Quia me dereliquisti?

Por FratresInUnum.com, 31 de julho de 2021 – Santo Inácio de Loyola, cuja festa celebramos hoje, é o fundador da Ordem da qual procede Jorge Mario Bergoglio, a Companhia de Jesus. Não podemos figurar a “desglória” acidental que este seu filho possa lhe dar no céu, já que justo o primeiro jesuíta a chegar ao pontificado é a completa antítese do seu fundador, o qual viveu para edificar a Igreja numa contrarrevolução decidida contra os hereges protestantes e para a conversão, sim, o proselitismo, e a expansão da civilização cristã pelo Novo Mundo. Por sua vez, seu descendente, além de entronizar no Vaticano a imagem de Lutero, tenta expropriar os fieis daquele bem que o heresiarca alemão mais odiou: a Missa de Sempre!

“Em vida fui tua peste; morto, serei tua morte, ó papa” – Martinho Lutero.

Lutero ab-rogou a Missa em sua seita e a chamava de “a maior blasfêmia do romanismo”. A oração que ele mais execrava na liturgia era justamente aquela que encerrava o ofertório, o “Suscipe, Sancta Trinitas” — abolida no Novus Ordo Missae de Paulo VI –, a qual ele chamava de blasfema porque ousava oferecer a Deus algo, coisa sumamente reprovável para quem considerava todas as obras humanas corrompidas e que não cria na existência de obras meritórias.

O protestantismo acabou com os sacramentos e os reduziu a ordenanças, destruiu as bênçãos, pois considerava-as blasfemas, sinais de que existiria um sacerdócio ministerial, ao qual eles rejeitam. E, por isso, à destruição da Santa Missa, seguiu-se o cortejo de destruições dos sacramentos e sacramentais, cujos ritos foram minimamente reduzidos a invocações ou orações a serem presididas por qualquer um.

O Motu Proprio “Traditionis Custodes” – o nome não poderia ser mais irônico, ainda mais neste contexto – não poderia encerrar-se sem um atentado similar. Não adianta apenas agredir a Missa, é preciso agredir a tudo aquilo que lhe corteja. Por isso, diz Francisco no art. 8: “as normas, instruções, concessões e costumes precedentes, que não estejam conformes ao que é disposto pelo presente Motu Proprio, são ab-rogadas”.

Com este artigo, sem sequer mencioná-lo expressamente, Francisco parece vedar a utilização do Breviário, do Ritual Romano e do Pontifical para todos os fieis. Nenhuma concessão é permitida, nem sequer nenhum “costume”! A lei, em geral, cristaliza alguns costumes, mas ab-rogá-los, e simplesmente por uma determinação legislativa, é qualquer coisa de inconcebível. É a este nível de imposição a que chegou Bergoglio.

Isso significa, por exemplo, que o texto do Motu Proprio – não sabemos até que ponto o mesmo será efetivamente aplicado – não permitiria mais o rito das ordenações segundo o Pontifical precedente, o que implica a abolição de todas as possibilidades de outorga das ordens menores e a obrigatoriedade do Novus Ordo para as ordenações nos Institutos ligados ao Usus Antiquor.

Do mesmo modo, ficaria proibida a possibilidade de benzer os objetos segundo o ritual tradicional, que valoriza o sacerdócio ministerial, e tornar-se-ia obrigatória a utilização do novo ritual. Por exemplo, a bênção da água na forma tradicional “eu te exorcizo, água”, “eu te abençoo, água”, ficaria sumariamente substituída pela forma nova, agora imposta: “bendito sois, Senhor”, uma berakah judaica na qual não se benze nada, mas apenas se bendiz a Deus como se aquilo já estivesse bento.

Na prática, os padres nunca seguiram este novo ritual de bênçãos. Será que alguém já solicitou uma bênção e o padre lhe pediu para esperar porque iria à sacristia pegar o ritual de bênçãos?

O próprio Dom Isnard, na Apresentação do Ritual de Bênçãos, afirmou que “não há mais bênção com um simples sinal da cruz”… Coisa jamais seguida por nenhum padre do mundo! Todos benzem apenas traçando uma cruz sobre o objeto. Além disso, continuou ele, afirmando que outra novidade são “as bênçãos presididas por leigos, homens e mulheres, em virtude de seu sacerdócio batismal. É extremamente louvável esse reconhecimento da dignidade sacerdotal (sacerdócio comum e não ministerial) do leigo”. Ora, alguém já viu uma senhora dizendo: “Dona Maria, benze esta água pra mim?” É evidente que toda a reforma litúrgica no que diz respeito aos sacramentais foi a coisa mais mal sucedida!

Portanto, por detrás dessas palavras tão lacônicas de Bergoglio se esconde uma imensa bomba contra todos os ritos que se seguem à Santa Missa tradicional e ao sacerdócio católico.

A quem tem dúvida se é isso tudo mesmo, como disse o Padre Barth, é melhor nem perguntar a Roma, pois a resposta pode ser ainda pior.

Trata-se da imposição do novo e inglório ritual que ninguém usa e da tentativa de completa extinção dos ritos dos sacramentos segundo a forma tradicional.

Como alguém pode dar um golpe desses de modo tão sorrateiro? No Concílio, ao menos, houve certa formalidade para a substituição dos ritos! Como é possível que se crie uma lei tão abrangente por detrás de palavras tão indiretas, mas ao mesmo tempo tão letais, a ponto de extinguir até os “costumes”?

Este artifício legislativo é apenas uma armadilha verbal. Do mesmo modo como antes, os padres vão continuar usando as bênçãos sérias do Ritual Romano anterior, inclusive com traduções aprovadas anteriormente, seguirão exorcizando e benzendo água, sal e óleo, darão a bênção nas velas e nos terços, nas imagens e nas medalhas, e não se incomodarão nem um pouco com tais restrições.

A Liturgia das Horas nova quase não é rezada por nenhum padre, mesmo. Os padres tradicionais continuarão rezando o seu Breviário antigo, enquanto os modernos nem saberão em que semana do saltério eles estão.

Mais difícil será a situação das ordenações. Os institutos anteriormente ligados à Comissão Ecclesia Dei terão a difícil missão de contornar a situação, mas, se conseguirem, mostrarão que esta lei não passa de um artifício de palavras… Tomara que consigam!

O que fica claro, por detrás disso tudo, é o gesto mais anti-inaciano jamais tomado por um Papa, ainda mais grave por se tratar de um “filho” do fundador da Companhia: o triunfo de Lutero e de seu ódio à Missa católica, aos sacramentos católicos e ao sacerdócio católico. Diante de tamanho descalabro, não é difícil imaginar a inquietação do glorioso soldado de Cristo perguntando a este seu “discípulo”: “fili mi, quare me dereliquisti?”, “filho meu, por que me abandonaste?”

Tamquam leo rugiens.

Por FratresInUnum.com, 30 de julho de 2021 – Os papas ditos conservadores sempre foram muito zelosos em dizer as coisas certas, mas sem estabelecer uma vigilância que oportunizasse a imposições de sanções para os desobedientes e contestatários.

Apesar das claras e firmes condenações ao modernismo, e do tão execrado Sodalitium Pianum, o próprio São Pio X excomungou somente dois hereges, os modernistas Alfred Loisy e George Tyrrell.

De volta aos anos 60: até Elvis Presley avacalhou a Missa Tradicional.

Já Pio XII escreveu uma Encíclica excepcional, a Humani generis, em que condena da Nouvelle Théologie, mas sem criar nenhum dispositivo para a punição dos seus autores. Resultado: os teólogos heterodoxos foram inibidos durante um tempo, mas depois vieram com toda a força durante e depois do Concílio Vaticano II, invertendo completamente a situação.

João Paulo II foi ainda pior. Mandou a Congregação para a Doutrina da Fé promulgar um documento contra a Teologia da Libertação, a Instrução Libertatis nuntius, mas, diante do protesto e das ameaças de cisma oriundos do Brasil, acabou por retroceder e mandar escrever a Instrução Libertatis conscientiae, em que afirma a possibilidade de existência de uma ortodoxa teologia da libertação, algo mais ou menos tão possível quanto um triângulo quadrado.

Na época em que o livro de Leonardo Boff, Igreja: carisma e poder, foi censurado, ele mesmo recebeu apenas o silêncio obsequioso de um ano, coisa mais ou menos equivalente a um pito, mas que foi suficiente para deixar toda a esquerda possessa de ódio, a ponto de mobilizar centros de defesa dos direitos humanos contra o Papa.

Em Traditionis custodes, Francisco faz exatamente o contrário. Após dizer coisas inconsistentes com a obstinada intenção de tornar impossível não apenas a celebração da Missa Tradicional, mas até a vida daquelas instituições erigidas pela Igreja para conservá-la, ele determina as instituições que exercerão o papel policial de perseguição e penalização dos desobedientes, com a mesma intolerância com que a esquerda sempre atuou contra os seus opositores.

