Debate pós-Universae Ecclesiae [III]: A eficácia do rito “ordinário”.

Estamos apresentando uma série de artigos para desenvolver um debate sadio e respeitoso na sequência da publicação da Instrução Universae Ecclesiae. A caixa de comentários estará aberta aos que desejarem contribuir exclusivamente com argumentos, i.e., sem ofensas, provocações ou zombarias.

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Pelos padres do Priorado Padre Anchieta, FSSPX

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Padre Antonio Pino Caiazzo, pároco da Arquidiocese de Crotone e Santa Severina (Itália)

Não são poucos os que insistem, talvez de boa-fé, que a missa nova é tão católica quanto a missa que chamamos tridentina, e isso se vê refletido no modo habitual de falar com a já conhecida expressão “rito ordinário-extraordinário”. Mas, como já se disse no artigo anterior sobre o tema, detrás da missa nova achamos uma outra teologia que não pertence ao depósito da revelação e que lhe é estanha; tal teologia é chamada pelos seus mesmos criadores de Mistério Pascal. Já não é possível negar a existência desta teologia posto que os mesmos papas, começando por Paulo VI até o atual a reconhecem abertamente e a consideram o primeiro princípio da liturgia. Como o MP não é uma idéia única, mas um sistema completo de pensamento, é necessário estudá-lo por partes à luz da doutrina católica para que aos poucos nos vá revelando seus secretos pensamentos.

Vamos agora tocar um ponto neurálgico do dito sistema, e que à sua vez é também centralicíssimo na missa católica e que é o modo como se realiza o sacrifício dentro dela. Ensina Pio XII: No altar há uma imolação incruenta “com sinais exteriores, que são signos de morte, já que, graças à ‘transubstanciação’ do pão no Corpo e do vinho no Sangue de Cristo, assim como está realmente presente seu Corpo, também o está seu Sangue; e dessa maneira as espécies eucarísticas, sob as quais Ele se acha no altar há uma imolação incruenta, simbolizam (figurant) a cruenta separação do Corpo e do Sangue” (DzH 3848). Todo católico sabe que o fato da transubstanciação ocorre por uma única razão: o poder sacerdotal conferido na ordenação dos Apóstolos na última ceia (fazei isto) e que, geração após geração, a Santa Igreja guardou e distribuiu aos que o mesmo Senhor chamava (vocação). Em resumidas contas: a missa é o que é por que tem sacerdote, e ponto final.

Mas, oh surpresa! O MP não pensa assim, a missa é missa por uma razão completamente diferente. Vejamos: Jesus e os apóstolos, inseridos no contexto cultural do AT e totalmente impregnados de sua espiritualidade, não podem ser compreendidos senão a partir dele. Os novos teólogos têm de voltar-se, pois, para a Páscoa judaica, a fim de entender a natureza íntima da Eucaristia. Pois bem, dizem-nos[1], o ritual da antiga Páscoa era essencialmente comemorativo, em razão do triplo objeto que tinha: Israel recordava a libertação milagrosa do Egito, dando graças a Deus com cânticos de ação de graças — com uma “eucaristia” — por sua intervenção a favor de seu povo. Mas, prosseguem eles, não se tratava de simples memorial de uma ação passada: essa recordação não era exclusivamente subjetiva; também fazia com que Deus se lembrasse de seu povo, tornando-se, deste modo, presente no meio dele para renovar o efeito salvador de sua ação passada: “Na noite de Páscoa, não só Israel se recorda de Javé e de suas ações salvíficas, mas também Javé se recorda de Israel e de seus devotos. Esta recordação por parte de Javé significa, em correspondência com as concepções bíblicas e do judaísmo tardio, um certo tornar-se presente de Deus e um certo atualizar-se de sua salvação”[2]. O memorial era, pois, objetivo, ou seja, atualização e anúncio da Aliança diante de Deus e diante dos homens. Mas os judeus sabiam que esta Aliança celebrada estava em via de realizar-se: Israel esperava a vinda do Messias. Assim, concluem, o rito da Páscoa tomava uma terceira dimensão, profética e escatológica. Comemoração de uma ação salvadora passada, anúncio e celebração eucarística da Aliança presente, e profecia da plenitude futura: tal era, segundo eles, a Páscoa judaica.

