O Leão de Campos (V): Quem era este homem?

Dom Antônio de Castro Mayer

Dom Antônio de Castro MayerCruz 25 de abril de 1991.

Fidelium animae per misericordiam Dei

requiescant in pace.

Q

uem era este homem elevado a uma posição de alta responsabilidade eclesiástica em 23 de maio de 1948? Quem era este homem que se tornaria uma das “duas testemunhas” da Igreja de sempre, sacrificando a honra do mundo e dias calmos na defesa da Fé Católica?

Todo homem permanece em certo grau envolto em mistério, o coração de cada personalidade humana individual e o centro de cada alma é aberto e revelado apenas para Deus. Há certos aspectos de Dom Antônio de Castro Mayer que não são misteriosos, mas abertos e claros a qualquer olho observador. Facetas de sua personalidade e aspectos de sua alma eram totalmente públicos. Era um daqueles homens abençoados com a unidade de ser, o interno e externo em harmonia, os vários lados de seu caráter unificados num todo. Um homem íntegro. Em seu caráter pode ser encontrado apenas dois mistérios reais a serem explorados mais tarde. Em sua época de fragmentação, insegurança e angústia existencial, andava ele, um homem justo, uno, em paz com seu Deus.

Dom Antônio[…] Nesta primeira foto do novo bispo de Campos consagrado em 1948, a autoridade descansa confortavelmente em seu possuidor; há “aquilo no rosto que [qualquer um] chamaria de bom grado de senhor”. Todos que o conheciam e especialmente aqueles que foram afortunados o bastante para conhecê-lo bem atestam esta autoridade, um dom dado por Deus.

Eles não podem falar do homem e mencionar seu nome sem suas vozes e comportamento assumirem uma espécie de temor e reverência. E, todavia, curiosamente, eles nunca mencionam estas qualidades diretamente. Parecem quase inconscientes do grande efeito que a presença deste homem tinha sobre eles. Sua atitude e vitalidade criavam estima em todos que o encontravam, uma estima próxima da veneração. Ainda quando essas mesmas pessoas falavam diretamente de seu jeito, quando escreviam aquelas qualidades especiais que o faziam único, falavam primeiro de sua humildade, sua simplicidade, sua inocência. Modesto em sua juventude, permaneceu um homem humilde por toda sua vida. Nunca se promovendo nem trabalhando para garantir o avanço de sua carreira quando jovem, permaneceu distante das honras do mundo e muitas vezes mesmo de seus simples prazeres.

Durante sua enfermidade final, que foi longa, seu médico expressou espanto por nunca ter ouvido aquele homem reclamar sequer uma vez, pouco importasse quanto desconforto ou dor experimentava. Quando seus padres tiveram de cuidar dele por causa de seu estado enfraquecido, nunca o ouviram se queixar. Dependia de seus padres para suas refeições. Perguntavam-no: “prefere mamão ou banana de fruta?”. Replicava: “você escolhe”. “Mas temos as duas. Qual você prefere?”, respondiam. “Tanto faz, você escolhe”. As graças de Deus eram abundantes; Dom Antônio apreciaria qualquer coisa que aparecesse em seu caminho. Assim, não surpreende ter vivido numa simplicidade quase de um eremita, se poderia dizer pobreza, no palácio episcopal. Chegaria o dia em que o mundo o puniria por esta santa austeridade. Esse não é o jeito do mundo.

Seus prazeres terrenos eram poucos.  Seus livros, claro, mas isso não é novidade. Aparentemente sua única verdadeira ligação a prazeres deste mundo era seu amor pelo pingue-pongue. Nos fins de seus dias, uma raquete em sua mão indicaria a primavera de vida renovada e energia juvenil. Uma raquete em sua mão extrairia do misterioso íntimo de seu ser um desejo competitivo invisível. Com zelo, ele desafiaria seus padres, os fiéis da diocese ou as crianças que o visitavam. A batalha de dentro e fora da raquete na bolinha branca de plástico sob o revestimento verde na mesa lhe dava grande alegria. Instituiu um campeonato especial e, quando já eram passados seus próprios dias como jogador,  ainda se deliciava assistindo os quatrocentos meninos de toda a diocese mostrarem suas habilidades e avançarem os postos, raquetes em mãos, até a vitória final. Um troféu especial viaja toda primavera para a paróquia cujos moços mostraram a mais extraordinária proeza na competição de pingue-pongue daquele ano.

