“O sobrinho de João XXIII agride verbalmente a filha de um dos nossos, a rádio nos despede bruscamente. A divergência em nome da tradição e da doutrina é tratada com dureza. Por quê?”
Por Alessandro Gnocchi e Mario Palmaro – Il Foglio, 16 de outubro de 2013 | Tradução: Gercione Lima – Fratres in Unum.com – Dado o tema, não vai ser uma grande citação, mas é necessário começar com uma mensagem de texto SMS datada de sábado, 12 de outubro, às 14:24:
“Caro Giuliano, hoje minha filha, de 18 anos, ao sair da escola foi agredida verbalmente pelo pai de uma de suas colegas de classe, só por causa do que eu escrevi no jornal sobre o Papa. Esse senhor é um jornalista e é sobrinho e biógrafo do Papa Bom”.
Enquanto o diretor deste jornal respondia com cortesia e atenção a muitos Católicos que já não sabem sequer o caminho de casa, o biógrafo do Papa Bom, obrigado por sua filha, tentava se desculpar por telefone, explicando que a garota entendeu mal suas palavras e que aquele era seu modo de participar da discussão.
Evidentemente, que não estava de todo errado o velho professor de escola primária que, a fim de chamar a atenção para suas aulas de história, explicava a um rebanho de estudantes preguiçosos: “para entender por que a história começou, precisa sempre ver como ela vai acabar”.
Olhando para trás, ao longo do tempo esta máxima tornou-se cada vez mais uma dica hegeliana de cinismo, que um de Croce e Gentile colocou lá de propósito para que os estudantes permaneçam ali até o toque da sineta. Mas, olhando mais de perto, o mestre Frecassetti sabia melhor do que podia parecer.
Devemos reconhecer que o motivo pelo qual começamos a colocar nossos pensamentos no preto e no branco no tocante ao pontificado do Papa Francisco se encontra exatamente no epílogo da mensagem de texto acima citada.
A ferocidade com a qual vem sendo defendido o Papa da Misericórdia, já se via em todo o coro de hosanas entoado desde a noite de sua eleição. Beija-pés e anti-clericais, devotos e agnósticos, católicos de conveniência e outras crenças, todos a cantar loas em uma igreja que de repente se tornou imaculada, linda e livre de todos os defeitos.
E depois, lá se foram todos em procissão para consagrar em Lampedusa, o lugar do mais novo holocausto, para ouvir missa na praia de Copacabana, pra jejuar pela paz ou simplesmente por medo da guerra na Praça de São Pedro. Todos, em todos os lugares celebrando uma igreja voltada para as honras do mundo ao invés do Senhor.
Diante de tanto consenso, até a passagem da Sagrada Escritura com a qual São Lucas fecha as Bem Aventuranças: “Ai de vós, quando todos os homens vos louvarem!” (Lucas 6:26) deve soar a prepotência.
Na Guerra contra o Evangelho o mundo abraça apenas os que são de sua própria espécie e não costuma fazer deles prisioneiros, mas na feira midiática onde o Papa brilha como uma estrela, ninguém parece levar isso em conta.
Estão todos muito à vontade nessa espécie de país das maravilhas onde os opostos giram de bracinhos dados, fazendo marolas com o princípio da não-contradição.
Em apenas seis meses jogaram ao mar a necessidade de demonstrar com rigor a racionalidade da fé que estava tão em moda nos tempos de Bento XVI.
Ora, até mesmo naquela controvérsia sobre o Ser na entrevista a Scalfari, o diálogo com o Papa parece ter saído de uma página do filósofo Heidegger. Dos pés de um Pontífice que diz amar a mística enquanto despreza a ascética, em um segundo foram chutados para o lixo séculos de metafísica.
No espaço de uma homilia na Casa Santa Marta foi apagada a memória de Ratzinger e silenciado seu discurso sobre a razão. Só sobrou o “coração” e como no coração ninguém manda, o jeito é cobrir com insultos os dissidentes ao invés de argumentos. Ou então se agride uma garota só porque seu pai emitiu uma opinião onde sempre foi lícito emiti-la.
Ou ainda, se é demitido sumariamente da Rádio Maria, sem nenhum direito de apelo, fuzilados como desertores por não terem apoiado incondicionalmente todas as iniciativas desse Papa.