Assim, pois, ao instituir a Eucaristia durante o banquete Pascal, Cristo teria assumido o rito da Páscoa antiga, e este só nos é descrito em sua dimensão comemorativa; portanto, a missa é considerada antes de tudo como “memorial do Senhor”[3] Como já vimos, o memorial judeu tinha a característica de fazer com que Deus estivesse novamente presente e de atualizar sua salvação; era um memorial objetivo e não uma simples comemoração psicológica. O mesmo sucede com a Eucaristia: não é uma simples recordação, senão que torna a fazer presentes os atos salvadores de Cristo que comemora: “[A celebração eucarística] é, portanto, um memorial objetivo, e não só (conquanto naturalmente o seja) uma recordação subjetiva do que o Senhor fez por nós. Em outras palavras: é um memorial real, não só mental; não uma recordação meramente conceitual, não uma nuda commemoratio, como definiu o Concílio de Trento contra Lutero”[4]

Esta ação, para que não se interprete como exteriorização de uma recordação subjetiva, terá de ser, por natureza, comunitária, social, e dizer, sem povo não teremos missa. Seguindo sempre o princípio da continuidade comemorativa estabelecida entre a Páscoa nova e a antiga, será um banquete, pois Jesus Cristo instituiu o memorial eucarístico durante uma refeição ritual judaica: “A idéia fundamental [na Missa da Igreja primitiva] foi sempre comemorar num repasto sagrado a paixão redentora do Senhor. Por isso aparece em primeiro plano a estrutura de uma ceia. […] Aquele banquete não era uma refeição ordinária, e sim sagrada, santificada e espiritualizada não só pela comemoração a que se referia, e que se realizava sacramentalmente, mas também porque ficava sublimado até o trono mesmo de Deus, em virtude das orações que se diziam”[5].

Antes de concluir este minúsculo artigo, vai uma pequena fofoca para o leitor: Este padre Jungmann que mencionamos na nota 6 e que nos ensina “como realmente foi o conceito da missa na igreja primitiva e que depois foi perdido na idade média” foi lido por todos os bispos que chegaram ao CV II, posto que na Espanha pós-Guerra Civil o General Franco doava para a BAC o papel da impressão e assim o custo era baixíssimo e o alcance, enorme.

Não sei se o caro leitor foi seguindo o fio da meada nesta densa explicação, mas em definitivo o que se nos está dizendo é que a virtude (força) de nossa missa depende da virtude da páscoa judaica; é lógico, pois, que sejam os nossos irmãos maiores. Existe um ponto significativo: O vocabulário da Institutio generalis Missalis romani. Nela não aparece nem uma só vez a palavra “transubstanciação”, nem sequer a expressão “presença real”.

O magistério infalível da Igreja não tolera esta omissão e a qualifica de: “perniciosa, derrogando à exposição da verdade católica a respeito do dogma da transubstanciação, favorecendo os hereges” (DzH 2629)

Se há um sacrifício verdadeiro, e não simplesmente o signo de um sacrifício, não é pela objetividade do memorial, mas porque a transubstanciação faz que estejam realmente presentes o corpo e o sangue da divina Vítima.

Então, caro irmão na Fé, já é hora de purificar a nossa linguagem católica. Chamemos o rito ordinário da Igreja latina de missa Tridentina e à outra de extraordinária falsificação!

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Fonte das imagens: sanpaolokr.com


[1] Cf. Salvatore Marsili, “La misa, misterio pascual y misterio de la Iglesia”, em La sagrada liturgia renovada por el Concilio, dirigida por G. Barauna, Studium, Madri, 1965, pp. 468-470 (Marsili foi fundador do Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo); Pietro Sorci, artigo “Misterio Pascual”, NDL, p. 1362.

