
Apesar de nosso recesso, publicamos para documentação o comunicado da Casa Geral da Fraternidade São Pio X e as duas cartas trocadas entre os bispos sagrados por Dom Lefebvre. Fazêmo-lo apenas após elas já terem circulado web afora e o comunicado não contestar sua autenticidade.
Sobre o assunto, Dom Fellay declarou hoje à Catholic News Service: “Há algumas discrepâncias na Fraternidade. Não posso descartar que poderia haver uma divisão”. “Creio que o passo do Santo Padre é genuíno. Não parece ser uma armadilha. Assim, temos que olhá-lo muito cuidadosamente e, se possível, seguir adiante”. “As coisas não terminaram. Precisamos de algum entendimento razoável de que a estrutura proposta e as condições são viáveis. Não vamos cometer suicídio ali, isso é muito claro”. “Pessoalmente havia desejado esperar um pouco mais para ver as coisas mais claramente, mas, novamente, parece realmente que o Santo Padre quer que aconteça agora”. “Se vemos algumas discrepância dentro da Fraternidade, definitivamente há também (divisões) na Igreja Católica”.
Comunicado da Casa Geral da Fraternidade São Pio X
Um intercâmbio de correspondência privada entre o Superior Geral da Fraternidade São Pio X e os três bispos foi difundido pela internet em 9 de maio de 2012. Tal procedimento é condenável. Quem não respeitou a confidencialidade deste correio interno pecou gravemente.
Tal publicação encorajará os causadores de divisão. A Fraternidade São Pio X convida tanto os sacerdotes como os fiéis a responder aos mesmos unicamente por meio da oração redobrada, para que somente se faça a vontade de Deus, para o bem da Igreja e a salvação das almas.
Menzingen, 11 de mio de 2012.
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Carta ao Conselho Geral da FSSPX
7 de abril de 2012
Senhor Superior Geral
Senhor Primeiro Assistente
Senhor Segundo Assistente
Depois de alguns meses, como muitos dizem, o Conselho Geral da FSSPX considera seriamente as propostas romanas com vista a um acordo prático, sendo um fato que as discussões doutrinárias entre 2009 e 2011 têm provado que um acordo doutrinário é impossível com a Roma atual. Por meio desta carta, os três bispos da FSSPX que não fazem parte do Conselho Geral desejam fazer-lhes saber, com todo o respeito que convém, a unanimidade de sua oposição formal a qualquer acordo semelhante.
Claro, de ambos os lados da divisão atual entre a Igreja Conciliar e a FSSPX, muitos desejam restaurar a unidade católica. Honramos a essas pessoas, tanto de uma parte como de outra. Mas a realidade dominante, e diante da qual todos esses desejos sinceros devem ceder, é que, desde o Concílio Vaticano II, as autoridades oficiais da Igreja se afastaram da verdade católica e, hoje em dia, elas se mostram tão determinadas como sempre foram a permanecerem fieis à doutrina e à prática conciliares. As discussões romanas, o preâmbulo doutrinal e Assis III são exemplos impressionantes.
O problema colocado aos católicos pelo Concílio Vaticano II é profundo. Em uma conferência que parece ter sido como que o último testamento doutrinal de Monsenhor Lefebvre, dada aos sacerdotes de sua Fraternidade em Ecône meio ano antes de sua morte, depois de ter resumido a história do catolicismo liberal saído da Revolução Francesa, ele lembrou como os Papas sempre combateram essa tentativa de reconciliação entre a Igreja e o mundo moderno, e declarou que o combate da Fraternidade contra o Vaticano II era exatamente o mesmo combate, concluindo:
“Quanto mais se analisam os documentos do Vaticano II e sua interpretação pelas autoridades da Igreja, mais nos damos conta que não se trata de erros superficiais nem de alguns erros particulares, como o ecumenismo, a liberdade religiosa, a colegialidade, mas antes uma perversão total do espírito, de toda uma filosofia nova fundada no subjetivismo… Isso é muito sério! A perversão total!… Isto é verdadeiramente espantoso”.
Agora, o pensamento de Bento XVI é melhor em comparação ao de João Paulo II? Basta ler o estudo de um de nós sobre La Foi au Péril de la Raison [A Fé Posta em Perigo pela Razão – Mons. Tissier de Mallerais] para perceber que o pensamento do Papa atual é igualmente impregnado de subjetivismo. É toda a fantasia subjetiva do homem no lugar da realidade objetiva de Deus. É toda a religião católica submissa ao mundo moderno. Como se pode acreditar que um acordo prático possa corrigir um problema desses?
