Por Bruno M. – InfoCatólica | Tradução: Gercione Lima – FratresInUnum.com: Para variar um pouco, em vez de falar de bispos e teólogos, hoje eu trago ao blog e à série intitulada “Polêmicas Matrimonais” algumas palavras de JRR Tolkien. Trata-se de uma carta enviada ao seu filho Michael Tolkien, na qual o velho Tolkien partilha suas opiniões e experiências sobre o casamento e as relações entre homens e mulheres.
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“Os homens não são [monogâmicos]. Não adianta fingir o contrário. Simplesmente não o são, pelo menos não de acordo com sua natureza animal. Para nós, a monogamia (embora há muito tempo fundamental para as idéias que herdamos) é um elemento de ética, revelada de acordo com a fé e não com a carne. […] Esse é um mundo decaído onde não há harmonia entre os nossos corpos, nossas mentes e nossas almas. A essência de um mundo decaído consiste no fato de que o melhor não pode ser conquistado através da diversão livre ou do que é muitas vezes chamado de “auto-realização” (que geralmente não passa de um bom nome para a complacência e que é absolutamente contrária à realização do próximo), mas sim quando se recusa a si mesmo, sofrendo. A fidelidade no matrimônio cristão implica precisamente nisso: uma grande mortificação.
Para um cristão, não há escapatória. O matrimônio pode ajudar a santificar e direcionar ao seu objeto adequado seus desejos sexuais, e sua graça de (estado) pode ajudá-lo no combate, porém, o combate permanece, continua lá. O casamento não o saciará, naquele sentido em que comer regularmente satisfaz a fome, mas lhe proporcionará tanto dificuldades como facilidades para habilitá-lo a viver a pureza própria do estado matrimonial.
Nenhum homem, por mais que tenha amado a sua eleita e noiva de sua juventude, conseguiu permanecer fiel de corpo e alma quando ela se tornou sua esposa, sem um exercício consciente e deliberado da vontade, ou seja, sem negar a si mesmo. Poucos são os que sabem disso, mesmo os educados dentro da Igreja. E os que estão fora dela não parecem sequer ter ouvido falar nisso.
Quando o encanto desaparece, ou simplesmente se desvanece um pouco, eles acreditam que cometeram um erro de pessoa e que ainda não encontraram sua verdadeira alma gêmea. Então, a “verdadeira alma gêmea” geralmente passará a ser a próxima pessoa sexualmente atraente com a qual se encontrar, alguém com quem poderiam muito muito bem ter se casado, se não fosse por… Daí o divórcio, para proporcionar o “se não fosse por” ou segunda chance.
E, é claro, eles geralmente tem razão: cometeram um erro. Apenas um homem muito sábio, já no final de sua vida, poderia realmente tomar uma decisão sensata sobre com qual mulher, entre todas as possíveis, ele deveria ter se casado. Quase todos os casamentos, inclusive os mais felizes, são erros, no sentido de que certamente (em um mundo mais perfeito ou com um pouco mais de esforço neste mundo tão imperfeito) ambos os cônjuges poderiam ter encontrado um marido ou esposa mais compatível. No entanto, sua “verdadeira alma gêmea” é aquela com a qual você está realmente casado. Na verdade, a pessoa tem pouca escolha: a vida e as circunstâncias quase sempre intervêm em tudo (muito embora, quando se trata de Deus, a vida e as circunstâncias se tornam seus instrumentos ou intervenções). […] Neste mundo decaído, os nossos únicos guias são a prudência e a sabedoria (raras na juventude e tardias demais na velhice), um coração puro e fidelidade da vontade… “
(Retirado das Cartas de J.R.R. Tolkien)
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Já ouço alguns clamando aos céus: Mortificação? Negar-se a si mesmo? Um mundo decaído? Isso é obscurantismo medieval já superado! Sabemos agora que a vida deve ser desfrutada ao máximo. Como é que a minha verdadeira alma gêmea é aquela com a qual estou casado e não posso me divorciar e refazer minha vida com outra? Isso seria ser insensível, intolerante, fundamentalista e politicamente incorreto! Isso poderia até valer para os tempos antigos, quando a expectativa de vida era menor, mas não agora. A bíblia diz que Deus deseja que todos os homens sejam felizes, então ninguém tem o direito de proibir o que me faz feliz! É uma maneira de pensar desumana e inaceitável para o homem moderno. Esse Tolkien parece quase um católico tradicionalista!
