico-escolástico.

Ora, as questões que surgem e exigem uma resposta clara são duas:  por que prelaveceu a ruptura? E onde se encontra o pretexto para dogmatizar a ruptura?

A ruptura prevaleceu apelando para uma escassa clareza dogmática presente no Concílio, pelo fato, óbvio, de se pôr como concílio pastoral, mas que, necessariamente, quer e deve abordar também problemas e fatos doutrinais. Desejou-se progredir a doutrina da fé, mas com um discurso pastoral: reapresentar um discurso dogmático, como havia sido anteriormente, era considerado anacrônico. Isso se vê, por exemplo, na renúncia integral dos esquemas já preparados.

O preferir uma aproximação mais discursiva no lugar da metafísica e a pastoral originária do Concílio são dois elementos necessários para compreender o sentido geral dos 16 documentos conciliares (que são distintos e a cada um se deve aplicar um princípio hermenêutico apropriado) e a possibilidade de interpretá-los sub-repticiamente, quando não lidos à luz da Tradição perene da Igreja e, infelizmente, justificar esta pretensão em nome do Concílio.

Em seguida vem a segunda questão. Se seria possível se fundamentar no Vaticano II para formular mesmo doutrinas errôneas ou para trair o magistério, dado que os documentos, enquanto formulados com uma abordagem de tipo pastoral e não para definir uma doutrina de fé ou moral, se deixam ver, quando de fato absolutizados, como um patrimônio se sustenta por si, como o modo novo de dizer a doutrina de sempre. Aqui se esconde outro grande problema: a palavra “pastoral” sofreu uma profunda evolução, tornando-se, em alguns teólogos, a maneira prática de mudar, com uma nova linguagem, com uma nova teologia, a maneira de expor a doutrina e, finalmente, a própria doutrina. A pastoral lida, no entanto, de um modo completamente novo e mesmo revolucionário tornou-se a medida da teologia, que muda em razão das épocas e dos tempos: isso teria sido justificado pelo Concílio. Obviamente, quando se dobra o Concílio — que se prestaria a isso somente se exilado de seu contexto e da Tradição — aos desejos de aggionarmento, e não de piedade cristã e da fé pessoal, mas da fé entendida como um depósito que evolui e pode mudar. A sua razão é a entrada da categoria “história” no estabelecimento da Revelação. A fé, assim, vem subordinada ao “evento Vaticano II”, terminando por crer no evento mais que na Igreja-mistério.

De tudo isso resulta que o Concílio Vaticano II (como qualquer outro concílio) tem de ser interpretado (até mesmo o dogma deve sempre ser lido corretamente). Mas para uma interpretação correta são necessárias, basicamente, três coisas: 1) ter em conta a natureza pastoral do concílio e, portanto, um progresso ou regresso doutrinal, quando o novo é entendido como ruptura; 2) ter em conta o teor dos documentos do Concílio: os documentos como um todo são expressão de um magistério solene e ordinário autêntico; infalível apenas em reflexo, quando se recorda uma doutrina já definida ou uma doutrina definitiva sendo conservada, cuja segurança é expressa pelo próprio magistério. O progresso dogmático do Concílio Vaticano II, que pode indicar uma eventual continuidade/descontinuidade, deve ser avaliado à luz da teologia e medido com os instrumentos teológicos, pelo fato de estarmos diante de um magistério ordinário e não definitório. A teologia neste caso atua como serva do Magistério; 3) é necessário, enfim, contextualizar o Vaticano II, lendo também o contexto histórico que o afetava: a crise modernista do início do século XX; o grande desenvolvimento teológico e o novo método usado em teologia, nem sempre, todavia, em conformidade com o sentir da Igreja; a passagem da modernidade à pós-modernidade como crise dos próprios apogeus conquistados pela razão iluminada e pela vontade de se rebelar contra qualquer instituição — a contestação entrou também na Igreja  — com a revolução cultural de 68. É necessário ter em consideração, em outras palavras, um mundo que mudou forte e drasticamente, já diferente daquele presente no Concílio e predito na análise da Gaudium et Spes. Daí a necessidade de uma análise crítica que seja construtiva para uma adequada interpretação do fato conciliar. A Igreja não começa com o Concílio, mas com Jesus Cristo. A regra última da avaliação da fé, na verdade, não é o Concílio, mas a Tradição da Igreja. O Concílio traz um progresso na compreensão da fé, é claro, mas não altera a Igreja. Se a Igreja mudou não é em razão do Concílio em si, mas de uma visão errada da “conciliaridade” e, por conseguinte, da própria Tradição da Igreja. A Igreja convocou e aprovou este Concílio assim como o fez com os outros 20 que lhe precederam.