No art. 7, ele escreve que “a Congregação para o Culto divino e a Disciplina dos Sacramentos e a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, para as matérias da sua competência, exercerão a autoridade da Santa Sé, vigiando a respeito da observância destas disposições”.

A novidade deste artigo não está no fato de que as Congregações exerçam autoridade em nome da Santa Sé, pois isso é o que constitui a essência de um dicastério — do grego, dikastes, juiz, pois julgam em nome do Romano Pontífice — e nem que o façam nas matérias em que são competentes.

As novidades deste artigo são duas. A primeira é que, extinta completamente a Comissão Ecclesia Dei, o rito tradicional passa a ser de competência da Congregação para o Culto Divino, do qual o prefeito recém nomeado é histórico inimigo, e, como dissemos ontem, os Institutos tradicionais passam a depender da Congregação para os religiosos, cujo prefeito é alérgico a qualquer coisa que relembre a Tradição.

A segunda novidade é que essas Congregações devem exercer vigilância para que o Motu Proprio seja devidamente observado. Em outras palavras, Francisco está dizendo que isso aqui não ficará apenas no papel: haverá censura, haverá perseguição, haverá silenciamento, haverá supressão, haverá sanção canônica, haverá desaparecimento. Em outras palavras, estamos já sob o regime de uma ditadura tão férrea quanto a da União Soviética ou da China. Os organismos da Igreja estão com as armas direcionadas para a nossa cabeça. Os tradicionalistas estão sob o alvo dos modernistas. Agora é a hora do ataque.

Eles não têm pressa. Não se trata de uma questão que precise ser resolvida de modo imediato. O aparato institucional já foi criado e, agora, basta ir calmamente aplicando as meditas de intervenção, na expectativa de que os mais covardes desistam de antemão da resistência.

Do ponto de vista da liturgia, a Congregação para o Culto Divino pode facilmente emitir decretos, por exemplo, autorizando a Comunhão na mão nas Missas Tridentinas ou alterando o calendário litúrgico para que se adapte ao novo; se o próprio Francisco já tentou enfiar o lecionário novo no missal antigo, o que lhes impede de mudar rubricas e impor novas orações? Não é de se descartar que, dentro de pouco tempo, haja padres celebrando a Missa tradicional com túnica morcegão e estola de crochê, que se introduzam cânticos carismáticos no lugar do graduale e do kyriale e que se imponha ministros leigos da comunhão e até leitores e leitoras. É para isso que o rito tradicional enquanto tal mudou de competência. A hora é de anarquizar.

Em todo caso, a vigilância é o que se quer impor, mais do que qualquer mudança imediata. Quer-se introduzir o medo, a mentalidade de controle. Não existe tolerância por parte de modernistas e aos conservadores é necessário ter ciência disso! Trata-se da imposição pura e simples. Aí não há diálogo, sinodalidade, comunhão, pluralidade, igualdade; há somente supremacia e destruição! É disso que se trata. Da parte do bom clero católico, resta apenas a resistência sóbria e corajosa, pois “o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir – tamquam leo rugiens –, procurando a quem tragar” (1Pd 5,8).

A fronte praecipitium, a tergo lupi.

Por FratresInUnum.com, 29 de julho de 2021 – O fim de toda lei é o bem comum. Ausente tal princípio, não há lei, mas apenas um simulacro. Como já abundantemente demonstramos em nossas análises anteriores de “Traditionis Custodes”, este é o seu caso. A autoridade pontifícia está empenhada num puro e simples ato de violência, de agressão ao corpo eclesial, e, portanto, pode e deve ser resistida.

Cardeal João Braz de Avis, o representante brasileiro no consistório de hoje.
Cardeal João Braz de Avis.

O art. 6 do documento diz que “os institutos de vida consagrada e as Sociedades de vida apostólica, ao seu tempo erigidos pela Pontifícia Comissão Ecclesia Dei passam à competência da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica”.

Ora, tal ato não é senão o decreto de uma pena de morte às Congregações tradicionalistas. Coisa, aliás, que vem muito a calhar com todo o teor do Motu Proprio. Se os grupos tradicionais precisam ser restringidos até desaparecerem, para que se fundarão seminários a fim de se continuar ensinando a liturgia antiga? Nada mais coerente que extingui-los por completo.

Contudo, Bergoglio não é homem de palavras, mas de ações. Ele jamais declararia tal coisa, prefere agir sem dizê-lo ou, que é lhe é melhor ainda, agir sem agir, deixando outro sujar as mãos em seu lugar: no caso, o eminentíssimo Prefeito da Congregação, ninguém menos que o cardeal brasileiro João Braz de Aviz.

Para quem Francisco está entregando os institutos tradicionalistas?

Para aquele que disse em uma entrevista:

“Estamos trabalhando muito para a transformação da formação. Devemos pensar em formação desde o ventre até o último alento […]. Tudo conta na formação, não se pode dizer que uma coisa é formação e a outra não é […] é necessário mudar muito […] Muitas coisas da tradição, muitas das quais pertencem à cultura de um tempo passado, não funcionam mais. […] Temos formas de vida que estão ligadas aos nossos fundadores mas que não são essenciais. Uma certa maneira de rezar, uma certa maneira de se vestir, dando mais importância a certas coisas que não são tão importantes e dando pouca a outras que são importantes. Essa visão global do conjunto, nós não a tínhamos antes, mas agora temos”.

Dom João Braz de Aviz não tolera nada de outros tempos, eliminando implacavelmente até os seus cabelos brancos.

Muitas congregações foram comissariadas no tempo de Braz de Aviz. Por exemplo, Pequenas Irmãs de Maria, Mãe do Redentor na qual se dizia que não iriam tocar em seu carisma, mas apenas no modo e vivê-lo. As irmãs eram criticadas por rezar demais (sic!). Resultado: quase todas abandoram o instituto.

O Secretário da Congregação, Mons. Carballo, disse em entrevista que “para consagrados, o Concílio (Vaticano II) é um ponto que não pode ser negociado. E afirmou que aqueles que buscam nas reformas do Vaticano II todos os males da vida religiosa ‘negam a presença do Espírito Santo na Igreja’. Explicou que na Congregação para a Vida Consagrada estão ‘especialmente preocupados’ com este tema: estamos vendo verdadeiros desvios. Sobretudo porque ‘não poucos institutos dão não só uma formação pré-conciliar, mas também anti-conciliar. Isso não é admissível, é se colocar fora da história. É algo que nos preocupa muito na Congregação’”.

Foi justamente esta Congregação que misericordiosamente comissariou os Franciscanos da Imaculada, acusando-os de “rezar em latim, viver a pobreza, não aderirem à ‘teologia de gênero’ (seja lá o que for isso) e por fazerem um voto a Nossa Senhora”. O resultado do comissariamento foi a decaptação da Congregação, com a expulsão do fundador e o seu isolamento numa clausura forçada, e a dissipação dos seus membros, de modo que o fulgurante Instituto praticamente acabou.

Em entrevista posterior, o Cardeal Aviz resumiu o problema dos Franciscanos da Imaculada: “O problema é a ‘negação do Concílio’ escondida por detrás da ‘referência ao rito extraordinário’”.

Estes são apenas dois exemplos de muitos outros que se poderiam dar.

Recentemente, o Cardeal Braz de Aviz disse que que “o seguimento de Cristo é a nossa regra suprema. Hoje estivemos com o Santo Padre, e o Papa está preocupado por algumas posições tradicionalistas, também no seio da vida religiosa”. Segundo ele, em entrevista à Revista Veja, o Papa lhe teria confidenciado: “Peço a Deus a graça de viver o suficiente para que as reformas na Igreja sejam irreversíveis”.

Ah, Francisco! Ah, Francisco! A Igreja não é sua, mas Dele!

Em resumo, o art. 6 não significa apenas uma mudança de competência, mas é uma claríssima sentença de morte para os Institutos que estavam ligados à Comissão Ecclesia Dei. Os motivos para comissariamentos e supressões se encontrarão depois, são apenas desculpas a serem inventadas. O fato é que não se pretende o bem de tais institutos. Francisco realiza o seu perfeito encurralamento, segundo o antigo adágio latino: “pela frente, o precipício, por trás, os lobos” – “a fonte praecipitium, a tergo lupi”.

Vetus melius est.

Por FratresInUnum.com, 28 de julho de 2021 – É impossível suprimir da memória uma experiência maravilhosa. Não há como desfazer-se de algo bom que se viveu nem como desviver o melhor que tenha acontecido. É assim que boa parte do clero experimentou a redescoberta da Missa tradicional.

