Por Rorate-Caeli | Tradução: Fratres in Unum.com
Excelência e caros irmãos Padres da Fraternidade São Pio X,
Nossa recente declaração (28 de outubro de 2012) afirmou em público e com autoridade que as relações da Santa Sé com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X permanecem abertas e esperançosas. Até agora, com exceção de seus pronunciamentos oficiais, a Santa Sé, por diversas razões, absteve-se de corrigir certas afirmações imprecisas a respeito de sua conduta e competência nestas relações. Aproxima-se rapidamente, no entanto, a hora em que, em benefício da verdade, a Santa Sé será obrigada a tratar de algumas dessas imprecisões. São particularmente dolorosas as afirmações que impugnam o múnus e a pessoa do Santo Padre e que, em algum momento, demandariam alguma resposta.
Declarações recentes de pessoas que ocupam posições significantes de autoridade dentro da Fraternidade não podem deixar de causar preocupação sobre as possibilidades reais de reconciliação. Pode-se pensar, em particular, nas entrevistas dadas pelo Superior do Distrito da Alemanha (16 de outubro de 2012), e um recente sermão do Superior Geral (1 de novembro de 2012). O tom e o conteúdo destas intervenções deram causa a uma certa perplexidade sobre a seriedade e, de fato, a própria possibilidade de conversações francas entre nós. Enquanto a Santa Sé espera pacientemente por uma resposta oficial da Fraternidade, alguns de seus superiores empregam uma linguagem, em comunicações extra-oficiais, que a todo o mundo dá a impressão de rejeitar as próprias condições, assumidas como ainda em estudo, que são exigidas para a reconciliação e regularização canônica da Fraternidade dentro da Igreja Católica.
Ademais, uma revisão da história de nossas relações desde a década de 70 nos leva à preocupante compreensão de que os termos de nossa divergência acerca do Concílio Vaticano II permaneceu, com efeito, inalterada. Com autoridade magisterial, a Santa Sé tem sistematicamente sustentado que os documentos do Concílio devem ser interpretados à luz da Tradição e do Magistério, e não vice versa, enquanto a Fraternidade tem insistido que certos ensinamentos do Concílio são errôneos e não são, portanto, suscetíveis de uma interpretação em linha com a Tradição e o Magistério. No decorrer dos anos, esse impasse permaneceu mais ou menos em vigor. Os três anos de diálogos doutrinais recém concluídos, embora tenham permitido uma frutuosa exposição de pontos de vistas sobre assuntos específicos, não alterou fundamentalmente essa situação.
Nessas circunstâncias, enquanto a esperança permanece forte, é claro que algo novo deve ser inserido em nossas conversações se não quisermos parecer, diante da Igreja e do público em geral, e, de fato, a nós mesmos, como que engajados em um intercâmbio de boas intenções, mas interminável e estéril. Algumas novas considerações de natureza mais espiritual e teológica são necessárias, considerações que transcendem as importantes, mas aparentemente intratáveis divergências sobre a autoridade e interpretação do Concílio Vaticano II que agora nos divide, considerações que focam antes em nosso dever de preservar e cultivar a divinamente desejada unidade e paz da Igreja.
Parece oportuno que eu vos deva apresentar essas novas considerações na forma de uma carta pessoal para o Advento, assim como aos membros da Fraternidade Sacerdotal. Nada menos que a unidade da Igreja está em jogo.
A Preservação da Unidade da Igreja
Neste contexto, as palavras de São Paulo vêm à mente: “Exorto-vos, pois, – prisioneiro que sou pela causa do Senhor -, que leveis uma vida digna da vocação à qual fostes chamados, com toda a humildade e amabilidade, com grandeza de alma, suportando-vos mutuamente com caridade. Sede solícitos em conservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que atua acima de todos, por todos e em todos” (Efésios 4:1-6).
Com estas palavras, o Apóstolo Paulo nos admoesta a manter a unidade da Igreja, unidade que é dada pelo Espírito e que nos une ao único Deus “que atua acima de todos, por todos e em todos” (Ef. 4:1-6). A verdadeira unidade é um dom do Espírito, não algo que nós mesmos fazemos.