De qualquer modo, apesar do sentimento de ” bem-estar” dos que não viam a hora de reprimir qualquer ar de dissidência de quem ainda ousa levantar a cabeça, recebemos centenas de emails, telefonemas e mensagens com um desconcertante apoio até mesmo da parte de muitos ouvintes da “Rádio Maria”. Antes de mais nada porque o episódio foi grotesco. Em uma igreja onde todos criticam, contestam, se manifestam, escrevem volumes de livros e artigos para denegrir o passado, presente e futuro, aqueles que foram afastados de uma estação de rádio católica foram justamente dois que decidiram “agir de acordo com suas consciências e perseguiram o que eles acreditam ser bom”, ao criticar nas palavras do Papa Bergoglio o que está em claro contraste com a tradição católica.
Mas o que mais impressiona nessas mensagens é a adesão libertadora daqueles que dizem:”aquilo que vocês escreveram é o que há muito tempo muitos estão pensando, mas que ninguém ousava dizer”.
Como o mundo é pequeno e os fiéis dentro da igreja murmuram, dá pra entender o desconforto que a nossa mensagem suscitou nos ambientes clericais. Não somos criancinhas como as dos contos de fadas de Andersen, mas, assim como o menino da fábula :“As roupas novas do imperador”, tivemos a coragem de gritar que o imperador está nu, enquanto os cortesãos disputavam pra ver quem elogiava mais as roupas que ele usava. E então havia o risco de que as pessoas começassem a perceber, a se dar conta e comentar de que há algo errado, tem alguma coisa que não bate bem. E essa seria uma dissidência muito particular e difícil de se lidar.
Pois aqui não se trata de freiras americanas que querem mulheres sacerdotes, nem de teólogos da libertação que amam ativismo socialista dentro da Igreja ou de padres austríacos reinvindicando a abolição do celibato.
A nossa divergência é a de uma fatia diversificada do rebanho católico que percebe que a doutrina sobre a qual se fundamenta sua fé corre sério perigo e que a própria idéia do Papado e da Igreja também corre risco. É a dissidência de tantos católicos perplexos que não querem mulheres como cardeal, não querem “missas criativas” transformadas em show de acordo com o gosto do celebrante, não querem teólogas “vetero-feministas” com poder dentro da Igreja, não querem demonstração de “pauperismo” em canais de televisão e não querem pastores e teólogos que se calam sobre temas ligados à família e à bioética.
Esta fatia do povo de Deus viu e avaliou de perto os vinte anos de governo do Cardeal Jesuíta Carlo Maria Martini na Diocese de Milão, e agora não quer ver a Igreja inteira submetida ao mesmíssimo discutível tratamento.
E a perplexidade vai se revelando na medida em que a gente começa a falar. Podemos dizer que ela começou desde os primeiros gritinhos ouvidos no primeiro dia da eleição do Cardeal Bergoglio, desde aquele “Buonasera” (boa noite) que deixou todos atordoados e da sua insistência em se apresentar apenas como “Bispo de Roma”.
Certamente e é preciso que se diga, que o problema não é só o Papa Francisco. Por exemplo, existem certos papólatras para os quais o Papa é “ontologicamente incriticável”em tudo o que ele diz . E aqui se diz ” ontologicamente ” num mundo católico que sequer conhece mais o significado do termo ontologia. Se o papa atualmente reinante disser, por hipótese, que você deve beber sangria e torcer pela seleção da Argentina, eis que os papólatras imediatamente começarão a beber sangria e vestir a camisa da seleção da Argentina depois de anos bebendo apenas cerveja e torcendo pelo Bayern de Munique. Tudo isso sem afetar a “hermenêutica da reforma na continuidade”.
No final, o problema é esse mundo Católico que se tornou medíocre e incapaz de expressar qualquer coisa de calibre intelectual. É um reflexo eloqüente do estado da imprensa católica, uma imprensa que se tornou lugar de conflito e de governo, mas não lugar de elaboração de idéias ou pra mostrar ao mundo qual é a identidade da Igreja.
No domingo passado, a Igreja Católica beatificou 522 mártires da Espanha, quase todos eles, sacerdotes e religiosos assassinados por ódio à fé pelo exército anarquista espanhol. A revista “Avvenire” falou alguma coisa sobre eles em sua página 23, numa pequena nota em caixa baixa (letras minúsculas).