Missa Pontifical de Dom Guido Pozzo - Basílica de São Pedro, 16 de setembro de 2017
Missa Pontifical de Dom Guido Pozzo – Basílica de São Pedro, 16 de setembro de 2017

Sonegaram-lhes o latim, a batina, a tradição; não lhes informaram sobre nada, foram eles vítimas dos laboratórios mais esdrúxulos jamais excogitados sequer pelo Dr. Pavlov, tornou-se-lhes inacessível o caminho para o tesouro do catolicismo. E, ainda mais, encheram-lhes a cabeça com lixo revolucionário, teologia da libertação, missas inculturadas, músicas engajadas, pastorais ativistas… Isolaram-se-lhes numa ilha em que as notícias sobre a Missa antiga chegavam-lhes apenas por resquícios mínimos, praticamente pela poeira do tempo.

De repente, reeditam-se missais, divulgam-se vídeos explicativos, fazem-se cursos de latim, disponibiliza-se o acesso à liturgia de sempre… Os padres recomeçam a viver, encontram na liturgia antiga o perfeito encaixe para a doutrina imperecível. Começa o tempo Summorum Pontificum! Florescem comunidades tradicionais por todos os lados e os padres encontram na Missa de Sempre a perfeita reverberação para o seu sacerdócio.

Agora, não basta Francisco proibir os novos padres de celebrarem a missa antiga, ele também tenta limitar a faculdade dos próprios padres que já a celebravam de a continuarem celebrando. Ele diz o art. 5: “os presbíteros que já celebram segundo o Missale Romanum de 1962, (sic!) pedirão ao Bispo diocesano a autorização para continuar a valer-se da faculdade”.

Em termos jurídicos, esta simples linha de Francisco contém absurdidades quase inacessíveis ao leitor comum: no mesmo tempo em que ele implicitamente reconhece que os padres tenham a faculdade de celebrar segundo o usus antiquor, ele condiciona esta faculdade a que eles peçam a autorização do bispo para valerem-se dela. Ele faz mais um jogo de palavras unicamente porque não pode negar que os padres têm já esta faculdade e que esta não lhes pode ser retirada sem uma justa razão ou por uma pena eclesiástica.

Dizendo-o de outro modo: os padres têm a faculdade mas, para usar a faculdade que eles já têm, precisam pedir para que o bispo lhas permita usar. Portanto, a faculdade não é concedida pelo bispo, porque os padres já a têm na mesma extensão em que podem celebrar a Missa, mas seria o bispo que lhes autorizaria a usar, embora eles já a possuam.

Com este malabarismo verbal, Francisco consegue apenas criar algumas impressões: a de que os padres estão proibidos de usar a faculdade sem a autorização do bispo; a de que o bispo outorga a faculdade, sem a qual os padres não poderiam celebrar, e, portanto, que o poder do bispo aumenta; e, especialmente, que nem privadamente o padre poderia fazer uso da faculdade que ele já tem sem antes solicitar a autorização do seu bispo.

Embora Bergoglio derrogue todas as disposições em contrário, como é de praxe se fazer num Motu Proprio, é um princípio legal que um privilégio ou faculdade só possam ser revogados de maneira explícita, além do fato de que, dada a natureza da Missa Tradicional (restaurada por S. Pio V, por ele fixada e nunca ab-rogada) e da relação da Missa com o sacerdócio, há aí qualquer coisa de irrevogável. Vale lembrar que o indulto de 1984 previa aquilo que Paulo VI também já reconhecia em seu tempo, isto é, que os sacerdotes têm o direito de privadamente celebrarem a Missa com um Missal nunca ab-rogado e que, ademais, podem admitir alguma assistência, visto que o mais adequado é que não celebrem de modo totalmente solitário, se possível.

É verdade que há alguns bispos conservadores que já se apressaram a exigir, inclusive, que os padres lhes peçam licença por escrito para celebrarem segundo a forma extraordinária, ao invés de simplesmente dizerem que, em sua diocese, eles estão simplesmente autorizados a fazê-lo, segundo a norma do direito. Isso, em rigor, nem precisa ser de modo escrito, valeria, para tanto, uma simples declaração verbal, caso não existisse tanto zelo em mostrar subserviência a Bergoglio.

Entretanto, fato é que os padres não estão minimamente vinculados a um pedido do bispo para celebrarem privadamente de acordo com o Missal de São Pio V. Motivos jurídicos para isto não faltam e o art. 5 do Motu Proprio de Francisco não passa de um truque de palavras que, ao fim e ao cabo, nada significam.

Fato é que os padres não vão parar de celebrar o rito tradicional. Os documentos anteriores estão muito bem calçados juridicamente e não é uma norma artificial que os vai anular. Há razões objetivas para que mantenham a sua plena vigência e, mais cedo ou mais tarde, a nova norma será completamente impugnada. É incontestável, porém, que, como tais, as palavras de Francisco são tão imprecisas que não vinculam a ninguém!

Bergoglio entende tanto de leis quanto de teologia tomista; isto é, nada. Ele não sabe que não existe como coibir um costume com papel e caneta. Não se trata apenas de uma disposição legal, trata-se de um poder real, poder que a Missa tradicional tem diretamente sobre a vontade dos que a celebram e ele, como papa, não possui, pois ele não pode forçar materialmente ninguém, nem sequer debaixo do seu teto.

O fascínio exercido pela liturgia católica sobre os sacerdotes não é apenas estético, é realmente sacramental: ou seja, a Missa de Sempre explica para o próprio sacerdote em que consiste o seu sacerdócio, pois “sacerdos pro Hostia”, o sacerdote existe para o sacrifício, para imolar a vítima. Não há como simplesmente deixar de fazê-lo. Os inovadores perderam! Esta é a verdade! Já não é mais possível esconder a lâmpada debaixo do alqueire.

Os padres antigos deixaram a Missa tradicional por pura obediência. Eles foram educados a serem dóceis aos seus superiores e acataram todas as disposições do Concílio, ainda que sofrendo (foram milhares que simplesmente largaram a batina). O movimento contrário, porém, é de outra natureza: os padres que trocaram a Missa nova pela Missa tradicional o fizeram não por uma motivação extrínseca, mas intrínseca, convencidos pela própria inteligência e pela própria vontade. E este caminho não tem volta. Nosso Senhor mesmo disse no Evangelho que “ninguém que bebeu do vinho velho quer já do novo, porque diz: ‘O vinho velho é melhor’ – ‘vetus melius est’” (Lc 5,39).

Non poteritis dissolvere!

Continuamos nossas análises ao motu proprio Traditionis Custodes.

Por FratresInUnum.com, 27 de julho de 2021 – A este ponto da leitura de “Traditionis Custodes”, o leitor terá percebido a total incoerência das palavras de Francisco. Se, de um lado, ele aclama os bispos como única autoridade para a permissão da celebração segundo o Usus Antiquor em suas dioceses, de outro, amarra-lhes as mãos com exigências impossíveis de serem cumpridas, além de descabidas e abusivas.

FB_IMG_1627399618886Uma primeira peregrinação reuniu mais de 600 jovens ligados à Missa Tridentina ocorreu na Espanha poucos dias após o documento, solenemente ignorado, do Papa Francisco.

O apogeu deste autoritarismo está no art. 4 do Motu Proprio: “os presbíteros ordenados depois da publicação do presente Motu Proprio, que pretendem celebrar com o Missale Romanum de 1962, devem apresentar uma requisição formal ao bispo diocesano, o qual, antes de conceder a autorização, consultará a Sé Apostólica”.

O jogo de palavras chega a ser alucinante. Ele diz que os bispos devem “consultar a Sé Apostólica” antes de “conceder a autorização”. Por que, se ele disse anteriormente que os bispos são a única autoridade a permitir que o Missal de João XXIII seja usado em suas Dioceses? Mais uma vez, um artigo anula o outro.

Contudo, esta contradição mostra a intenção que ele tem de que o Vaticano exerça uma fiscalização sobre as Dioceses e sobre os padres que celebram segundo a outrora “forma extraordinária”, de modo a ter o controle total sobre quem celebra, onde celebra, quando celebra, a fim de impedir a “proliferação” do catolicismo tradicional.

Nem as piores máfias, os mais controladores ditadores, as mais execráveis sociedades secretas exerceram tal poder policial. Bergoglio não tem pudor quando o assunto é reafirmar o seu despotismo. Ele não se importa nem em maquiá-lo sob aparências de liberdade. Ele impõe a mordaça e ainda se orgulha disso.

Entretanto, essa posição ditatorial demonstra muito bem que, no fundo, a apelação para tal autoridade controladora é sinal de que os progressistas sabem que estão perdendo. Eles são vítimas da dialética que eles tantos defendem: o rito novo é coisa de padre velho e os padres novos preferem a missa antiga. É simples assim!