[2] N. Füglister, citado por Neunheuser, artigo “Memorial”, NDL, p. 1262 a. Cf. Louis Bouyer, Eucaristia, Herder, 1969, p. 96.

[3] Quando o Catecismo de 1992 dá os nomes do sacramento da Eucaristia (CI 1328-1332), agrega a cada denominação (Eucaristia, banquete do Senhor etc.) uma explicação que começa com a conjunção “porque” ou com a conjunção “pois”. Mas, quando lhe dá o nome de “memorial” (CI 1330), afirma-o simplesmente como tal: “Memorial da Paixão e da Ressurreição do Senhor”. É portanto, segundo o Catecismo de 1992, o nome que convém mais propriamente a este sacramento.

[4] Burkhard Neunheuser, artigo “Memorial”, NDL, p. 1267 b.

[5] Joseph-André Jungmann, El sacrificio de la Misa, 4ª edição [tradução corrigida], BAC, 1963, p. 38. (Jungmann era membro do Consilium). Cf. Romano Guardini, Besinnung vor der Feier des hl. Messe, Mogúncia, 1939, p. 76; Henri-Marie Féret, La messe, rassemblement de la communauté, coleção Lex orandi, Cerf, Paris, 1947, pp. 226 ss.

7 comentários sobre “Debate pós-Universae Ecclesiae [III]: A eficácia do rito “ordinário”.

  1. Concordo e não concordo ao mesmo tempo!

    O então Cardeal Ratzinger explicou sobre toda a questão do “Mistério Pascal”, ele disse que o verdadeiro problema é que o Lutero afirmou na Idade Média está sendo “proclamado” dentro da Igreja!

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  2. Compartilho, claro que a título de pensamento pessoal, dos elementos fundamentais da visão apresentada no artigo acima acerca da ordinariedade do rito tridentino, o que não se confunde com amplitude usual deste. Do ponto-de-vista jurídico ambas as formas são de fato ordinárias; a distinção parece ser mais nominal e em vista da amplitude usual maior ou menor. Creio que dentro de algumas décadas tenhamos um retorno à teologia plenamente católica sobre a Santa Missa, que levará a um resgate da divulgação da forma impropriamente chamada de “extraordinária”.
    Vem à minha mente o que tenho refletido recentemente: a rapidez das mudanças fez com que certos textos do Vaticano II ficassem obsoletos, como no caso da Sacrosanctum Concilium, por exemplo. As reformas foram todas aplicadas pelo beato João Paulo II, gerando toda sorte qualitativa de resultados.
    A mudança de paradigma provocada pela aplicação do Vaticano II mais mudanças antropológico-culturais mundiais deve levar cada vez mais a Igreja a buscar nos elementos perenes dos Concílios dogmáticos a fonte para posteriores reformas, estas sim, numa hermenêutica da continuidade.
    Um ponto fundamental para que o uso da forma tradicional, – talvez excetuada a realidade da FSSPX e comunidades “irmãs”, com uma restrição justificada por sua identidade e missão – seja mais aplicado, é torná-la conhecida dos leigos, inclusive os influenciados pelo pentecostalismo e pelo marxismo, a fim de que, percebendo a superioridade qualitativa da mesma, peçam-na aos seus pastores e, se necessário, exijam o que lhes é um direito.
    A percepção dos novos paradigmas eclesiais é um bom motivo para uma reforma litúrgica, canônica e catequética, com base nos dogmas, que ficaram encobertos pela preocupação em usar a linguagem do mundo, que não se fez mais cristão. O trabalho não é de um novo concílio pastoral, que não necessitamos mais no futuro da Igreja, mas por outros meios, como um Sínodo, que teria, a meu ver, substituído muito mais proveitosamente o Vaticano II.

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  3. A pergunta que não quer calar: A bula “Quo Primum Tempore”, de São Pio V, foi abrogada pela constituição “Missal Romano” de Paulo VI?