O Casamento de Arwen e Aragorn.
Todavia, é exatamente essa mentalidade que podemos encontrar refletida nas obras de Tolkien. Como Elizabeth Kantor diz: “Aragorn deve ser o personagem masculino mais monogâmico de toda a literatura moderna: ele se apaixona por Arwen quando tinha apenas 20 anos de idade; espera, trabalha e ganha um reino para ela. Em suas andanças, encontra outra bela mulher que se apaixona por ele como um perfeito cavalheiro, a tal ponto que o irmão da mulher chegou a dizer: “você não tem culpa alguma nesta matéria”. Finalmente, casa-se com Arwen 68 anos depois de ter se apaixonado por ela e desfruta 122 anos de um casamento feliz e fiel”.
E o que não dizer então de Beren e Lúthien? É uma história épica, mas também a de um amor fiel, de quem sabe sacrificar-se pela pessoa amada. O pai da bela e imortal donzela elfa Luthien encomenda a Beren uma quase impossível missão como condição para se casar com sua filha: a recuperação de um dos três lendários Silmarils. Beren e seus companheiros partem em busca, sabendo que provavelmente morreriam, e, na verdade, são feitos prisioneiros pelos orcos, encarcerados e executados um por um, até que só Beren permanece. Luthien decide, então, partir em busca de Beren e também é capturada, mas, finalmente, consegue libertar o seu amado com a ajuda de um cão prodigioso. Beren quer continuar a odisséia sozinho, mas Luthien o acompanha e ambos conseguem chegar à fortaleza do Lorde das Trevas. Lá, as coisas acabam mal e Beren acaba perdendo uma mão que é devorada por um grande lobo, o qual também traga um dos Simarils. Mais tarde, tentando capturar a besta, eles sofrem ferimentos tão graves que causam a morte de Beren, e Luthien também acabada morrendo, abalada pela perda de seu amado. Finalmente, por algum milagre, ambos retornam à vida e vivem juntos como marido e mulher até a morte, que havia sido assumida pela elfa como uma condição necessária para se casar com um ser humano mortal.
Esta idéia de aceitar a própria morte como o preço do amor, algo que se repete na história da Arwen e Aragorn, é profundamente cristã. Não há maior amor do que dar a vida por aqueles que amamos. O amor, de fato, é dar a vida. Por isso, os esposos cristãos são chamados a amar com o amor de Cristo: amar até mesmos os inimigos, amor que não se irrita, não deseja o mal; amor até a morte, amor que não termina, mas que tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Conforme indicado por vários de seus escritos, Tolkien viu na história de Beren e Luthien um reflexo de seu amor por sua esposa. Embora ele jamais tenha necessitado lutar contra orcos e lobos, ainda assim, ele teve que superar dificuldades para se casar com o grande amor de sua vida. Ele se apaixonou por Edith aos 18 anos, mas, como era órfão, seu guardião legal, que era um sacerdote, ao descobrir seu namoro o proibiu de voltar a ter qualquer contato com Edith até que completasse 21 anos de idade. Ele então obedeceu e por quase três anos não a viu ou escreveu-lhe. No dia de seu vigésimo primeiro aniversário, todavia, escreveu-lhe uma carta pedindo-a em casamento. Embora Tolkien estivesse desempregado, ela prontamente aceitou sua proposta e permaneceram casados por 55 anos, até a morte de Edith, dois anos antes da morte do próprio Tolkien. Eles foram sepultados lado a lado e, embaixo de seus nomes, a inscrição na lápide simplesmente diz: “Luthien” e “Beren”.
Por que os livros de alguém com essas idéias tidas como tão reacionárias e ultrapassadas conseguem atrair tantos jovens? Precisamente porque eles percebem nesses livros o eco de algo maior, algo que não está presente na cultura secularizada que os rodeia, obcecada com “auto-realização” e a satisfação imediata e sem amarras de seus desejos. Na verdade, dificilmente eles encontrarão algo parecido com Tolkien na dieta do materialismo vulgar e hiper-sexualizado e bem mastigado que a televisão lhes empurra goela abaixo ou certos amigos que se encontram provavelmente tão confusos e sem esperança como eles mesmos.
How I Met Your mother
Em uma das séries de TV tão comuns atualmente, um Aragorn alérgico a mortificação e a negar seus desejos imediatos teria tido um breve caso com Éowyn para logo em seguida dar-lhe um chute, dizendo: “Não é você, sou eu. Eu pensei que você fosse única, porque o amor é eterno enquanto dura, mas agora (depois de ter me divertido passando alguns dias com você) eu vejo que não somos compatíveis. Espero que possamos ser amigos”.