Para a surpresa de ninguém, a liturgia reformada é um repelente de qualquer um que queira algo solene e sério. O espetáculo de grosserias e cafonices, de abusos e de invencionismos é tão constrangedor quanto uma vovó de minissaia. E o fingimento de que a reforma litúrgica funcionou, de que estamos numa primavera eclesial, de que é tudo lindo e maravilhoso depois do Vaticano II já não engana mais ninguém. Os jovens não querem fazer parte desta impostura, eles têm saudades daquilo que eles nunca viram.

Em certo sentido, a proibição de Francisco fará com que a liturgia antiga seja ainda muito mais atrativa. Os padres que se ordenarem já sabem do que se trata: as múmias conciliares tentaram sepultar milênios de tradição e, agora, para o seu completo desespero, tudo voltou, aquilo que parecia ter morrido ressuscitou dos mortos. E eles não estavam preparados para isso, assim como os sumos sacerdotes dos judeus não estavam.

Ressuscitou. Não dá pra matar a liturgia tradicional rediviva. Não há decreto que a controle. A proibição apenas aumentará o heroísmo e o desejo de voltar à “paz litúrgica”.

A própria proibição de que os neo-sacerdotes celebrem a Missa Tradicional mostra que a missa nova não tem futuro e que a tentativa de garantir-lhe uma sobrevida mediante a imposição é somente um paliativo num processo em si mesmo irreversível. A medida de Francisco é, em si mesma, uma confissão de morte e decrepitude.

Mas a situação para eles é ainda pior, pois, mesmo controlado todos os seminários, todas as faculdades de teologia, todas as conferências de congregações religiosas, todas as conferências episcopais, todos os organismos da Igreja e até o papado, mesmo assim, os jovens preferem a missa tradicional do que garantir uma carreira bajulando-os. De onde vem isso? Os seminaristas, de fato, não são formados segundo a mentalidade antiga. O natural, seria que preferissem a missa nova…

Isso vem, portanto, da graça divina. E não adianta tentar proibir Deus. É isso que Bergoglio não entende. Ele não tem a sabedoria de Gamaliel, que disse ao Sinédrio: “eu vos aconselho: não vos metais com estes homens. Deixai-os! Se o seu projeto ou a sua obra provém de homens, por si mesma se destruirá; mas, se provier de Deus, não podereis desfazê-la – non poteritis dissolvere. Vós vos arriscaríeis a entrar em luta contra o próprio Deus” (At 5,38-39).

Francisco prefere pagar pra ver, mas não vai adiantar. Ninguém entra para um seminário e se priva dos regalos da vida para se entregar a um teatro; os jovens querem ser católicos de verdade. Assim como uma massa cresce mais quando é bem sovada, os golpes deferidos contra a Missa Tradicional só a farão crescer, inclusive entre os padres novos, ainda que de maneira escondida, ainda que na clandestinidade. Se a geração anterior nunca tinha visto uma missa tradicional e conseguiu resgatá-la, quanto mais agora… Ninguém detém o braço de Deus!

“A liturgia não é um brinquedo dos Papas; é a herança da Igreja”. Fortíssima declaração de Dom Rob Mutsaerts (bispo auxiliar de Den Bosch, Holanda).

Um mau decreto do Papa Francisco

Por Dom Rob Mutsaerts, bispo auxiliar de ‘s-Hertogenbosch, Holanda, 22 de julho de 2021

Tradução de FratresInUnum.com por meio de versão inglesa de Rorate-Caeli

O Papa Francisco promove a sinodalidade: todos devem ser capazes de falar, todos devem ser ouvidos. Esse dificilmente foi o caso com seu motu proprio Traditionis Custodes recentemente publicado, um ukase [edito imperial] que deve encerrar imediatamente a missa tradicional em latim. Ao fazê-lo, Francisco coloca uma grande tarja em Summorum Pontificum, o motu proprio do Papa Bento XVI que deu amplo alcance à missa antiga.

O fato de Francisco usar aqui a palavra de poder sem nenhuma consulta indica que ele está perdendo autoridade. Isso já ficou evidente antes, quando a Conferência dos Bispos Alemães não tomou conhecimento do conselho do Papa sobre o processo de sinodalidade. O mesmo ocorreu nos Estados Unidos, quando o Papa Francisco pediu à Conferência Episcopal que não preparasse um documento sobre a dignidade da Comunhão. O Papa deve ter pensado, agora que estamos falando sobre a missa tradicional, que seria melhor [neste caso] não dar mais conselhos, mas sim uma ordem de execução!

A linguagem usada se parece muito com uma declaração de guerra. Todos os papas desde Paulo VI sempre deixaram aberturas para a missa antiga. Se alguma mudança foi feita [naquela abertura], foram pequenas revisões – veja, por exemplo, os indultos de 1984 e 1989. João Paulo II acreditava firmemente que os bispos deveriam ser generosos em permitir a Missa Tridentina. Bento XVI abriu as portas com Summorum Pontificum: “O que no passado era sagrado continua sagrado agora”. Francisco bate a porta com força através dos Traditionis Custodes. Parece uma traição e é um tapa na cara de seus antecessores.

A propósito, a Igreja nunca aboliu as liturgias. Nem mesmo Trento [o fez]. Francisco rompe totalmente com essa tradição. O motu proprio contém, de forma breve e firme, algumas proposições e ordens. As coisas são explicadas com mais detalhes por meio de uma carta mais longa que o acompanha. Esta declaração contém alguns erros factuais. Uma delas é a afirmação de que o que Paulo VI fez depois do Vaticano II é o mesmo que Pio V fez depois de Trento. Isso está completamente longe da verdade. Lembre-se de que antes daquela época [de Trento] havia vários manuscritos  em circulação e liturgias locais surgiram aqui e ali. A situação era uma bagunça.

Trento queria restaurar as liturgias, remover imprecisões e garantir a ortodoxia. Trento não estava preocupado em reescrever a liturgia, nem com novos acréscimos, novas orações eucarísticas, um novo lecionário ou um novo calendário. O objetivo era garantir a continuidade orgânica ininterrupta. O missal de 1570 remonta ao missal de 1474 e assim sucessivamente ao século IV. Houve continuidade a partir do século IV. Após o século XV, existem mais quatro séculos de continuidade. Vez ou outra ocorriam no máximo algumas pequenas alterações – um acréscimo de uma festa, comemoração ou rubrica.

No documento conciliar Sacrosanctum Concilium, o Vaticano II pediu por reforma litúrgica. Considerando todos os pontos, foi um documento conservador. O latim foi mantido, o canto gregoriano manteve seu legítimo lugar na liturgia. No entanto, os desenvolvimentos que se seguiram após o Vaticano II estão muito distantes dos documentos do concílio. O infame “espírito do concílio” não pode ser encontrado nos próprios textos conciliares. Apenas 17% das orações do antigo missal de Trento podem ser encontradas [intactas] no novo missal de Paulo VI. Mal se pode falar de continuidade, de um desenvolvimento orgânico. Bento XVI reconheceu isso e por isso deu amplo espaço à Missa antiga. Chegou a dizer que ninguém precisava de sua permissão (“o que era sagrado então ainda é sagrado agora”).

O Papa Francisco pretende agora que seu motu proprio faça parte do desenvolvimento orgânico da Igreja, o que contradiz totalmente a realidade. Ao tornar a missa em latim praticamente impossível, ele finalmente rompe com a antiga tradição litúrgica da Igreja Católica Romana. A liturgia não é um brinquedo dos papas; é a herança da Igreja. A Missa antiga não é sobre nostalgia ou gosto. O Papa deve ser o guardião da Tradição; o Papa é um jardineiro, não um fabricante. O direito canônico não é apenas uma questão de direito positivo; existe também a lei natural e a lei divina e, além disso, existe algo chamado Tradição que não pode ser simplesmente deixado de lado.

O que o Papa Francisco está fazendo aqui não tem nada a ver com evangelização e muito menos a ver com misericórdia. Tem a ver mais com ideologia.

Vá a qualquer paróquia onde a Missa antiga seja celebrada. O que você encontra aí? Pessoas que querem apenas ser católicas. Geralmente, essas pessoas não se envolvem em disputas teológicas, nem são contra o Vaticano II (embora sejam contra a maneira como ele foi implementado). Eles amam a missa em latim por sua sacralidade, sua transcendência, a salvação das almas que é central, a dignidade da liturgia. Você encontra famílias numerosas; as pessoas se sentem bem-vindas. Ela só é celebrada em poucos lugares. Por que o Papa quer negar isso às pessoas? Volto ao que disse antes: é ideologia. Ou é o Vaticano II – incluindo sua implementação, com todas as suas aberrações – ou nada! O número relativamente pequeno de fiéis (um número crescente, aliás, à medida em que o Novus Ordo está entrando em colapso) que se sentem em casa com a missa tradicional deve e será erradicado. Isso é ideologia e maldade.