Tinha uma habilidade de mover-se entre seus fiéis e misturar-se com eles na vida cotidiana sem de qualquer maneira diminuir ou desfigurar sua autoridade. Sentia-se tão confortável oferecendo uma Missa Solene no Natal ou Páscoa diante de uma multidão abarrotada na Basílica do Santíssimo Salvador em Campos, uma igreja elevada ao status de basílica através de seus esforços, como ao oferecer uma benção à turma da primeira série em sua pequena cerimônia de formatura. Viveu a vida de sua diocese com os fiéis em todos os seus aspectos, em toda faceta possível da existência do dia-a-dia, e contudo sempre manteve sua dignidade como seu bispo. Serviria [como acólito] enquanto era bispo a Missa de seus jovens padres. O fazia sem falsa humildade e sem nunca fazê-los se sentir desajeitados. Não havia nada sobre sua própria Missa que a fizesse extraordinária, nada que a distinguisse. Era um bispo, sim; foi, além disso, um artesão, como o foi seu pai, fazendo bem seu trabalho e no melhor de suas habilidades, mas, ao mesmo tempo, ciente de que estava fazendo um trabalho. Sua atitude foi sempre “arregaçar as mangas e trabalhar”, e fez este trabalho sem pretensão ou esperança de elogios. As palavras do escritor inglês Evelyn Waugh vêm à mente. Numa carta escrita em 1964 ao Catholic Herald, Waugh alertava para os perigos da “renovação explosiva” dos inovadores do Concílio Vaticano Segundo “que desejam mudar o aspecto exterior da Igreja”. Ele chegava a descrever sua própria conversão, especificamente aqueles aspectos da Fé que o levaram à Igreja. Aquela “atração estranha” que mais o atraía, dizia, “era o espetáculo do padre e seus ajudantes na Missa rezada, subindo lentamente o altar sem dar uma olhada sequer para saber os muitos ou poucos que tem em sua congregação; um artesão e seu aprendiz; um homem com um trabalho que apenas ele é qualificado para fazer” (Waugh, Evelyn, A Little Order – Boston: Little, Brown, 1977 – pág. 188). O relato é uma descrição apropriada do trabalho do Bispo de Campos.

Um de seus padres o descreveu nestas palavras: “Ele foi um homem de grande simplicidade. Tinha a alma de uma criança”. Nunca falou mal de outros e se recusava a acreditar, às vezes para sua tristeza, que outros pensariam ou falariam mal dele. Amava crianças e aproveitava as ocasiões quando podia estar com elas. Era, em seu tranqüilo modo, uma delas.

Também permaneceu uma criança em sua devoção às suas mães, sua mãe terrena e sua Mãe espiritual. A incessante e intensa devoção de Dom Antônio à Santa Mãe de Deus marcou seu reinado em Campos. Uma de suas primeiras ações ao tornar-se Bispo de Campos foi publicar uma ordem especial a seus padres – doravante na diocese, ao fim de toda Missa, três Ave-Marias adicionais seriam rezadas pelo padre e fiéis à Nossa Santa Mãe com a intenção de que ela preservasse a verdadeira Fé Católica e de que a heresia nunca encontrasse abrigo na diocese. Tal devoção foi recompensada.

Ele mesmo rezaria o rosário em todas as horas do dia ou da noite. Seus padres relatam que quando viajavam com ele, muitas vezes ele os acordava em horas incomuns para rezar o rosário porque adorava rezar acompanhado. Certa vez durante uma visita ao seminário da Fraternidade São Pio X em Ecône, Suiça, o bispo acordou seus companheiros de viagem depois do “apagar das luzes” do seminário, uma hora de silêncio estritamente obrigatório, e anunciou seu desejo de rezar o rosário. Lembraram a ele que era tarde e que o seminário estava observando um período de silêncio e repouso, mas sua devoção a Nossa Senhora não seria dissuadida. Foram com ele assim que começou a andar pelos corredores do seminário com sua voz ecoando as Ave-Marias. As cabeças dos seminaristas enraivecidos começaram a aparecer enquanto mais e mais portas iam se abrindo bruscamente. Ao encontrar o vibrantemente fervoroso Dom Antônio como o réu rezador, suavemente fechavam suas portas e envergonhados retornavam para suas camas.