Todavia, por nossas ações e decisões somos capazes de cooperar na unidade do Espírito, ou agir contra as sugestões do Espírito. Portanto, São Paulo nos exorta a “uma vida digna da vocação à qual fostes chamados” (Ef. 4:1), a viver de forma que possamos preservar este precioso dom da unidade.
A fim de perseverar na unidade da Igreja, Santo Tomás de Aquino observa que, segundo São Paulo, “quatro virtudes devem ser cultivadas, e seus quatro vícios opostos evitados” (Comentário à Carta aos Efésios §191). O que se põe no caminho da unidade? Orgulho, cólera, impaciência e zelo desordenado. Segundo Santo Tomás de Aquino, “o primeiro vício que [S. Paulo] rejeita é o orgulho. Quando uma pessoa arrogante decide governar outros, e outros indivíduos não querem se submeter, surge a dissensão na sociedade e a paz desaparece… A cólera é o segundo vício. Pois uma pessoa encolerizada é inclinada a impor a injúria, verbal ou física, da qual ocorre as perturbações… O terceiro é a impaciência. Ocasionalmente, alguém que pessoalmente é humilde e suave, privando-se de causar problemas, todavia, não suportará, pacientemente os males, efetivos ou tentados, feitos contra si… Um zelo desordenado é o quarto vício. Desordenadamente zeloso sobre tudo, os homens emitem juízos sobre tudo o que vêem, não esperando o tempo e o lugar adequado; e a confusão surge na sociedade” (ibid).
Como superaremos estes vícios? Diz São Paulo: “com toda a humildade e amabilidade, com grandeza de alma, suportando-vos mutuamente com caridade” (Ef. 4:2).
Segundo Santo Tomás, a humildade, ao reconhecer a bondade nos outros e conhecendo perfeitamente nossas próprias forças e fraquezas, nos ajuda a evitar disputas em nossas relações com outros. Mansidão “abranda argumentos e preserva a paz” (Comentário à carta aos Efésios, §191). Ela nos ajuda a evitar demonstrações desordenadas de ira aos nos dar a serenidade de fazer o que somos chamados em espírito de tranquilidade e paz. A paciência nos permite suportar o sofrimento quando necessário para o bem que buscamos, especialmente no caso de um bem difícil e árduo ou quando as circunstâncias externas militam contra a realização do objetivo. A caridade expulsa o zelo desordenado ao nos permitir suportar uns aos outros na caridade, “suportando-vos mutuamente com caridade” (ibid). Santo Tomás aconselha: “Quando alguém cai, não deve ser corrigido imediatamente — exceto se for o tempo e o lugar para tal. Com misericórdia, eles devem ser aguardados, uma vez que a caridade suporta todas as coisas (1 Cor 13:7). Não que essas coisas sejam toleradas por negligência ou consentimento, nem familiaridade ou amizade carnal, mas por caridade… Agora, nós que somos mais fortes devemos suportar as enfermidades dos fracos” (Rom 15:1).
O conselho prudente de Santo Tomás pode nos ser útil se nos permitirmos ser formados por sua sabedoria. Nos últimos quarenta anos, houve, por vezes, uma falta de humildade, mansidão, paciência e caridade em nossas relações mútuas?
Consideremos estas palavras que o Papa Bento XVI escreveu a seus irmãos bispos para explicar por que ele promulgou o Motu Proprio Summorum Pontificum : “Olhando para o passado, para as divisões que no decurso dos séculos dilaceraram o Corpo de Cristo, tem-se continuamente a impressão de que, em momentos críticos quando a divisão estava a nascer, não fora feito o suficiente por parte dos responsáveis da Igreja para manter ou reconquistar a reconciliação e a unidade; fica-se com a impressão de que as omissões na Igreja tenham a sua parte de culpa no facto de tais divisões se terem podido consolidar. Esta sensação do passado impõe-nos hoje uma obrigação: realizar todos os esforços para que todos aqueles que nutrem verdadeiramente o desejo da unidade tenham possibilidades de permanecer nesta unidade ou de encontrá-la de novo” (Carta de 7 de julho de 2007).