Se realmente se quer evangelizar, ser verdadeiramente misericordioso, apoiar as famílias católicas, então é necessário garantir honra à Missa Tridentina. A partir da data do motu proprio, a Missa antiga não pode ser celebrada nas igrejas paroquiais (onde então?); é necessária permissão explícita de seu bispo, que a pode permitir apenas em certos dias; para aqueles que serão ordenados no futuro e desejam celebrar a Missa antiga, o bispo deve pedir orientação de Roma. Quão ditatorial, quão impastoral, quão impiedoso se deseja ser!

Francisco, no artigo 1 de seu motu proprio, chama o Novus Ordo (a presente missa) de “a expressão única da Lex Orandi do Rito Romano”. Ele, portanto, não mais distingue entre a forma ordinária (Paulo VI) e a forma extraordinária (Missa tridentina). Sempre foi dito que ambas são expressões da Lex Orandi, não apenas do Novus Ordo. Novamente, a Missa antiga nunca foi abolida! Nunca ouvi de Bergoglio sobre os muitos abusos litúrgicos que existem aqui e ali em inúmeras paróquias. Nas paróquias, tudo é possível – exceto a Missa Tridentina. Todas as armas são lançadas na guerra para erradicar a Missa Antiga.

Por quê? Pelo amor de Deus, por quê? Qual é a obsessão de Francisco de querer erradicar* aquele pequeno grupo de tradicionalistas? O Papa deve ser o guardião da Tradição, não o carcereiro da Tradição. Enquanto Amoris Laetitia se destacou na imprecisão, Traditionis Custodes é uma declaração de guerra perfeitamente clara.

Suspeito que Francisco está atirando no próprio pé com este motu proprio. Para a Fraternidade São Pio X, será uma boa notícia. Eles nunca serão capazes de supor o quanto devem ao Papa Francisco…

[* O bispo aqui usa a palavra alemã carregada ausradieren, que foi usada por Hitler quando ele falava em apagar cidades do mapa: “Wir werden ihre Städte ausradieren.”]

Sententia mortis.

Por FratresInUnum.com, 26 de junho de 2021 – “A mão que balança o berço” é um filme de 1992, que conta a história de uma babá vingativa e psicopata que manipula uma mulher ingênua com a pretensão de roubar a sua família. No começo, Peyton, a babá, aparece como uma cuidadora perfeita, mas, aos poucos, o seu comportamento vai se mostrando estranho e, por fim, demoníaco.

O sucesso do filme se deve ao fato de que ele descreve condutas que vemos com certa frequência na realidade: pessoas maquiavélicas que disfarçam as suas más intenções através de palavras doces e bonitas, travestindo-as com os sentimentos mais cristãos e piedosos, mas que, no fundo, são predatórias, homicidas.

É esta a meiguice do art. 3 §5-6 de “Traditionis custodes”: o bispo, nas dioceses nas quais até agora existe a presença de um ou mais grupos que celebram segundo o Missal antecedente à reforma de 1970: proceda, nas paróquias pessoais canonicamente erigidas em benefício desses fieis, a uma côngrua verificação em ordem à efetiva utilidade para o crescimento espiritual, e avalie se deve mantê-las ou não; terá cuidado de não autorizar a constituição de novos grupos”. 

Ou seja, de um lado, mostra gentilmente a preocupação com o benefício dos fieis tradicionais e, de outro, chega já com a sentença de morte e de não reprodução: acabe-se com as paróquias pessoais e tome-se cuidado para que elas não se multipliquem, para que não haja novos grupos como esses.

Bergoglio quer aplicar aos fieis tradicionalistas uma espécie de eutanásia eclesial. Não basta confiná-los num gueto excêntrico, marginalizá-los como fora da “lex orandi” (ação de todo absurda), violentar o Usus Antiquor para adaptá-lo ao rito moderno, violentar os próprios fieis católicos para que se adequem à nova pastoral ativista e estéril, em suma, infernizá-los para que sejam tudo, menos tradicionais; é necessário também suprimir as suas paróquias e proibir qualquer reprodução. É preciso matá-los.

Isto é violento. Muito violento. Contudo, é mais violento quando acrescido pela violência psicológica de uma gentileza fingida. É macabro! É como alguém lhe enfiar um punhal com um olhar doce e um sorriso meigo: “é tudo para o seu benefício e para o seu crescimento espiritual”.

Como pode existir benefício com a completa supressão? Como pode haver crescimento com a proibição de crescer, de expandir-se, de multiplicar-se?

O texto do Motu Proprio é não apenas contraditório, pois propõe chegar a uma finalidade por meios inidôneos para tanto, mas também é cruel, desumano, maligno, incompatível com a caridade, assim como a eutanásia não pode ser adequada ao amor ao próximo, pois é a sua extinção, o seu completo cancelamento. Bergoglio o sabe e o faz de propósito. A maquinação por detrás dessas formulações textuais o deixa claro e não há como dissuadir-se disso.

Acontece que o desejo de eliminar completamente a oposição é típico dos revolucionários. Como eles se sentem investidos de um messianismo absoluto (não é por nada, mas ele escolheu como nome papal “Francisco”, São Francisco de Assis, “o último depois do único”) e portadores da nova era paradisíaca, sentem-se inteiramente justificados para querer a morte de todos os que pensam diferentemente deles, especialmente dos que são um impedimento para que se alcance aquele maravilhoso futuro de que se autodeclaram representantes. Em nome do paraíso de amanhã, que nunca chegará, não encontram inconvenientes em criar o inferno hoje. É assim que procederam todos os socialistas: mataram os seus opositores e, quando não o puderam fazer fisicamente, fizeram-no jurídica ou moralmente, pelo assassinato das suas reputações e pela impossibilitação de que eles tivessem em suas mãos algum meio de ação.

A eutanásia se apresenta como a mais humana das mortes, a mais gentil, a mais doce e até a mais caridosa. É matar por amor, para acabar com um sofrimento. Hitler também dizia que “devemos ser cruéis com a consciência limpa e destruir de maneira técnico-científica”. Aqui, de maneira canônica, com as luvas do direito para não sujar as mãos de sangue.

Por detrás da gentileza de uma babá, esconde-se a malignidade de uma assassina inescrupulosa; sob a máscara do bem e do cuidado, a sentença de morte, o “requiescat in pace” de quem quer desfazer-se o quanto antes do rival para apoderar-se mais rapidamente de toda a casa e simpaticamente dominar os seus moradores. 

 

Missa em latim? Não! Missa em eclesialês. 

Por FratresInUnum.com, 25 de julho de 2021 – Quanto mais avança a leitura do Motu Proprio de Francisco, mais fica clara a completa inconsistência intrínseca do texto e também a ideia de que é simplesmente impossível obedecê-lo, dada a incoerência interna e o absurdo de suas requisições.

No art. 3 § 4 da versão italiana, que presume-se ser a oficial, dada ter sido a primeira divulgada, ele diz que “o bispo, nas dioceses nas quais até agora existe a presença de um ou mais grupos que celebram segundo o Missal antecedente à reforma de 1970: nomeie, (sic!) um sacerdote que, como delegado do bispo, seja encarregado das celebrações e da cura pastoral de tais grupos de fieis. O sacerdote seja idôneo para tal encargo, seja competente em ordem à utilização do Missale Romanum antecedente à reforma de 1970, tenha um conhecimento da língua latina tal que lhe consinta de compreender plenamente as rubricas e os textos litúrgicos, seja animado por uma viva caridade pastoral, e por um senso de comunhão eclesial. É de fato necessário que o sacerdote encarregado tenha no coração não apenas a digna celebração da liturgia, mas a cura pastoral e espiritual dos fieis”.

A primeira coisa que chama a atenção no texto de Francisco é a insistência em que, para celebrar a Missa tradicional, o sacerdote tenha um conhecimento aprofundado da língua latina… Se o mesmo princípio fosse aplicado para o vernáculo, teríamos que abolir a celebração da Missa oficialmente em quase toda a face da terra, a começar pelo… Papa.

O próprio texto em que ele diz isso contém um erro gramatical primário: ele diz “nomeie”, ou seja, usa um verbo que requer um objeto e, na sequência, coloca uma vírgula, separando sujeito e objeto: “nome, um sacerdote que etc”. Ora, se nem ele sabe escrever em vernáculo, como pode exigir que os outros saibam a gramática latina?

O número de padres que, em suas homilias, são incapazes de fazer uma concordância verbal ou nominal, que não conseguem concluir uma frase com lógica e que cometem os mais grotescos erros de pura e simples regência frasal só não excede ao quase infinito número dos erros filosóficos e teológicos que se multiplicam numa velocidade inversamente proporcional com a das suas inteligências. 