Isso significa, portanto, que o progresso é inegável, mas todo progresso, no entanto, marca também um certo regresso, em razão das falsidades e erros que se pode ocultar. Trata-se de examinar de modo crítico os pontos onde estas falsidades podem  ter se infiltrado, para depois fazer um atento exame hermenêutico do Vaticano II à luz da fé sempre. É isso o que nos propomos fazer com o nosso congresso.

Pe. Serafino M. Lanzetta, FI (Franciscano da Imaculada).

Fonte: Approfondimenti di “Fides Catholica” – Tradução: Fratres in Unum.com

14 comentários sobre “O Vaticano II é um problema?

  1. “O Concílio traz um progresso na compreensão da fé, é claro, mas não altera a Igreja…”

    Esta afirmação pareceu-me um tanto deslocada no texto!

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  2. O texto parece eximir o Vaticano II do desastre pós-conciliar, não vendo nexo entre o evento e seus desdobramentos.
    Pois eu vejo nexo entre o Vaticano II e o espírito de Assis, entre o Vaticano II e as visitas às sinagogas, entre o Vaticano II e o beijo herético e escandaloso do Corão.
    Eis aí a verdadeira interpretação do Vaticano II. O resto é blablá e conversa mole para boi dormir.
    Bento XVI pretende que Assis, Sinagoga e beijo do Corão, tenha o respaldo da tradição da Igreja.

    Não é preciso ser teólogo para recusar tal pretensão.
    Os intelectuais laicos do mundo de hoje afirmam com razão que o Vaticano II marca uma ruptura. E o próprio Bento XVI, quando cardeal, dizia que Gaudium et Spes é o anti-syllabus.

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  3. Seu João, lê de novo vai: “O Vaticano II é um problema? Sim, no sentido de que as raízes da inspiração pós-conciliar não estão apenas no pós-concílio. O pós-concílio não causou-se a si mesmo. Logo, é necessário tomar a causa de examinar a raiz do problema, por amor à Igreja e pelo futuro da fé no mundo”

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  4. Façam um esforço de boa vontade. O texto não partiu da FSSPX, nem de nenhum instituto ED. Veio de um membro de uma ordem jovem, que gradativamente tem adotado o rito tradicional como o seu rito próprio. Mais, eles têm publicado livros sobre a crise atual que muitos tradicionalistas não publicam (e sequer se dão o trabalho de ler). Ver um grupo como esse organizar um congresso e afirmar na sua apresentação que houve uma ruptura, e que ela não está no pós-concílio apenas, é algo simplesmente grande.

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  5. Para o autor, o problema está no pós-concílio. Este não foi causado pelo Vaticano II e, sim, por outros fatores. Se houver problema no Vaticano II, este será saber como um concílio tão magnífico como o Vaticano II foi sucedido por um desastre tão grande. Como pôde o beato João XXIII errar em suas profecias?
    Onde está o enigma se o Vaticano II foi uma bênção para a Igreja?
    Sinceramente, não tenho paciência com tanta conversa mole pra boi dormir.

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  6. Pérai, temos dois joões aqui? O segundo (1:23 pm) parece-me mais um joão teimoso parecido com outros juckens, lampedusas e etc que aparecem por aqui, rsrsrs.

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  7. Paulo, esse exemplo do João é comum na Igreja de hoje. Isso é algo até genérico, isto é, acontece aos membros da Igreja continuamente.

    Aliás, é que acontece com alguns comentários que lemos aqui neste blog também, embora eles deveriam ter conciência que trata se de um blog “tradicionalista”.

    O católico atual não sabe de nada, mas ele mesmo assim dá piteco em tudo…

    Eu lembro da minha época de coro lá em meados dos anos de 1995. Nós nos encontrarmos para ensaiar somente, acho que era nas quartas e sextas; sempre, todavia, aparecia gente do próprio grupo com pesados problemas de casa.