Como as virtudes da humildade, mansidão, paciência e caridade podem moldar nossos pensamentos e ações? Primeiro, no esforço de reconhecer a bondade que existe nos outros com quem podemos divergir, mesmo em assuntos aparentemente fundamentais, nós podemos abordar os assuntos contestados em um espírito de abertura e boa-fé. Segundo, ao praticar a verdadeira mansidão, podemos manter um espírito de serenidade, evitando a introdução de um tom divisivo ou afirmações imprudentes que ofenderão, em vez de promover a paz e a compreensão mútua. Terceiro, pela verdadeira paciência reconheceremos que em nossos esforços pelo árduo bem que procuramos, nós devemos desejar, quando necessário, aceitar o sofrimento na espera. Finalmente, mesmo quando ainda sentimos a necessidade de corrigir nossos irmãos, deve-se fazê-lo com caridade, no momento e lugar adequados.
Na vida da Igreja, todas essas virtudes são buscadas ao preservar “a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef. 4:3). Se nossas relações são marcadas pelo orgulho, cólera, impaciência e zelo desordenado, nossa busca desenfreada pelo bem da Igreja não levará a nada senão à amargura. Se, por outro lado, pela graça de Deus nós crescemos na verdadeira humildade, mansidão, paciência e caridade, nossa unidade no Espírito será mantida e cresceremos profundamente no amor a Deus e ao nosso próximo, cumprindo toda a lei de Deus para nós.
Colocamos tal ênfase na unidade da Igreja porque ela reflete e é constituída pela comunhão da Santíssima Trindade. Como nós lemos em um sermão de Santo Agostinho: “Tanto o Pai como o Filho desejaram que tivéssemos comunhão tanto com eles como com nós mesmos; por este dom que ambos possuem como um, eles desejaram nos reunir e fazer de nós um, isto é, pelo Espírito Santo que é Deus e o dom de Deus” (Sermão 71.18).
A unidade da Igreja não é algo que alcançamos por nós mesmos, por nossas próprias forças, mas um dom da divina graça. É reconhecendo este dom que Agostinho pode dizer: “Mas aquele que é inimigo da unidade não tem parte no amor de Deus. Aqueles, portanto, que estão fora da Igreja não têm o Espírito Santo”. (Epístola 185 §50). São palavras assustadoras: quem é inimigo da unidade se torna inimigo de Deus, pois rejeita o dom que Deus nos concedeu. “Que prova existe de que amamos a fraternidade?”, pergunta Santo Agostinho. “Que não rompamos a unidade, porque nós mantemos a caridade” (Homilia sobre a Primeira Carta de João, 2.3). Ouçamos o que Agostinho tem a dizer àqueles que dividem a Igreja: “Vós não tendes caridade porque, por vossa honra, causais divisões na unidade. Compreendei disso, então, que o espírito é de Deus… Vós estais vos retirando da unidade universal, estais dividindo a Igreja com cismas, estais despedaçando o corpo de Cristo. Ele veio na carne de modo a uni-lo; vós estais gritando de modo a dispersá-lo” (ibid. 6.10).
E quanto àqueles com quem a companhia é difícil? Ouçamos Santo Agostinho: “Amai vossos inimigos de tal forma que queirais que eles sejam irmãos; amai vossos inimigos de tal modo que eles sejam trazidos à vossa companhia” (ibid. 1.9). Para Agostinho, essa forma autêntica de amor apenas pode vir como dom de Deus: “Pedi a Deus que possais amar uns aos outros. Vós deveis amar a todos, mesmo os vossos inimigos, não porque são vossos irmãos, mas para que eles possam se tornar vossos irmãos, de modo que possais sempre estar incendiados de amor fraternal, seja para com aquele que se tornou vosso irmão ou para com o vosso inimigo, para que amando-o ele possa se tornar vosso irmão” (ibid. 10.7).