Mas o pior é o cinismo de requerer do sacerdote que celebra a Missa tradicional que o mesmo tenha cura pastoral e espiritual dos fieis, enquanto ele mesmo, o Papa, comete um ato de agressão suprema e assimétrica contra estes mesmos fieis, aos quais ele sonega nada mais, nada menos que a simples celebração da Santa Missa e dos sacramentos na forma extraordinária. 

É evidente que ele entende por “cura pastoral” a perturbação que um padre modernista deve causar no juízo de um fiel tradicional para demovê-lo de sua adesão a Deus e à “lex credendi” que, em sua mente invertida, é oposta ao Concílio Vaticano II. Então, estes católicos que querem rezar o seu terço, confessar contritamente, comungar com devoção, deverão render-se ao ativismo de assembleias diocesanas, reuniões de pastorais, calendários paroquiais, planos de missionariedade e diocesaneidade, comunidades eclesiais de base, conscientização de rua, enfim, tudo, menos aquilo que qualquer católico quer: adorar a Deus, salvar a sua alma e fazer apostolado, muito apostolado. É isso que Francisco entende por “comunhão eclesial”.

Em outras palavras, para ser católico tradicional, a ovelha vai ter que se adaptar a todas as chatices inúteis inventadas por freiras desocupadas e por padres inquietos, com a desculpa de que “precisa caminhar junto com as pastorallll”. Se brincar, vai ter até crachá e jaleco desbotado, pastoral da acolhida e equipe de liturgia na Missa de Sempre. E é claro: a viola, sempre a viola!

O problema é que este espírito horizontalista da pastoral pós-Conciliar é exatamente oposto ao espírito da pastoral de todos os tempos da Igreja, que sempre esteve preocupada com a celebração dos sacramentos, o ensino da doutrina, dos mandamentos da lei de Deus e da oração, em suma, com a salvação das almas. E é disso que se trata, restringir a Missa de sempre e circunscrevê-la aos limites do ativismo estéril da criatividade dos pastoralistas de plantão.

Se no § 3 Francisco exigiu o vernáculo e no § 4 exigiu o latim, foi unicamente para impor o único idioma: o eclesialês autorreferencial da Igreja pós-Conciliar, este idioma maluco que só entende quem está doutrinado segundo a militância da teologia da libertação.

Vernaculum?

Por FratresInUncum.com, 24 de julho de 2021 – As Sagradas Escrituras nos contam que os homens, em seu intento de construírem uma torre que tocasse o cimo do céu, foram confundidos por Deus com a multiplicidade das línguas. Desde então, não nos foi possível mais construir uma “cidade comum”. 

Em Pentecostes, este fenômeno inverteu-se. O Espírito Santo deu aos Apóstolos o dom de serem compreendidos por todos em sua própria “língua materna”. Desde então, quanto mais os homens se uniram pela unanimidade da mesma fé, tanto mais tiveram a necessidade de construírem uma linguagem comum que lhes ajudasse a se comunicarem de maneira precisa e direta.

Não foi sem razão que a Divina Providência permitiu que primeiramente o grego se difundisse no mundo pelo império de Alexandre Magno e que, depois, viessem os romanos e abrissem estradas por todos os lados, construindo a base que futuramente seria utilizada pelos Apóstolos como a rede pela qual eles fariam a evangelização dos povos. Também não foi sem razão que Deus quis que o Império Romano caísse e fosse substituído pelo esplendor da Sede Apostólica, que gerou e deu à luz à civilização ocidental.

“Lingua materna”, o latim sempre foi tido como língua da Igreja, idioma pelo qual os filhos dispersos desta Mãe fecunda se comunicariam, filosofariam, teologariam e, sobretudo, apresentariam a Deus o sacrifício eucarístico. Em qualquer lugar do mundo, portanto, um católico poderia sentar-se ao lado de outro católico para entender a Santa Liturgia. A língua latina não era um empecilho; pelo contrário, era o sinal da unidade de toda a Igreja, por todo o mundo.

A isto – faça-se justiça – nem o Concílio Vaticano II ousou-se opor. Os papas que o sucederam, apesar de terem consentido com a invasão bárbara das línguas vernáculas, jamais tiveram a coragem de defendê-la como um princípio, coisa que acaba de fazer Francisco em seu “Traditionis Custodes” – o nome sarcástico do documento é ainda mais sublinhado diante dessas nuances revolucionárias.

Pois bem, aquilo que o homem entende como um progresso é, de fato, um castigo: a civilização cristã perdeu unidade, diluiu-se na multiplicidade das línguas e já não é mais capaz de entender-se, sequer em sua liturgia.

Agora, Francisco quis impor tal descalabro em seu Motu Proprio. No art. 3 § 3 ele diz: “o bispo, nas dioceses nas quais até agora existe a presença de um ou mais grupos que celebram segundo o Missal antecedente à reforma de 1970: estabeleça no lugar indicado os dias em que são permitidas as celebrações eucarísticas com o uso do Missal Romano promulgado por São João XXIII em 1962. Nestas celebrações, as leituras sejam proclamadas em língua vernácula, usando as traduções da Sagrada Escritura para o uso litúrgico, aprovadas pelas respectivas Conferências episcopais”.

A exigência de Francisco de que as leituras sejam feitas em língua vernácula é extremamente abusa, inclusive pelo fato de que nem no Novus Ordo é obrigatório que se utilizem as traduções para as leituras: “No caso de que a proclamação se faça em língua latina, atenha-se à modulação indicada no Ordo cantus Missae” (Missal Romano, Introdução geral ao Lecionário, n. 14). Ademais, se diz também que “a proclamação da palavra de Deus na assembleia litúrgica deve sempre ser feita a partir dos textos latinos preparados pela Santa Sé ou das versões para o uso litúrgico aprovadas pelas Conferências Episcopais, em conformidade com as normas vigentes” (n. 111).

Portanto, a aversão que Bergoglio manifesta ter da língua latina não tem nenhum respaldo legal, nem no Concílio Vaticano II nem nos textos emitidos pelo Consilium ad exsequendam constitutionem de sacra liturgia (perdoem-nos, vamos traduzir para o vernáculo: Conselho para a execução da Constituição sobre a Sagrada Liturgia).

Contudo, o problema aqui não é meramente linguístico. Em nosso artigo de ontem, contamos o fato pouco conhecido de quando o Card. Bergoglio criou a primeira capelania Summorum Pontificum do mundo. Uma das imposições que ele fez foi a de se usar o lecionário da Missa Nova, que as leituras fossem proclamadas em vernáculo e também fossem feitas por pessoas leigas, tanto homens quanto mulheres.

Portanto, o que ele está querendo dizer aqui é que a Missa Tridentina precisa deixar de ser tridentina, ele não está apenas proibindo o rito tradicional, mas está violentando-o para que se adapte às normas do Novus Ordo, normas, aliás, que nem sequer se exigem pela força das leis litúrgicas nem sequer na Missa Nova (pois existem e podem ser usados os lecionários em latim). Daí a exigência de que se usem os textos das leituras aprovados pelas Conferências Episcopais para o uso na liturgia: não se tratam de simples traduções, mas do lecionário novo imposto para o rito antigo. A coisa é tão esdrúxula que nem a Fraternidade São Pio X entendeu de cara e se perguntou, no texto que publicamos dias atrás, o porquê de não se usar as traduções mais tradicionais, como a de Dom Gaspar Lefebvre.

Este Motu Proprio está tão mal escrito, é tão absurdamente ininteligível, que mesmo coisas desse tipo não podem ser entendidas senão com grande esforço. O texto é apenas um sinal da mente perversa do pontífice reinante, um jesuíta peronista maquiavélico que conspira o tempo todo tentando esconder a sua cara.

Ora, é mais fácil entender o latim de São Pio V que o vernáculo de Bergoglio, pois o primeiro fala com sinceridade e clareza, o segundo escreve de modo sinuoso e traiçoeiro, não pode ser explícito, joga com palavras, é obscuro. O Motu Proprio de Francisco não pode ser obedecido, pois não se pode obedecer uma lei incerta, uma lei que não é lei; a culpa disso é dele. Quem manda escrever tão mal?… Quem mandou faltar nas aulas de gramática? Quem mandou faltar nas aulas de latim?

Declaração do Cardeal Burke sobre o Motu Proprio Traditionis Custodes.

Adaptado da versão portuguesa presente em Dies Irae.

Muitos fiéis — leigos, ordenados e consagrados — expressaram-me a profunda angústia que o Motu Proprio Traditionis Custodes lhes trouxe. Aqueles que estão afeiçoados ao Usus Antiquior (Uso Mais Antigo) [UA], que o Papa Bento XVI chamou de Forma Extraordinária do Rito Romano, estão profundamente desanimados com a severidade da disciplina que o Motu Proprio impõe e ofendidos pela linguagem que emprega para descrevê-los, assim como às suas atitudes e conduta. Como fiel, que também mantém um vínculo intenso com o UA, partilho plenamente dos seus sentimentos de profunda mágoa.