    Daí, com muita conversar, percebemos que esse povo não tinha catecismo algum para superar as dificuldades. Assim, fomos forçados a dar mais o nosso tempo para evangelizar o nosso próprio povo do nosso grupo com a Bíblia e o terço, em vez de nos concentrarmos a perfeiçoar mais nos ensaios…

    Por isso, em outro comentário, eu escrevi que o católico deve buscar sempre a eternidade, quer dizer, ele mesmo sabe que tudo neste mundo é passageiro. Isso, segundo os místicos, significar desapegar de tudo.

    Se Deus nos dá cruzes, Ele deseja dizer que sem cruzes o católico não se salva e nem chegará a seu fim último que Deus mesmo deseja.

    Portanto, quando vemos pessoas escandalidas principalmente com as críticas dos conhecidos “tradicionalistas” (que faço parte também), é porque não tem Fé madura, ou, no mínimo, não há nenhuma mesmo.

    Certa vez, li um blog, que se diz na linha tradicionalista, que tal pessoa responsável pelo mesmo ficou depressiva por causa da opinião de Bento XVI sobre os presevativos.

    Ora, tal pessoa nunca foi “tradicionalista”. Além disso, ela se alto condenou dizendo que sua vida foi somente uma mentira…

    Por isso, a Fé não tem lugar para romancistas e nem aos mornos (Ap. 3 – 15) para a via de fato da vida cristã.

    E o Vaticano II é um exemplo disso.

    Eu desejo a todos os católicos, por caridade, a refletirem isso que escrevi.

    E, sabendo que esse blog vai entrar em recesso brevemente por causa das festas, desejo a todos os amigos da Fé (da Tradição realmente) um Feliz e Santo Natal e Santo ano novo!

    Eu fico por aqui neste ano de 2010. Até a próxima, se Deus quiser.

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  8. Eu não acho o Vaticano desastroso não.
    Creio que foi um dos melhores concílios da história.

    Pena que fizeram muita besteira depois em nome dele, mas é tudo falso isso o que eles dizem.

    Que o Beato João XXIII e Dom Lefebvre nos abençõe!

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  9. O senhor João me deixou até confuso com essa interpretação pessoal dele sobre o texto (risos).

    Os senhores Paulo e Eduardo têm razão da crítica sobre ele.

    O Vaticano II, conforme disse claramente o texto, é raiz de todo o problema pós conciliar.

    Deste modo, o senhor joão é um defensor da “hermenêutica da continuidade”…

    Ferretti, feliz Natal e Feliz Ano Novo!

    Agora sim, eu fico por aqui.

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  10. O discurso é um avanço, é elogiável e poderia ser do Papa. Aí, estaríamos bem. Há alguma prudência a mais, mas mostra que quer capturar a realidade, ainda que não a tenha capturado totalmente. Vemos que temos choques entre gerações. Meu irmão mais velho é de 1946, do pós-guerra, e eu de 1963, do ano de abertura do concílio. Consigo perceber as diferenças entre as marcas em cada geração. A juventude do meu irmão não queria autoridade alguma, rejeitava toda espécie de pai ou poder patriarcal. Tinha sofrido com a guerra e, agora, queria o prazer, a farra sem culpa. Sobretudo, a culpa se tornou odiada e a penitência ou a cruz era a sua consequência mais estúpida. Abraçaram Freud como substituto da necessidade de um pai e de uma cruz. Já a minha geração quis ou quer o pai de volta. Tem-no como herói exatamente por saber limitar e mostrar a inteligência do limite. Já não tem neura com a culpa e sabe que a cruz é de uma sabedoria insuperável enquanto ferramenta que sacraliza a utilidade do sofrimento para a sua própria superação e um proveito tal para, sempre com a graça divina, cada um ser remetido a algo muito além das condicionantes. Minha geração quer que tudo seja ordenado de volta em direção a Deus. Sabemos que toda ideologia pode promover uma ditadura pelas armas ou pelo dinheiro. Sabemos que, não importa a orientação, o poder tende a relativizar em benefício próprio e a silenciar seus críticos. São como crianças tentando organizar uma casa na ausência dos pais. Uma sempre vai tirar em cima da outra. Outra coisa que sabemos, e esta está relacionada com o Concílio, é que não adianta ordenar em baixo, entre leigos, filhos ou ovelhas, se tudo permanece desordenado lá em cima, sem a distinção extintiva do mal que cabe à cabeça, ao líder, ao pai e ao pastor. Não temos e não queremos condição de fazê-lo sem ele, que é o vigário de Cristo e o papa-rei. Portanto, para mim, o pior do concílio foi a colegialidade e a transferência ao sentir plural e desorientado dos leigos.

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