O exemplo de amar os nossos inimigos de modo que eles possam se tornar nossos amigos vem, em última análise, do próprio Cristo: “Amemos, pois ele nos amou primeiro (4:19). Pois como amaríamos se ele não houvesse nos amado primeiro? Por seu amor fomos feitos seus amigos, mas ele nos amou como inimigos a fim de que nos tornássemos amigos. Ele nos amou primeiro e nos concedeu os meios de amá-lo” (ibid. 9.9).
Para Santo Agostinho, então, a unidade da Igreja provém da comunhão da Santíssima Trindade e deve ser mantida se quisermos permanecer em comunhão com o próprio Deus. Pela graça de Deus, devemos preservar esta unidade com grande determinação, mesmo que isso envolva sofrimento e paciente tolerância. “Toleremos o mundo, toleremos as tribulações, toleremos os escândalos das provações. Não nos desviemos do caminho. Mantenhamo-nos na unidade da Igreja, mantenhamo-nos em Cristo, mantenhamo-nos na caridade. Não nos desliguemos dos membros de sua esposa, não nos desliguemos da fé, para que possamos nos gloriar em sua presença e permaneçamos seguros nele, agora pela fé e depois pela visão, cuja promessa temos como dom do Espírito Santo” (ibid. 9.11).
O lugar da Fraternidade Sacerdotal na Igreja
O que, então, é pedido da Fraternidade Sacerdotal na atual situação? Não abandonar o zelo de seu fundador, Dom Lefebvre. Longe disso! Antes, é pedido que renove a chama de seu zelo ardente de formar homens no sacerdócio de Jesus Cristo. Certamente, chegou a hora de abandonar a retória áspera e contraproducente que emergiu nos últimos anos.
O carisma original confiado a Dom Lefebvre deve ser recuperado, o carisma da formação de padres na plenitude da Tradição Católica pelo bem de assegurar um apostolado aos fiéis que flui dessa formação sacerdotal. Este era o carisma que a Igreja discerniu quando a Fraternidade Sacerdotal São Pio X foi primeiramente aprovada em 1970. Nós nos recordamos do juízo favorável do Cardeal Gagnon sobre o vosso seminário de Écône em 1987.
O carisma autêntico da Fraternidade é formar padres para o serviço do povo de Deus, não o usurpar o ofício de julgar e corrigir a teologia ou disciplina de outros dentro da Igreja. Vosso foco deve ser inculcar a sã formação filosófica, teológica, pastoral, espiritual e humana em vossos candidatos, a fim de que eles possam pregar a palavra de Cristo e agir como instrumentos da graça de Deus no mundo, especialmente pela celebração solene do Santo Sacrifício da Missa.
Deve-se prestar, certamente, atenção às passagens do Magistério que parecem difíceis de reconciliar com o ensinamento magisterial, mas essas questões teológicas não devem ser o foco de vossa pregação ou formação.
Com respeito à competência de corrigir, podemos bem levar em conta o exemplo de São Pio X e suas intervenções sobre a questão da música sacra. Em 1903, São Pio X promulgou o famoso motu proprio Tra le sollecitudini, promovendo por toda a Igreja uma reforma da música eclesiástica. Este documento, contudo, era em certo sentido a culminância de duas iniciativas anteriores do então Giuseppe Sarto: um votum sobre a música sacra escrita a pedido da Congregação dos Sagrados Ritos, em 1893, e uma carta pastoral sobre a reforma da música sacra à Igreja de Veneza, publicada em 1895.
Estes três documentos continham, essencialmente, a mesma mensagem, e embora o primeiro tenha sido uma sugestão à Cúria Romana, o seguinte foi uma instrução aos fiéis sob sua jurisdição como Patriarca de Veneza, e o terceiro uma ordem à Igreja universal. Enquanto Papa, São Pio X gozava da autoridade para tratar de abusos na música eclesiástica em todo o mundo, enquanto que como bispo ele podia apenas intervir dentro de sua diocese. São Pio X pôde abordar os problemas na Igreja, no âmbito universal, em suas prescrições disciplinares e doutrinais, precisamente por causa de sua autoridade universal.