Mas, nos diriam, Bento XVI é bondoso para com a Fraternidade e sua doutrina. Por ser um subjetivista, ele pode ser bondoso, porque os liberais subjetivistas podem tolerar a própria verdade, mas não se ela se recusar a tolerar o erro. Ele [o Papa] nos aceitará no contexto de um pluralismo relativista e dialético, sob a condição de permanecermos em “plena comunhão” com a autoridade e com as outras “realidades eclesiais”. Eis por que as autoridades podem tolerar que a Fraternidade continue ensinando a doutrina católica, mas não suportarão de forma alguma que ela condene a doutrina conciliar. Aqui está o motivo por que um acordo, mesmo puramente prático, faria necessária e progressivamente calar, por parte da Fraternidade, toda crítica ao Concílio ou à nova missa. Deixando de atacar essas vitórias, que são as mais importantes da Revolução, a Fraternidade cessaria necessariamente de se opor à apostasia universal de nossa lamentável época e afundaria a si mesma. Em última análise, quem vai nos garantir que permaneceremos tal qual somos, protegendo-nos da Cúria Romana e dos Bispos? O Papa Bento XVI?
Por mais que se negue, este resvalamento é inevitável. Não se veem já na Fraternidade os sintomas dessa diminuição na confissão da Fé? Hoje em dia, infelizmente, é o contrário que seria “anormal”. Um pouco antes das consagrações de 1988, quando muitas pessoas valentes insistiam junto a Monsenhor Lefebvre para que fizesse um acordo prático com Roma que abriria um grande campo de apostolado, ele disse seu pensamento aos quatro consagrandos: “Um grande campo de apostolado pode ser, mas na ambiguidade e seguindo duas direções opostas ao mesmo tempo, o que acabaria por nos apodrecer”.
Como obedecer e continuar a pregar toda a verdade? Como fazer um acordo sem que a Fraternidade apodreça na contradição?
E quando, um ano mais tarde, Roma parecia fazer verdadeiros gestos de benevolência para com a Tradição, Monsenhor Lefebvre ainda desconfiava. Ele temia que isso não fosse nada mais que “manobras para tirar de nós o maior número possível de fiéis. Eis aqui a perspectiva pela qual parecem ceder ainda um pouco mais e ir ainda mais longe. Devemos absolutamente convencer nossa gente de que isso nada mais é do que uma manobra, que é perigoso se colocar nas mãos dos bispos conciliares e da Roma modernista. É o maior perigo que ameaça a nossa gente. Se nós lutamos há 20 anos para resistir ao erro conciliares, não foi para nos colocarmos, agora, nas mãos daqueles que professam erros”.
Conforme Mons. Lefebvre, o propósito da Fraternidade, mais do que denunciar os erros pelo seu nome, é opor-se eficaz e publicamente às autoridades romanas que os difundem. Como se poderia conciliar um acordo e uma resistência às autoridades públicas, entre as quais o Papa? E, depois de ter lutado por mais de quarenta anos, a Fraternidade deverá agora colocar-se nas mãos dos modernistas e liberais dos quais acabamos de constatar sua pertinácia?
Monsenhor, padres, prestem atenção, vocês conduzem a Fraternidade a um ponto sem retorno, a uma profunda divisão sem volta e, se vocês chegarem a um tal acordo, à poderosas forças destrutivas que Ela não irá suportar. Se até agora os bispos da Fraternidade a têm protegido é precisamente porque Mons. Lefebvre rejeitou um acordo prático. Dado que a situação não mudou substancialmente; e visto que a condição pronunciada pelo Capítulo de 2006 não se realizou (mudança de rumo por parte de Roma que permita um acordo prático), ouçam novamente a seu Fundador. Ele tinha razão há 25 anos. Ainda tem razão hoje. Em seu nome, vos conjuramos: não comprometam a Fraternidade em um acordo puramente prático.
Com as nossas mais cordiais e fraternas saudações, em Cristo e Maria,
Dom Alfonso de Galarreta
Dom Bernard Tissier de Mallerais
Dom Richard Williamson
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Carta de Dom Fellay aos outros bispos da Fraternidade São Pio X
Menzingen, 14 de abril de 2012
A NN. SS. Tissier de Mallerais, Williamson et de Galarreta.
Excelências,
A vossa carta coletiva dirigida aos membros do Conselho Geral recebeu toda a nossa atenção. Agradeço-vos por vossa solicitude e a vossa caridade.
Permiti-me, de minha parte, no mesmo intuito de caridade e de justiça de vos fazer as seguintes observações.
Em primeiro lugar, a carta menciona a gravidade da crise que agita a Igreja e analisa com precisão os erros que pululam no ambiente. Mas a descrição contém dois defeitos em relação à realidade da Igreja: falta-lhe o sobrenatural e, ao mesmo tempo, carece de realismo.