Uma Luthien moderna exclamaria exasperada: “Lá vai você de novo se deixando ser capturado por orcos e lobisomens! Todos os dias a mesma coisa! Olha, Beren, desculpe, mas temos que terminar tudo. Queremos coisas diferentes: você quer que te resgatem das masmorras de Tol Gaurhoth, onde sofres terríveis torturas, e o que eu quero é sair com minhas amigas, me divertir e me realizar profissionalmente, satisfazer-me no meu trabalho como assistente de sub-assistente do ajudante do conselho da minha empresa”. Ou, pior ainda, bem no estilo das propostas do Cardeal Kasper, poderia ainda dizer: “escuta, Beren, eu sei que nos casamos e tudo mais e eu te amo, mas constatamos que com o passar dos anos, você se tornou um velho que me dá nojo e eu ainda sou jovem e bonita. E pra piorar, você só tem uma mão… Eca! Enfim, o que podemos fazer? Eu me apaixonei por um anão que também é jovem e bonito, como no filme do Hobbit. Não procurei, mas aconteceu e agora temos uma relação irreversível, pois como eu poderia voltar para um velho como você? Você tem que entender que eu não poderia esperar até que você morra. Afinal de contas, eu tenho o direito de ser feliz. ” Em suma, tédio, tédio e tédio.
Em uma modernidade cada vez mais decadente e enfastiada de tudo, que já fede a túmulo e decomposição, os livros de Tolkien são como uma lufada de ar fresco, porque as suas páginas são agitadas pelo mesmo vento que soprava no topo Montecassino quando alguns loucos lá se estabeleceram, ou que fazia tremular as bandeiras em Lepanto, que soprava como rajadas tempestuosas do Mar da Galileia ou como a brisa suave de Elias, o Espírito que pairava sobre as águas antes da criação do mundo e o último suspiro de um Deus crucificado. Estes livros não mencionam Cristo, mas de alguma forma não falam de outra coisa.
Em sua carta, Tolkien recorda com simplicidade a sabedoria cristã que inspirou tanto sua vida como seus livros, começando por uma verdade de primeira comunhão que todos nós sabemos, mas parecemos não recordar: este mundo é um mundo decaído por causa do pecado original, de modo, portanto, que amar não é fácil, mas exige um esforço. Mais importante ainda, amor verdadeiro significa dar a vida, morrer, negar a si mesmo. Todos aqueles que tentam por todos os meios que a Igreja aprove o divórcio, sexo antes do casamento, a gradualidade da lei, casais do mesmo sexo ou que se dê a comunhão aos que se recusam abandonar o pecado mortal, estão negando que amar significa dar a vida e falsamente propõem um amor light, superficial, que não exige um autêntico sacrifício.
A outra grande verdade que Tolkien recorda a seu filho é que a sua “verdadeira alma gêmea” é aquela com a qual você está realmente casado. Isto é, Deus estava certo com a sua vida, que tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus. Esta verdade é que faz do casamento uma aventura e não uma armadilha, uma obra de arte e não um absurdo aleatório, um desígnio de amor e não um erro terrível.
Se os Padres do Sínodo da Família querem saber o segredo do grande apelo de Tolkien entre os jovens, saibam que não se trata de “aggiornamiento” a qualquer preço ou dizer às pessoas que elas devem fazer o que elas querem, sem se preocupar com mais nada. Seu segredo é muito simples: “viver segundo a fé e não a carne.” Ou, dito de outra forma por Tolkien na mesma carta:
“Desde a obscuridade da minha vida, com tantas frustrações, eu ponho diante de ti o único, verdadeiramente grande e digno de amor nessa terra: o Santíssimo Sacramento… Nele encontrarás romance, glória, honra, lealdade e o verdadeiro caminho de todos os seus amores nesse mundo e, mais ainda, na morte. Por um paradoxo divino, a morte põe fim à vida e exige a rendição de todos, porém, só ao prová-la (ou pregustá-la), aquilo que buscas nos relacionamentos (amor, fidelidade, alegria) poderá se manter ou adquirir esse aspecto de realidade e duração eterna que deseja e busca o coração de cada homem”.
Os cristãos podem amar dando a vida, porque nosso destino é o céu. E não há um ser humano no mundo que não deseje o céu. Esse é o segredo.