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Fiel beija o anel do Cardeal Raymond Burke, enquanto ele distribuía cumprimentos fora da Paróquia de St. Mary-St. Anthony em Kansas City, após a missa de 9 de fevereiro (NCR photo/George Goss)

Como Bispo da Igreja e como Cardeal, em comunhão com o Romano Pontífice e com a responsabilidade particular de assisti-lo no seu cuidado pastoral e no governo da Igreja universal, apresento as seguintes observações:  

  1. A título preliminar, deve-se perguntar por que o texto latino ou oficial do Motu Proprio ainda não foi publicado. Pelo que sei, a Santa Sé promulgou o texto nas versões italiana e inglesa, e, posteriormente, nas traduções alemã e espanhola. Visto que a versão em inglês é chamada de tradução, deve-se presumir que o texto original está em italiano. Se for esse o caso, há traduções de textos significativos na versão inglesa que não são coerentes com a versão italiana. No Artigo 1, o importante adjetivo italiano “unica” é traduzido para o inglês como “unique”, em vez de “only”. No Artigo 4, o importante verbo italiano “devono” é traduzido para o inglês como “should”, em vez de “must”.

  1. Em primeiro lugar, é importante estabelecer, nesta e nas duas observações seguintes (nn. 3 e 4), a essência do conteúdo do Motu Proprio. Da severidade do documento se depreende que o Papa Francisco emitiu o Motu Proprio para abordar o que ele entende ser um grave mal que ameaça a unidade da Igreja, ou seja, o UA. De acordo com o Santo Padre, aqueles que adoram de acordo com esse uso fazem uma escolha que rejeita “a Igreja e as suas instituições em nome daquela que eles julgam a ‘verdadeira Igreja’”, uma escolha que “contradiz a comunhão, alimentando aquela tendência divisiva (…) contra a qual reagiu firmemente o Apóstolo Paulo”.

  1. Claramente, o Papa Francisco considera o mal tão grande que tomou medidas imediatas, não informando os Bispos com antecedência e nem sequer prevendo a habitual vacatio legis, um período de tempo entre a promulgação de uma lei e a sua entrada em vigor. A vacatio legis proporciona aos fiéis e, especialmente, aos Bispos tempo para estudar a nova legislação relativa ao culto a Deus, o aspecto mais importante da sua vida na Igreja, com vista à sua implementação. A legislação, de fato, contém muitos elementos que requerem estudo quanto à sua aplicação.

  1. Além disso, a legislação impõe restrições ao UA, o que assinala a sua eliminação definitiva, por exemplo, a proibição de utilização de uma igreja paroquial para o culto segundo o UA e o estabelecimento de determinados dias para esse culto. Na sua carta aos Bispos de todo o mundo, o Papa Francisco indica dois princípios que devem guiar os Bispos na implementação do Motu Proprio. O primeiro princípio é “prover o bem daqueles que estão arraigados à forma anterior de celebração e precisam de tempo para regressar ao Rito Romano promulgado pelos santos Paulo VI e João Paulo II”. O segundo princípio é “interromper a ereção de novas paróquias pessoais ligadas mais ao desejo e à vontade de sacerdotes do que à real necessidade do ‘santo Povo fiel de Deus’”.

  1. Aparentemente, a legislação visa a correção de uma aberração atribuível, principalmente, ao “desejo e à vontade” de certos sacerdotes. A este respeito, devo observar, especialmente à luz do meu serviço como Bispo diocesano, que não foram os sacerdotes que, pela sua própria vontade, instaram os fiéis a solicitar a Forma Extraordinária. De fato, estarei sempre profundamente grato aos numerosos sacerdotes que, não obstante os seus já abundantes ​​compromissos, serviram generosamente os fiéis que legitimamente solicitaram o UA. Os dois princípios não podem senão comunicar aos fiéis devotos que têm um profundo apreço e apego ao encontro com Cristo através da Forma Extraordinária do Rito Romano, que eles sofrem de uma aberração que pode ser tolerada por um tempo, mas que deve ser finalmente erradicada.  

  1. De onde vem a ação severa e revolucionária do Santo Padre? O Motu Proprio e a Carta indicam duas fontes: primeiro, “os desejos formulados pelo episcopado” através de “uma minuciosa consulta dos bispos”, conduzida pela Congregação para a Doutrina da Fé em 2020, e, segundo, “o parecer da Congregação para a Doutrina da Fé”. Sobre as respostas à “consulta minuciosa” ou “questionário” enviado aos Bispos, o Papa Francisco escreve aos Bispos: “As respostas revelam uma situação que me preocupa e entristece, e me convence da necessidade de intervir”.

  1. Quanto às fontes, deve-se supor que a situação que preocupa e entristece o Romano Pontífice existe na Igreja em geral ou apenas em alguns lugares? Dada a importância atribuída à “consulta detalhada” ou “questionário”, e a gravidade do assunto que se trata, parece imprescindível que o resultado da consulta seja tornado público, juntamente com a indicação do seu caráter científico. Da mesma forma, se a Congregação para a Doutrina da Fé fosse da opinião que tal medida revolucionária deveria ser tomada, aparentemente teria preparado uma Instrução ou documento semelhante para abordá-la.     

  1. A Congregação conta com a perícia e a longa experiência de alguns oficiais — primeiro, servindo na Pontifícia Comissão Ecclesia Dei e, depois, na Quarta Seção da Congregação — que foram encarregados de tratar das questões relativas ao UA. Deve-se perguntar se o “parecer da Congregação para a Doutrina da Fé” refletiu a consulta daqueles com maior conhecimento dos fiéis devotos do UA.

  1. Em relação ao entendido grave mal constituído pelo UA, tenho uma vasta experiência ao longo de muitos anos e em muitos lugares diferentes com os fiéis que regularmente adoram a Deus de acordo com o UA. Com toda a franqueza, devo dizer que esses fiéis não rejeitam, de forma alguma, “a Igreja e as suas instituições em nome daquela que eles julgam a ‘verdadeira Igreja’”. Nem os encontrei fora da comunhão com a Igreja ou divisivos dentro da Igreja. Pelo contrário, amam o Romano Pontífice, os seus Bispos e sacerdotes, e, quando outros fizeram a escolha do cisma, eles quiseram permanecer sempre em plena comunhão com a Igreja, fiéis ao Romano Pontífice, muitas vezes à custa de grande sofrimento. Não se lhes pode imputar, de forma alguma, uma ideologia cismática ou sedevacantista.

  1. A Carta que acompanha o Motu Proprio afirma que o UA foi permitido pelo Papa São João Paulo II e, posteriormente, regulamentado pelo Papa Bento XVI com “o desejo de favorecer a resolução do cisma com o movimento liderado por Mons. Lefebvre”. O movimento em questão é a Fraternidade São Pio X. Embora ambos os Pontífices Romanos desejassem a resolução do cisma em questão, como deveriam todos os bons católicos, eles também desejavam manter em continuidade o UA para aqueles que permaneceram na plena comunhão da Igreja e não se tornaram cismáticos. O Papa São João Paulo II demonstrou caridade pastoral, de várias maneiras importantes, para com os fiéis católicos ligados ao UA, por exemplo, concedendo o indulto para o UA, mas também estabelecendo a Fraternidade Sacerdotal São Pedro, uma sociedade de vida apostólica para sacerdotes ligados ao UA. No livro O Último Testamento, o Papa Bento XVI respondeu à afirmação “a reautorização da Missa Tridentina é, muitas vezes, interpretada principalmente como uma concessão à Fraternidade de São Pio X” com estas palavras claras e fortes: “Isso é absolutamente falso! Era importante para mim que a Igreja fosse uma só consigo mesma interiormente, com o seu próprio passado; que o que antes era sagrado para ela não fosse, agora, errado de alguma forma” (pp. 201-202). De fato, muitos dos que atualmente desejam rezar de acordo com o UA, não têm experiência e talvez nenhum conhecimento da história e da situação presente da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. São simplesmente atraídos pela santidade do UA.