Falta-lhe, sobretudo, o sobrenatural. Lendo-a, acabamos por nos questionar seriamente se vós acreditais ainda que a Igreja visível, cuja Sé está em Roma, é a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo; uma Igreja certamente desfigurada de um modo horrível, a planta pedis usque ad vertice capitis, mas uma Igreja que, de qualquer forma, ainda tem como cabeça Nosso Senhor Jesus Cristo. Tem-se a impressão de que estais tão escandalizados que não aceitais mais o que ainda pode ser verdade. Para vós, o Papa Bento XVI é ainda Papa legítimo? Se o é, Jesus Cristo ainda pode falar por sua boca? Se o Papa expressa uma vontade legítima em relação a nós, que é boa, que não dá uma ordem contra os mandamentos de Deus, temos o direito de negligenciar, de mandar de volta esta vontade? E, caso contrário, sobre qual princípio vos embasais para agir assim? Não acreditais que, se o nosso Senhor nos comanda, também nos dará os meios para continuar o nosso trabalho? Bem, o Papa nos fez saber que a preocupação de regular a nossa situação para o bem da Igreja estava no coração de seu pontificado, e também que sabia que seria mais fácil para ele e para nós deixar a situação assim como ela está agora. Portanto, é uma vontade decidida e justa a que ele expressa.
Com a atitude que preconizais, não há mais lugar para os Gideões nem para os David, nem para todos aqueles que contam com a ajuda do Senhor. Vós nos recriminais de sermos ingênuos e de termos medo, mas é a vossa visão da Igreja que é humana demais e, também, fatalista; enxergais apenas os perigos, os complôs, as dificuldades, não enxergais mais a assistência da graça e do Espírito Santo.
Se se quer aceitar que a Providência divina conduz os assuntos dos homens, deixando a eles a liberdade, é preciso aceitar que as ações destes últimos anos em nosso favor estão sob sua orientação. Agora indicam uma linha, não completamente reta, mas claramente a favor da Tradição. Por que de repente essa linha cessaria, se fazemos de tudo para manter nossa lealdade e acompanhamos os nossos esforços com uma oração comum? O bom Deus nos abandonaria no momento mais crucial? Isso não faz muito sentido. Especialmente, não devemos procurar de impor uma nossa própria vontade qualquer, mas procuremos enxergar através dos acontecimentos o que Deus quer, estando dispostos a tudo, como Ele quiser.
Ao mesmo tempo, carece de realismo tanto no que respeita a intensidade dos erros quanto à sua amplitude.
Intensidade: na Fraternidade está-se tratando os erros do Concílio como se fossem super-heresias, torna-se como o mal absoluto, pior de tudo, da mesma forma como os liberais têm dogmatizado este concílio pastoral. O males já são dramáticos o suficiente sem que se precise exagerá-los ainda mais (cf. Roberto de Mattei, Uma história nunca contada, p. 22; Mons. Gherardini, Um discurso ainda a fazer, p.53, etc.). Não há mais qualquer distinção. E Mons. Lefebvre fez várias vezes as distinções necessárias acerca do liberal. (1) Esta falta de distinção leva um ou outro de vós a um endurecimento “absoluto”. Isto é grave, porque esta caricatura não está mais na realidade e logicamente irá resultar em verdadeiro cisma no futuro. E provavelmente esse é um dos argumentos que me leva a não mais demorar em responder às exigências de Roma.
Amplitude: de uma parte se atribuem às autoridades atuais todos os erros e todos os males que se encontram na Igreja, ignorando o fato que estas procuram, pelo menos em parte, livrar-se dos mais graves (a condenação da “hermenêutica da ruptura” denuncia erros bem reais). Por outro lado, se pretende que TODOS estejam enraizados nesta pertinácia (“todos os modernistas,” … “todos podres”). Ora, isso é manifestamente falso. Uma grande maioria foi arrastada no movimento, mas não todos.
No ponto da questão mais crucial de todos, sobre a possibilidade de sobreviver nas condições de um reconhecimento da Fraternidade por parte de Roma, nós não chegamos à mesma conclusão vossa.
Que seja registrado que NÓS NÃO TEMOS BUSCADO um acordo prático. Isso é falso. Nós não recusamos, a priori, de considerar a oferta do Papa, como vós pedistes. Para o bem comum da Fraternidade, nós preferíamos muito mais a solução atual de status quo intermediário, mas claramente Roma não tolera mais isso.