522 mártires e a publicação oficial da Conferência de Bispos Italianos (CEI) se envergonha, escondendo-os numa pequena nota, tomando o cuidado pra não dizer claramente quem os martirizou. Esses mártires falavam espanhol, é verdade, mas infelizmente para eles, não eram da Argentina, não frequentavam periferias existenciais e para piorar foram mortos enquanto estavam em seus conventos e igrejas rezando e ensinando o Catecismo de sempre.
Não é de se surpreender portanto que essa mesma imprensa busque neutralizar, mediante o desprezo pessoal ou através da censura, qualquer um que ouse perguntar a razão de contradições tão óbvias, até quando elas saem da boca do sucessor de Pedro. Seria mais fácil para todos se aqueles que discordam seriamente sobre o mérito da questão mostrassem onde estão os erros. Mas Augusto Del Noce já nos tinha avisado quando ele previu com terror uma sociedade onde não seria mais possível levantar questões ou fazer perguntas.
Uma condição dessa espécie não pode ser assinada ou ratificada por um Católico com o uso da razão, pois é repugnante à inteligência .
Além do mais, é difícil “apoiar plenamente qualquer iniciativa de um Papa” que divaga com o ateu Scalfari sobre a “autonomia da consciência, ou que falando à “Civiltà Cattolica” nos convida a moderar o tom sobre questões éticas, que ao ser entrevistado no avião se pergunta quem é ele para julgar os homossexuais, que usa a Congregação para os Religiosos para proibir os Franciscanos da Imaculada Conceição de celebrar a missa antiga, que voa para Lampedusa e ali elogia os frutos espirituais do Ramadã.
Não obstante tudo isso, não tem sido fácil dar voz ao desconforto provocado pelo atual Pontificado.
Tecnicamente, nós somos os únicos na nossa região que ainda são conhecidos como “paolotti” [o paolotto no dialeto bergamasco diz respeito ao católico simples que vê o mundo contra a luz e sabe que lá atrás existe uma ordem que deve ser respeitada porque assim dispôs o Pai Eterno].
Nascemos e crescemos em uma fatia da Lombardia dividida de um lado pela Adda, do outro por Brianza e, do outro, Bérgamo, terras brancas como um lençol no varal. Quando éramos crianças, lembro-me que em nossa terra havia uma hierarquia em que no primeiro lugar de honra estava o pároco, em segundo lugar o prefeito, depois o médico, o farmacêutico e se havia uma delegacia, o delegado de polícia era o último. Sobre esta casta bem ordenada de autoridade não reinava nem mesmo o presidente da República, pois desde aquela época os politicos de Roma já eram considerados corruptos. Porém, isso era só até o lado de cá do Rio Tibre. Do outro lado estava o Papa e era um outro mundo. O Santo Padre vestido de branco em Roma era para nós meta, luz e guia que reinava acima de qualquer devoção que poderíamos dirigir a qualquer outra criatura humana. Falar mal do Papa não era lícito nem mesmo naqueles redutos onde se mastigava fumo de terceira categoria e se bebia vinho tinto de fabricação caseira ou se praticava um anti-clericalismo que não ia além do pároco.
Nascidos e criados como “paolotti”, nos encontramos agora no dever de ter que dizer o que está suscitando tanto clamor, porque tem sido o próprio Papa a desenhar um modelo de Igreja na qual está sendo varrida aquela casta de autoridade tão bem ordenada e que nos fazia sentir como parte dessa Igreja. Aliás, graças à qual éramos em primeiro lugar membros da Igreja e só depois cidadãos de uma cidade, de uma região ou de um Estado.
Mas o papa tinha que ficar lá encima, longínquo, quase inacessível. E quanto mais distante e inatingível mais força ele tinha para governar e ordenar o que ainda existe de bom nesse mundo.
Antes de tudo, havia a grande teoria da autoridade à qual se deve a justa devoção porque descende diretamente do Vigário de Cristo na terra, e que de certo modo todos retinham como justa.
E então havia a vida nas famílias onde havia espaço para todos, até mesmo para os que a natureza não havia propriamente privilegiado e esses eram cuidados e amados até mais do que os filhos ou os velhos mais afortunados.