    “…decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas…”

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  4. Onde está a verdade?….Pobre leigo que se perde pelas encruzilhadas de Roma; onde antes havia apenas uma estrada larga e sem curvas….agora ninguém sabe qual a direção certa…….Onde está a verdade ?
    Ontem mesmo eu li: A missa na formaordinária do Rito Romano, tal como foi promulgada pela suprema autoridade da Igreja, celebrada dentro das corretas normas litúrgicas, é católica, ortodoxa e válida na sua eficácia sacramental como veículo da Graça Divina, podendo, portanto , ser participada e celebrada legitimamente.

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  5. Só uma dúvida. Algum bispo poderia exigir de certo grupo interessado na missa no rito “extraordinário” que este participe primeiramente da missa no rito ordinário, e só depois conceder a missa no rito trindentino, para comprovar que os interessados não tem restrições a missa nova? Ou em outra situação se o mesmo grupo disser nada ter contra o Novo Rito e o considerar o mesmo bispo não poderia argumentar dizendo: Então porque vocês querem a missa em latim e no rito antigo?

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  6. Não posso tecer comentários com conteúdo teológico pois não tenho formação para isto, mas posso dizer de meu entusiasmo e minha surpresa ao ler um trabalho tão eloquente e convincente sobre a heterodoxia da missa nova. Já vi inúmeros artigos, comentários esparsos, as 62 razões, etc. Mas como este ainda não tinha visto. Parabéns.

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  7. Sinto-me por vezes sem fim perdida! Mas gostaria imensamente de assintir a missa no rito extraordinário, e fazer minhas comparações. Pois não é sem argumentos que Adélia Prado escreveu ” Sai da Missa com vontade de rezar”. Quantas vezes sai da Missa assim, com vonade de rezar. Creio que o problema não está no Novos Ordo Missae, e sim no Presidente que o executa. Cada vez mais, os sacerdotes querem impor a sua vontade, dar a sua cara, seu toque pessoal a Celebração, e querem por querem fazer a assembleia segui-lo. Um dia vc faz a oração do Pai Nosso desta forma, outro dia é de outro, Um dia te convidam a rezar e co-celebrar com o Padre, outro dia não pode! Um dia pode bater palmas, outro não pode! Nós leigos não sabemos de fato o que é certo e o que é errado. Concordo também com dz que os documentos do CVII se tornaram obsoletos, mas creio que SC sequer foi colocada em prática, em seu par. 36 diz ” não se exclua o latim” vejo sacerdeotes com horror a ele, e até fazem chacota da Missa celebrada assim, ” santa ignorancia”, as palmas por exemplo, não fazem parte do rito, mesmo que seja inculturizado, e lá vão as pessoas batendo palmas… o próprio sacerdote as estimula… As pessoas , com certeza, não sabem de forma alguma que estão celebrando o SACRIFICIO, que Cristo, na pessoa do sacerdote oferece a DEUS, e não ao povo, pois se assim fosse , não estariam batendo palmas e dançando no calvário, como bem lembra o Padre Pio. Por isso , tenho sérias dúvidas se quando estou reunida com minha comunidade, estou mais comentendo pecados, ao fazer estas observações ou aproveitando das graças do SACRIFICIO de Jesus…
    E , outra coisa, as pessoas não tem a menor noção da correlação entre a Páscoa Judaíca e Páscoa de Cristo, na Páscoa Judaíca, eles realmente trazem aquele momento de volta, o mesmo cordeiro, a fam´lia em torno da mesa, o lavar das mãos do Pai da fam´lia, as quatro perguntas feita pelo filho caçula, as ervas amargas, o pão sem fermento. E, Cristo, judeu, sabendo que desta forma poderia perpetuar Seu SACRIFICIO para sempre a partir de algo que os apóstolos conheciam e saberiam executar muito bem, inteligentemente usou da Ceia Páscal judaica para estabeecer Sua Nova Aliança, o que não dá para entender é como podem reduzir a ceebração a simples banquete, como se nos reunissemos em torno da “mesa” e não do altar onde Jesus foi imolado, para “comer” o Corpo de Cristo, e não adorar, e posteriormente inuirmos a Ele atravez do recebimento de Seu Corpo e Sangue.

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