Mesmo quando estamos convencidos de que nossa perspectiva sobre uma determinada questão disputada é aquela verdadeira, não podemos usurpar o ofício do pontífice universal ao presumir publicamente a correção de outros dentro da Igreja. Nós podemos propor e procurar exercer influência, mas não devemos desrespeitar ou agir contra as legítimas autoridades locais. Nós precisamos respeitar o foro próprio dos diferentes tipos de assunto: é a fé que deve ser pregada de nossos púlpitos, não a última interpretação do que consideramos problemático sobre um documento magisterial.
Tem sido um erro fazer de todo ponto difícil na interpretação teológica do Vaticano II uma matéria de controvérsia pública, tentando influenciar aqueles que não são teologicamente esclarecidos a adotar um ponto de vista particular acerca de questões teológicas sutis.
A Instrução Donum Veritatis, sobre a Vocação Eclesial do Teólogo (Congregação para a Doutrina da Fé 1990) afirma que um teólogo “pode levantar questões sobre a conveniência, a forma, e mesmo os conteúdos das intervenções magisteriais (§24), embora “a disposição de se submeter lealmente ao ensinamento do Magistério sobre matérias em si não irreformáveis deva ser a regra”. Mas o teólogo não deve “apresentar suas próprias opiniões ou hipóteses divergentes como se fossem conclusões não-discutíveis. O respeito pela verdade, assim como pelo Povo de Deus, requer esta discrição (cf. Rom 14:1-15; 1 Cor 8; 10: 23-33). Pelas mesmas razões, o teólogo se absterá de dar inoportuna expressão pública a elas” (§27).
Se, após uma profunda reflexão teológica da parte do teólogo, as dificuldades persistirem, ele “Se, apesar de um leal esforço, as dificuldades persistem, é dever do teólogo fazer saber às autoridades magisteriais os problemas suscitados pelo ensinamento em si mesmo, pelas justificações que lhe são propostas, ou ainda pela maneira com a qual é apresentado. Ele o fará com um espírito evangélico, com um profundo desejo de resolver as dificuldades. As suas objeções poderão contribuir, então, para um real progresso, estimulando o Magistério a propor o ensinamento da Igreja de uma maneira mais aprofundada e melhor argumentada. Nestes casos o teólogo evitará recorrer aos « mass-media » ao invés de dirigir-se à autoridade responsável, porque não é exercendo, dessa maneira, pressão sobre a opinião pública, que se pode contribuir para o esclarecimento dos problemas doutrinais e servir a Verdade.” (§30).
Essa parte do ofício do teólogo, agindo com um espírito leal, animado pelo amor à Igreja, pode, por vezes, ser uma provação difícil: “Para um espírito leal e animado pelo amor à Igreja, uma tal situação pode certamente representar uma prova difícil. Pode ser um convite a sofrer, no silêncio e na oração, com a certeza de que, se a verdade está de fato em questão, ela terminará necessariamente por impôr-se.” (§31).
No entanto, o empenho crítico em relação a atos do Magistério nunca deve se tornar uma espécie de “magistério paralelo” dos teólogos (cf. §34), pois este deve ser submetido ao juízo do Soberano Pontífice, que tem “o dever de guardar a unidade da Igreja, com a preocupação de oferecer a todos a ajuda para responder no modo oportuno a esta vocação e graça divina” (Carta Apostólica Ecclesiae Unitatem, §1).
Assim, nós podemos ver que há, para aqueles que na Igreja têm o mandato canônico ou a missão de ensinar, espaço para um compromisso verdadeiramente teológico e não-polêmico para com o Magistério. Intelectualmente falando, contudo, nós não podemos nos satisfazer meramente com o gerar e sustentar controvérsias. Os problemas teológicos difíceis só podem ser adequadamente tratados pela analogia da fé, isto é, a síntese de tudo o que o Senhor nos revelou. Nós devemos ver cada doutrina e artigo de fé como sustentador de outros, e aprender a compreender a íntima conexão entre cada elemento de nossa fé.