Em si, a solução proposta, da Prelatura pessoal, não é uma armadilha. O que emerge disso, acima de tudo, é que a situação apresentada em abril de 2012 é muito diferente daquela de 1988. Pretender que nada mudou é um erro histórico. Os mesmos males afligem a Igreja, as consequências são ainda mais graves e evidentes do que naquele tempo; mas, ao mesmo tempo, pode-se contatar uma mudança de atitude na Igreja, ajudada pelos gestos e atos de Bento XVI em relação à Tradição. Este novo movimento, nascido pelo menos há uma década, vai se fortalecendo. Ele alcança um bom número (ainda uma minoria) de jovens sacerdotes, de seminaristas e também um pequeno número de Bispos jovens, que se distinguem claramente de seus antecessores, que expressam sua simpatia e seu apoio, mas que são, ainda, silenciados pela linha dominante da hierarquia em favor do Vaticano II. Esta hierarquia está perdendo velocidade. Isto é objetivo e mostra que não é mais ilusório considerar um combate “intramuros”, da duração e da dificuldade de que somos conscientes. Pude constatar em Roma como o discurso sobre as glórias do Vaticano II que se via repetindo constantemente, se ainda está nos lábios de muitos, no entanto não está mais em suas cabeças. São cada vez menos as pessoas que acreditam nisso.
Esta situação concreta, com a solução canônica proposta, é bem diferente da de 1988. E, quando comparamos os argumentos que Mons. Lefebvre defendia na época, concluímos que ele não teria hesitado em aceitar o que hoje nos é proposto. Não percamos o sentido da Igreja, que era tão forte em nosso venerado fundador.
A história da Igreja mostra que a cura dos males que a afetam habitualmente ocorre gradualmente, lentamente. E quando um problema acaba, há outro que começa… oportet haereses esse. Pretender de esperar até que tudo seja resolvido para chegar ao que vós chamais de acordo prático não é realista. É muito provável que, vendo como as coisas se desenvolvem, o fim dessa crise levará ainda décadas. Mas, se recusar a trabalhar no campo porque ainda há erva daninha, que ameaça abafar, calar a erva boa, encontra curiosamente uma lição bíblica: é o próprio Nosso Senhor que nos faz compreender, com sua parábola do trabalhador, que sempre haverá, de uma forma ou de outra, ervas daninhas para arrancar e combater em Sua Igreja…
Não podeis imaginar quanto, nesses últimos meses, a vossa atitude – muito diferente para cada um de vós – foi dura para mim. Isso tem impedido o Superior Geral de vos comunicar e vos tornar partícipes destas grandes preocupações, às quais ele vos teria associado de boa vontade, se não tivesse se confrontado com uma incompreensão tão forte e apaixonada. Como teria desejado contar convosco, com vossos conselhos, para apoiar essa passagem tão delicada de nossa história. É uma grande provação, talvez a maior de toda a sua função. Nosso venerado fundador deu aos Bispos da Fraternidade uma responsabilidade e deveres precisos. Ele mostrou que o princípio que na nossa sociedade faz a unidade é o superior geral. Mas, já há algum tempo, vós tentais, cada um de forma diferente, de impor-lhe o vosso ponto de vista, até mesmo sob a forma de ameaças, inclusive publicamente. Essa dialética entre verdade/fé e autoridade é contrária ao espírito sacerdotal. Ele, pelo menos, teria esperado que vós buscásseis compreender os argumentos que o impelem a agir como agiu nos últimos anos, segundo a vontade da divina providência.
Nós rezamos por cada um de vós, para que nesse combate que está longe de terminar nos encontremos juntos, para a maior glória de Deus e por amor a nossa cara Fraternidade. Que Nosso Senhor Ressuscitado e Nossa Senhora se dignem de vos proteger e abençoar.
+ Bernard Fellay
Niklaus Pfluger
Alain-Marc Nely
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1. “Não é porque um papa é um liberal que não existe (…). Devemos permanecer em uma linha firme, e não nos perder no curso das dificuldades que vivemos. É tentador, de fato, recorrer a soluções extremas e dizer: “Não, não, o Papa não é apenas liberal, o Papa é herético! O Papa talvez seja mais do que herético, portanto não há um Papa!”. Isso não é correto. Não é porque alguém é liberal que é necessariamente um herege e que, consequentemente, está fora da Igreja. É preciso fazer as necessárias distinções. Isto é muito importante para ficarmos em um caminho seguro, para permanecermos na Igreja. Se não, para onde iremos? Não há mais um Papa, não há mais cardeais, porque, se o Papa não fosse Papa quando nomeou os cardeais, os cardeais não poderiam nomear um Papa porque eles não são cardeais. E então? É um Anjo do céu que nos trará um Papa? É um absurdo! E não é apenas um absurdo, é perigoso! Por que então seriamos levados, talvez, a soluções que são verdadeiramente cismáticas” (Conferência em Angers, 1980). Ver também Fideliter n. 57, p.17, sobre os limites a guardar.