O abraço aos pobres a aos enfermos era gesto cotidiano e modesto, como nas páginas de Don Lisander, e tinha até mais valor porque se fazia em nome do Papa, que lá de longe não podia se permitir fazer o mesmo. Assim tais gestos eram feitos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo e portanto por verdadeira caridade.
E o doce Cristo na terra, não pensava nem remotamente em descer em praça pública e expropriar seus filhos de um gesto que os teria santificado. Não havia necessidade de exemplos que necessariamente poderiam ser tomados por exibição demagógica. Tudo era “naturaliter”e ordenado Àquele que é representado nesse mundo pelo homem distante e solitário, cujo ofício é estar diante de Deus, em nome de todos os seus filhos .
Mas o papa tinha que estar lá encima, longínquo, quase inacessível. Um papa que, ao invés, se joga na arena para brincar com os meios de comunicação o joguinho do “faz-de contas- que eu não sou Papa”, no final não se aproxima dos homens, mas os deixam abandonados. Se ele se apropria de gestos que pertencem ao cotidiano dos filhos que lhes foram confiados, ele não se faz humilde, mas sim protagonista. Se ele remove o pouco que ainda resta da intermediação entre o homem e Deus, ele não facilita o encontro, mas o torna inútil. Desta forma, as criaturas se aproximam do vazio e instintivamente tudo que lhes restam é se agarrar ao que eles tem de mais próximo: um outro homem e nada mais, ainda que esse outro homem seja um Papa que decidiu se tornar igual às suas ovelhas em tudo, até no cheiro.
Até mesmo o simbolismo, que, graças à distância intransponível do Vigário de Cristo, no passado fazia com que nos dirigíssemos ao alto, agora faz com que olhemos para baixo e não nos mostra outra coisa senão um homem em meio a outros homens. Tal como acontece com a cruz peitoral de ferro do Papa Francisco, à qual graças à propaganda da mídia, os fiés olham como se fosse feita de material pobre e ordinário e nela não buscam mais o Cristo Crucificado, mas sim a humildade do homem que a usa. Porque as criaturas são feitas assim, se você lhes tira a razão e deixa só a emoção, elas se apaixonam apenas pelo que é ordinário e material. Todavia, como foi ensinado pela raposa ao Pequeno Príncipe de Saint- Exupery, “o essencial é invisível aos olhos”. E para alimentar o olhar da alma se faz necessário um ritual verdadeiro, aquele que, como diz a sábia raposa, “faz com que um dia seja diferente dos outros dias, e uma hora diferente das outras horas.”
As grandes assembléias das quais o Papa Francisco é a grande estrela não nos passam essa impressão. E não foi por acaso que ele mesmo explicou que a reforma litúrgica é o fruto principal da adaptação da Igreja à modernidade desejada pelo Concílio Vaticano II.
Uma iniciativa infeliz que fez com que o homem acabasse por celebrar a si mesmo, privado do desejo de olhar as coisas e criaturas com um olhar diferente.
A devoção ao mistério, o momento em que cada coisa na esfera visível e invisível recebe a mesma medida de atenção foi varrida para o lixo.
A respeito desse drama, o agora esquecido Bento XVI escreveu páginas que ainda são de grande utilidade. Quando ele ainda era o Cardeal Joseph Ratzinger disse em sua obra “Introdução ao Espírito da Liturgia”:
” O homem não pode fazer de si o próprio culto de adoração. Ele encontra só o vazio se Deus não se mostra. (…) A verdadeira liturgia pressupõe que Deus responde e nos mostra como podemos adorá-lo. Isso implica em alguma forma de instituição. Não pode se originar da nossa fantasia, da nossa criatividade, do contrário seria como um grito no escuro ou simplesmente uma auto-confirmação. Ela pressupõe algo que está concretamente à frente, que vai se revelando e nos mostrando o caminho para a nossa existência. “
Caso contrário, explica Ratzinger:
“Este culto torna-se uma celebração da comunidade para com ela própria; ele é uma auto-afirmação. A adoração de Deus torna-se num rodopio em volta de si próprio”.
Por sua tentativa de restaurar a honra da liturgia Católica, Bento XVI foi atacado em escala global por uma horda de católicos que ninguém sonhava desafiar. Mas agora a Igreja tem um novo Papa e, esse sim, que ninguém ouse tocar!
Alessandro Gnocchi e Mario Palmaro