Para um comprometimento no estudo da teologia, devemos ter uma adequada formação cultural, bíblica e filosófica. Penso, por exemplo, na passagem do Código de Direito Canônico de 1917 impressa na introdução da edição Benzinger em inglês, de 1947, da Summa Theologiae: “Os religiosos que já estudaram humanidades devem se dedicar por dois anos, no mínimo, à filosofia, e por quatro anos à teologia, seguindo o ensinamento de Santo Tomás de acordo com as instruções da Santa Sé”. (CIC 1917, can. 589).
Consideremos a sabedoria expressa nesta diretriz: a teologia deve ser empreendida apenas por aqueles que foram adequadamente formados, tanto em humanidades como em filosofia. Recentemente, a Congregação para a Educação Católica exigiu que o estudo da filosofia continue por três anos durante a formação sacerdotal. Sem esta amplitude de aprendizado, nossa pesquisa teológica não terá o rico solo da cultura no qual a fé se enraíza e que é indispensável para compreender plenamente tanto os conceitos filosóficos e os termos que fundamentam as formações da Igreja.
Se nos concentramos apenas nas questões mais difíceis e controversas — que, certamente, precisam receber cuidadosa atenção — podemos, com o tempo, perder um senso da analogia da fé e começar a ver a teologia principalmente como uma espécie de dialética intelectual de afirmações concorrentes, em vez de um compromisso de sabedoria com o Deus vivo que se revelou a nós em Jesus Cristo e que inspira os nossos estudos, a nossa pregação, o nosso zelo pastoral pelo Espírito Santo.
Conclusão
O Papa Bento XVI, em seu magnânimo exercício do munus Petrinum, tem se esforçado em superar as tensões que existem entre a Igreja e a vossa Fraternidade. Uma plena reconciliação eclesial traria um fim imediato às suspeitas e maus sentimentos que temos experimentado? Talvez não imediatamente.
Mas o que estamos buscando não é obra humana: estamos buscando a reconciliação e a cura pela graça de Deus sob a amorosa direção do Espírito Santo. Recordemos os efeitos da graça articulados por Santo Tomás: curar a alma, desejar o bem, levar a cabo o bem proposto, perseverar no bem e, finalmente, alcançar a glória (cf. Summa theologiae 1a.2ae, 111, 3).
Nossas almas precisam primeiro ser curadas, ser purificadas da amargor e do ressentimento que vem de trinta anos de suspeitas e aflição de ambos os lados. Nós precisamos rezar para que o Senhor possa nos curar de qualquer imperfeição que surgiu precisamente por conta das dificuldades, especialmente do desejo de uma autonomia que está, de fato, fora das formas tradicionais de governo da Igreja. O Senhor nos dá a graça de desejar certos bens, neste caso o bem da plena unidade e comunhão eclesial. Este é um desejo que muitos de nós compartilham, humanamente falando, mas o que precisamos do Senhor é que Ele permita que este desejo permeie nossas almas, para que possamos desejar com o mesmo desejo de Cristo ut unum sint.
Só então a graça de Deus nos permitirá realizar o bem proposto. É Ele quem nos estimula à reconciliação e nos leva a completá-la.
Este é o momento de extraordinária graça: abracemo-la com todo o nosso coração e mente. Enquanto nos preparamos para a vinda do Salvador do mundo durante este tempo do Advento no Ano da Fé, rezemos e esperemos corajosamente: não podemos também antecipar o anseio pela reconciliação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X com a Sé de Pedro?
O único futuro imaginável para a Fraternidade Sacerdotal se encontra no caminho da plena comunhão com a Santa Sé, com a aceitação de uma completa profissão de fé em sua plenitude, e então com uma vida eclesial, sacramental e pastoral propriamente ordenada.
Tendo recebido do Sucessor de Pedro o encargo de ser um instrumento na reconciliação da Fraternidade Sacerdotal, ouso fazer minhas as palavras do Apóstolo Paulo ao nos encorajar “que leveis uma vida digna da vocação à qual fostes chamados, com toda a humildade e amabilidade, com grandeza de alma, suportando-vos mutuamente com caridade. Sede solícitos em conservar a unidade do Espírito no vínculo da paz”.
Sinceramente vosso em Cristo,
+ J. Augustine Di Noia, O.P.
* Sugestões e correções são bem-vindas.