[…] A qualidade final de Dom Antônio de Castro Mayer que definia seu caráter é a óbvia – sua grande inteligência. Este dom é evidenciado em suas cartas pastorais e em sua vida, mas pode logo de início ser visto numa espécie de símbolo nas fotos do homem naqueles extraordinários óculos que adornavam seus olhos penetrantes. Se alguém fosse fazer uma caricatura do homem, começaria certamente por aqueles óculos. Pouco depois de sua elevação ao trono episcopal de Campos, os óculos apareceram – enormes, pesados, armação tipo concha. Os olhos escuros que brilham com intenso pensamento ficaram ampliados e pareciam colocados como jóias escuras nos sólidos círculos moldurados dos óculos. Eles dominavam sua cabeça e atraiam a atenção em toda fotografia para aqueles sábios olhos e à mente ágil trabalhando por detrás deles.

Dom AntonioNa medida em que chegava a idade, o bispo e já pequeno homem começou a diminuir fisicamente, encolhendo em tamanho enquanto seu espírito crescia, e os óculos, por serem os mesmos, tornavam-se cada vez mais salientes. Pareciam se tornar gigantes. Ao fim de sua vida, quando os anos e as provações por defender a Fé e a Igreja de Cristo cobraram seu preço total e reduziram a forma física de Dom Antônio novamente ao tamanho diminutivo de um garoto, os óculos tomavam muito do espaço na menor tela da face e servia como prismas escuros radiando a inteligência para fora em fluxos de sábias luzes. No fim ele era uma “sábia criança”, um prodígio idoso para a época.

Padre Possidente, que cuidou do bispo até o fim, conta de sua recuperação de consciência exatos quarenta minutos antes de sua morte. Embora seu corpo estivesse reduzido ao desamparo, embora ele pudesse respirar com muita dificuldade, e embora a fala agora fosse algo do passado, “seus olhos estavam completamente vivos”. Eles cintilavam com “a verdadeira luz que ilumina todo homem e que veio a este mundo”, a luz que este bispo “conheceu”, “recebeu” e “intensificou”. Brilhavam com a “verdadeira luz” que não pode se apagar.

The Mouth of the Lion: Bishop Antonio de Castro Mayer and the last Catholic Diocese. Dr. David Allen White, Angelus Press, 1993 – pág. 51 a 57

Leia as postagens anteriores da série sobre o Leão de Campos.

Post publicado originalmente em 2009.

4 comentários sobre “O Leão de Campos (V): Quem era este homem?

  1. “De meu pai recebi o maior tesouro:a Fé”.

    D. Mayer, a quem devo muito pela Verdadeira Fé que recebi do meu pai. Apesar de haver uma triste herança que acomponha sua história, esse grande homem, a exemplo de seu Mestre, preferiu ser chamado de louco, cismático e até excomungado, a trair o tesouro que lhe foi confiado. Infelizmente o se pequeno rebanho encontra meio “desorientado”, mas do Céu, ele roga a Deus Pai para que seus filhos não se percam com as facilidades de uma religião humanista. A exemplo de D. Lefebvre, foram fiéis até o fim. O últimos sendo chamado à Casa do Pai na festa da Anunciação e D. Mayer no mesmo ano, 1991, no mês seguinte, 25 de Abril.
    Com a devida reverência a quem publicou esse tesouro, deixo aqui as palavras de desse Santo Bispo, ainda Ordinário da Diocese de São Salvador de Campos dos Goytacazes, por ocasião da Visita da Imagem Peregrina e Nossa Senhora de Fátima na Paróquia de São Fidelis. https://www.youtube.com/watch?v=Tsdta9sByOs

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  2. Quando Dom Antônio faleceu, eu tinha três anos de idade. Quando já estava praticamente concluída a construção da nova matriz da paróquia de minha cidade, Dom Antônio veio e realizou crismas, já após a separação da Diocese de Campos.