  1. Sim, existem indivíduos e até certos grupos que defendem posições radicais, tal como é o caso em outros setores da vida da Igreja, mas eles não são, de forma alguma, característicos do número cada vez maior de fiéis que desejam adorar a Deus de acordo com o UA. A Sagrada Liturgia não é uma questão da chamada “política da Igreja”, mas o encontro mais completo e perfeito com Cristo para nós neste mundo. Os fiéis em questão, entre os quais numerosos jovens adultos e jovens casais com filhos, encontram Cristo através do UA, que os torna cada vez mais próximos dele, através da mudança de vida e da cooperação com a graça divina que do Seu glorioso Coração trespassado brota para os seus corações. Eles não precisam fazer um julgamento sobre aqueles que adoram a Deus de acordo com o Usus Recentior (o Uso Mais Recente, que o Papa Bento XVI chamou de Forma Ordinária do Rito Romano) [UR], promulgado pela primeira vez pelo Papa São Paulo VI. Como me disse um sacerdote, membro de um instituto de vida consagrada que serve estes fiéis: Eu me confesso regularmente a um sacerdote de acordo com o UR e participo, em ocasiões especiais, da Santa Missa de acordo com o UR. Concluiu: Por que alguém me acusaria de não aceitar a sua validade?

  1. Se houver situações de atitude ou prática contrárias à sã doutrina e à disciplina da Igreja, a justiça exige que sejam abordadas individualmente pelos pastores da Igreja, pelo Romano Pontífice e pelos Bispos em comunhão com ele. A justiça é a mínima e insubstituível condição da caridade. A caridade pastoral não pode ser servida se as exigências da justiça não forem observadas.

  1. Um espírito cismático ou um cisma efetivo são sempre gravemente maus, mas não há nada no UA que fomente o cisma. Para quem conheceu o UA no passado, como eu, trata-se de um ato de culto marcado por uma bondade, verdade e beleza seculares. Eu conheci desde a minha infância a atração que ele exerce e, de fato, apeguei-me muito a ele. Tendo tido o privilégio de assistir o sacerdote como acólito da Missa desde os meus dez anos de idade, posso testemunhar que o UA foi uma grande inspiração da minha vocação sacerdotal. Para aqueles que vieram pela primeira vez ao UA, a sua rica beleza, especialmente porque manifesta a ação de Cristo renovando sacramentalmente o Seu Sacrifício no Calvário por meio do sacerdote que age na Sua pessoa, aproximou-os de Cristo. Conheço muitos fiéis para os quais a experiência do Culto Divino segundo o UA inspirou fortemente a sua conversão à Fé ou a procura da plena comunhão com a Igreja Católica. Além disso, numerosos sacerdotes que voltaram à celebração do UA ou que a aprenderam pela primeira vez disseram-me como esta enriqueceu profundamente a sua espiritualidade sacerdotal. Isso sem falar nos santos ao longo dos séculos cristãos para os quais o UA alimentou uma prática heróica das virtudes. Alguns deram as suas vidas para defender a oferta desta mesma forma de adoração divina.   

  1. Para mim e para outros que receberam tantas graças poderosas através da participação na Sagrada Liturgia segundo o UA, é inconcebível que ela agora possa ser caracterizada como algo prejudicial à unidade da Igreja e à sua própria vida. A este respeito, é difícil compreender o significado do Artigo 1 do Motu Proprio: “Os livros litúrgicos promulgados pelo santos Pontífices Paulo VI e São João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única (unica, na versão italiana, que aparentemente é o texto original) expressão da lex orandi do Rito Romano”. O UA é uma forma viva do Rito Romano e nunca deixou de sê-lo. Desde o momento da promulgação do Missal do Papa Paulo VI, como reconhecimento da grande diferença entre o UR e o UA, a continuação da celebração dos Sacramentos segundo o UA foi permitida para certos conventos e mosteiros, e também para certos indivíduos e grupos. O Papa Bento XVI, na sua Carta aos Bispos do mundo, que acompanha o Motu Proprio Summorum Pontificum, deixou claro que o Missal Romano em uso antes do Missal do Papa Paulo VI “nunca foi juridicamente ab-rogado e, consequentemente, em princípio sempre foi permitido”.

  1. Mas pode o Romano Pontífice revogar juridicamente o UA? A plenitude do poder (plenitudo potestatis) do Romano Pontífice é o poder necessário para defender e promover a doutrina e a disciplina da Igreja. Não é um “poder absoluto” que incluiria o poder de mudar a doutrina ou de erradicar uma disciplina litúrgica que está viva na Igreja desde o tempo do Papa Gregório Magno e até antes. A correta interpretação do Artigo 1 não pode ser a negação de que o UA é uma expressão sempre vital “da lex orandi do Rito Romano”. Nosso Senhor, que deu o maravilhoso dom do UA, não permitirá que ele seja erradicado da vida da Igreja.

  1. É preciso recordar que, de um ponto de vista teológico, todas as celebrações válidas de um sacramento, pelo próprio fato de ser um sacramento, são também, além de qualquer legislação eclesiástica, um ato de culto e, portanto, também uma profissão de fé. Nesse sentido, não é possível excluir o Missal Romano segundo o UA como expressão válida da lex orandi e, consequentemente, da lex credendi da Igreja. É uma questão de uma realidade objetiva da graça divina que não pode ser mudada por um mero ato da vontade mesmo da mais alta autoridade eclesiástica.    

  1. O Papa Francisco afirma na sua carta aos Bispos: “Respondendo aos vossos pedidos, tomo a firme decisão de ab-rogar todas as normas, as instruções, as permissões e os costumes precedentes ao presente Motu Proprio, e declaro que os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, constituem a única [only, em inglês] expressão da lex orandi do Rito Romano”. A revogação total em questão, em rigor, requer que cada norma individual, instrução, permissão e costume sejam estudados, para verificar se “contradiz a comunhão, alimentando aquela tendência divisiva (…) contra a qual reagiu firmemente o Apóstolo Paulo”.

  1. Aqui é necessário observar que a reforma da Sagrada Liturgia realizada pelo Papa São Pio V, de acordo com as indicações do Concílio de Trento, foi bem diferente do que aconteceu depois do Concílio Vaticano II. O Papa São Pio V ordenou, essencialmente, a forma do Rito Romano como já existia há séculos. Da mesma forma, alguma ordenação do Rito Romano foi feita ao longo dos séculos pelo Romano Pontífice, mas a forma do Rito permaneceu a mesma. O que aconteceu após o Concílio Vaticano II constituiu uma mudança radical na forma do Rito Romano, com a eliminação de muitas das orações, significativos gestos rituais, por exemplo, as muitas genuflexões e os frequentes beijos do altar, e outros elementos que são ricos na expressão da realidade transcendente — a união do céu com a terra — que é a Sagrada Liturgia. O Papa Paulo VI lamentou a situação, de forma particularmente dramática, através da homilia que proferiu na festa dos Santos Pedro e Paulo em 1972. O Papa São João Paulo II trabalhou durante todo o seu pontificado, em particular durante os seus últimos anos, para resolver abusos litúrgicos graves. Ambos os Romanos Pontífices, como também o Papa Bento XVI, esforçaram-se para conformar a reforma litúrgica ao atual ensinamento do Concílio Vaticano II, uma vez que os proponentes e agentes do abuso invocaram o “espírito do Concílio Vaticano II” para se justificar.       

  1. O Artigo 6 do Motu Proprio transfere a competência dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica dedicadas ao UA para a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. A observância do UA está no âmago do carisma desses institutos e sociedades. Embora a Congregação seja competente para responder às questões relativas ao direito canônico para tais institutos e sociedades, não é competente para alterar o seu carisma e constituições, a fim de acelerar a aparentemente desejada eliminação do UA na Igreja.

Existem muitas outras observações a ser feitas, mas estas parecem ser as mais importantes. Espero que possam ser úteis a todos os fiéis e, em particular, aos fiéis que adoram segundo o UA, em resposta ao Motu Proprio Traditionis Custodes e à Carta aos Bispos que o acompanha. A severidade desses documentos gera, naturalmente, uma profunda angústia e, até mesmo, uma sensação de confusão e abandono. Rezo para que os fiéis não cedam ao desânimo, mas, com a ajuda da graça divina, perseverem no amor à Igreja e aos seus pastores, e no amor pela Sagrada Liturgia. 

A esse respeito, exorto os fiéis a rezar com fervor pelo Papa Francisco, pelos Bispos e pelos sacerdotes. Ao mesmo tempo, de acordo com o cân. 212, §3, “segundo a ciência, a competência e a proeminência de que desfrutam, eles têm o direito, e mesmo por vezes o dever, de manifestar aos sagrados Pastores a sua opinião acerca das coisas atinentes ao bem da Igreja e de a exporem aos restantes fiéis, salva a integridade da fé e dos costumes, a reverência devida aos Pastores, e tendo em conta a utilidade comum e a dignidade das pessoas”. Finalmente, em gratidão a Nosso Senhor pela Sagrada Liturgia, o maior dom de Si mesmo para nós na Igreja, que eles continuem a salvaguardar e a cultivar o antigo e sempre novo Uso Mais Antigo ou Forma Extraordinária do Rito Romano.

Raymond Leo Cardeal Burke

Roma, 22 de Julho de 2021   

Festa de Santa Maria Madalena, Penitente