    Segundo fontes, os Padres de Campos desejavam muito que Monsenhor José Possidente se tornasse o novo Bispo da linha tradicional quando da partida de Dom Antônio. Porém, Mons. José Possidente teria rejeitado insistentemente. Este desejo se fundava no fato de que Mons. Possidente era o braço direito de Dom Antônio. No final da vida, Dom Antônio não tomava nenhuma decisão sem consultar antes o Mons. Possidente. De fato, é notória a influência que Mons. Possidente exercia sobre todos os Padres e paróquias. Por exemplo, ele estava sempre visitando todas as paróquias e conhecia o bispado como “a palma de sua mão”, conhecendo e lembrando de fiéis numa memória que parecia mais um dom sobrenatural.

    Que Mons. Possidente era o preferido dos Padres para suceder Dom Antônio, e que Dom Antônio não tomava decisões sem consultá-lo, fora atestado por Mons. Eduardo Athayde numa Missa de ação de graças celebrada pelas bodas de ouro sacerdotal de Mons. Possidente em Pádua. Na ocasião, Mons. Eduardo Athayde afirmou que quem gostava dele em Pádua deveria agradecer ao Mons. Possidente, pois ele é quem teria aconselhado Dom Antônio a enviar Mons. Eduardo a Pádua. Também o próprio Mons. Eduardo afirmou também na ocasião que os Padres queriam ele [Mons. Possidente] para Bispo, mas que ele não aceitou; que, no final de sua vida, Dom Antônio não tomava nenhuma decisão sem consultar Mons. Possidente e que, naquelas ocasiões, Mons. Possidente chegou inclusive a atuar como “Bispo”. Mons. Possidente estava presente na Missa e era natural de Pádua.

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    Mons. Eduardo Athayde sempre dissera publicamente, e portanto, não se trata de confidencialidade ou discrição, que, quando estava para vir a Pádua,

    Dom Antônio ordenou taxativamente a ele que não concedesse a comunhão sacramental a ninguém que não estivesse vestido conforme as normas e que,

    quando ele chegou em Pádua e foi celebrar sua primeira Missa ainda na antiga matriz (portanto ainda na época da Diocese de Campos) fora provado. Pois, na hora da comunhão, um casal que ele ainda não conhecia se ajoelhou à mesa da comunhão para receber a hóstia; o homem estava vestido corretamente, mas a mulher não, pois estava com decote e blusa sem mangas, então ele teve que negar a comunhão para a mulher, para cumprir com as ordens de Dom Antônio.

    Ao final da Missa, o casal se dirigiu à sacristia para perguntar ao padre por que fora negada comunhão; o homem era juiz da cidade e a mulher sua esposa. Então, Mons. Eduardo explicou que com aquelas vestes ela não poderia receber a comunhão. O casal e o padre se entenderam pacificamente. Mons. Eduardo sempre fazia menção a este episódio.

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    Por volta dos anos 1950, houve um êxodo da população da região das roças para as cidades e vilas. Esta população era católica, porém sem ou com pouca catequese. Mesmo na cidade, entre os mais letrados e as elites urbanas, a catequese era extremamente fraca, segundo relato de um Padre. Então, toda a Diocese de Campos, sob o báculo de Dom Antônio, investiu pesado em catequese, impressões de folhetos, revistas, aquisição de catecismos etc. Para os analfabetos ou crianças que ainda não sabiam ler, maneiras de estudo eram encorajadas e ensinadas para o aprendizado, com o auxílio de um familiar ou pessoa próxima. Neste contexto, é que muitas e muitas pessoas da geração dos meus avós passaram a levar a prática religiosa mais a sério e se ingressaram nas diversas associações para leigos, amplamente apoiadas por Dom Antônio e seus Padres. Pessoas mais velhas com pouco estudo liam sempre a Imitação de Cristo e tiveram realmente uma vida santa – muitos já falecidos.

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    Assim como os Apóstolos são pais de suas Igrejas, por eles fundadas, Dom Antônio é o pai da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney.

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    Trata-se de algumas coisas que nos vem à mente quando se fala no Excelentíssimo e Reverendíssimo Dom Antônio.

    Quem desejar retificar ou desmentir algo, o site tem suas regras de comentários…

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  3. Um gaúcho que o conheceu em seus anos finais neste mundo não conseguiu conter as lágrimas ao ler este texto. Quem o pôde conhecer, ter uma palavra com ele, mesmo que num único momento, sabe que impressão poderosa, espiritual, deixava nas almas esse santo Bispo.

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