Revolutionis Custodes?

Por FratresInUnum.com, 2 de agosto de 2021 – O nome irônico do Motu Proprio com que Francisco tenta liquidar a Missa de sempre já foi explorado em verso e prosa, especialmente pelo seu requinte sádico. De fato, pelo título, esperar-se-ia um verdadeiro retorno à grande tradição da Igreja, mas, ao contrário, o que ele faz é desprender-se dela para atirar-se na completa descontinuidade do pós-concílio.

PapasIVSubjaz a essa forjatura conceitual uma noção problemática de Tradição. Como magnificamente explanou o Pe. Jean-Michel Gleize, da Fraternidade São Pio X, em seu histórico artigo, fundamentalmente, o conceito de “tradição” padeceu um deslocamento entre o Magistério da Igreja anterior e posterior ao Concílio Vaticano II.

Antes do Concílio, havia uma noção objetiva da Tradição, ou seja, esta era entendida como a continuidade lógica entre os enunciados doutrinais, sem nenhum tipo de incoerência ou ambiguidade; durante e após o Vaticano II, pretendeu-se deslocar esta noção para uma espécie de subjetivismo eclesiológico: não se trata mais do mesmo corpo doutrinal que progride coerentemente, mas do mesmo sujeito-igreja que se auto-interpreta na história de acordo com as demandas do momento.

Neste segundo sentido, tradição já não é mais a sintonia entre a fé dos apóstolos e aquilo que a Igreja sempre creu ao longo de dois milênios, em sentido lógico, como explicava de maneira precisa São Vicente de Lérins em seu Comonitório; ao contrário, por tradição se entende o mesmo sujeito que se expande através do tempo mutando a depender das suas circunstâncias e que se reinterpreta, inclusive em seu passado. Neste caso, tanto Francisco quanto Bento XVI estão fundamentalmente de acordo, ambos aderem a uma espécie de hegelianismo eclesiológico, com a diferença de que a dialética é mais acentuada em um que em outro.

Este é o único modo pelo qual seria possível conciliar as contradições entre os textos magisteriais anteriores e os textos posteriores ao Vaticano II. O princípio pelo qual ambos seriam lidos estaria, por assim dizer, acima dos próprios textos, neste sujeito espiritual que se ressignifica ao longo da história ao qual chamaríamos de Igreja.

A diferença entre Bento XVI e Francisco está no fato de que essa auto-interpretação que a Igreja se dá seguiria um princípio, a tal “reforma na continuidade” (faça-se acento sobre a continuidade), princípio que Bergoglio joga no lixo, ensejando a ideia de que essa reinvenção da Igreja já não se dá senão em função do presente e do futuro: este é o núcleo mesmo da psicologia progressista.

Em outras palavras, se para Bento XVI tradição é um processo dinâmico de continuidade, para Francisco é um processo dinâmico abertamente dialético, de contradição intrínseca e permanente. Esta contradição é a tradição em si mesma, tradição da qual eles, os bispos, são os custódios.

Se para a doutrina católica a continuidade da tradição não é apenas subjetiva, mas também objetiva (vale dizer, lógica e textual); para Bento XVI não é necessariamente objetiva, mas seguramente subjetiva; e, para Bergoglio, é necessariamente não objetiva, pois este sujeito precisa redefinir-se enquanto caminha, na marcha mesma do processo histórico com todas as suas incongruências. Isto significa que os modernistas que assumiram o controle da Igreja agora fundaram um novo conceito de tradição, conceito inteiramente revolucionário, dialético, historicista, materialista (e – por que não dizê-lo? – marxista), do qual somente eles podem ser os legítimos custódios.

Com esta compreensão, Francisco não apenas deu um “cala a boca” em todos os tradicionalistas, insinuando que são os bispos, não eles, os guardas da tradição; mas deu um “cala a boca” no próprio conceito católico de tradição, violando inclusive aquele arranjo teológico que tentou elegantemente construir Bento XVI, mas que não resistiu a uma simples canetada do seu sucessor.

É óbvio que aqui também subjaz a acusação de imobilismo, direcionada aos tradicionalistas, como se estes defendessem uma rígida fixidez idealista, a qual não teria jamais existido, visto inclusive que o próprio rito romano passou por pequenos ajustes e melhorias. A acusação é simplesmente retórica e vazia, pois ninguém realmente sustenta tal posição: o dilema não é entre mobilismo e imobilismo, mas é sobre qual tipo de mobilidade pode ser suportada pela natureza da Igreja, pois nenhum ente pode performar indefinidamente, sem jamais romper a sua unidade ontológica.

Mas é esta indefinição permanente o horizonte para o qual se orienta a senda progressista. O importante é não parar jamais a marcha, nunca “voltar pra trás”. Eles realmente têm a angústia de precisarem “avançar” rumo ao que consideram ser a direção da história, sempre mais e mais libertária. A fidelidade ao próprio ser é, para eles, um vício limitante, uma espécie de delírio que precisa ser superado.

Este é, portanto, o significado do título “Traditionis Custodes”, a partir de um novo significado de tradição, que poderia ser tranquilamente redefinido como “Revolutionis Custodes”.

5 comentários sobre “Revolutionis Custodes?

  1. Curiosidade: a padraiada progressista já substituiu faz tempo o ‘concílio’ pelo ‘papa francisco’.

    Ninguém sequer lembra mais do concílio.

    Em um artigo anterior deste blog, mencionou-se que os maus padres se serviram do CVII “”como desculpa para todas as suas aberrações, não apenas em âmbito litúrgico, mas sobretudo dogmático e moral.”

    Ora, hoje há padres que fazem o mesmo, só que dessa vez apoiando-se em 1 pessoa só: Bergoglio.

    Então é possível dizer que Bergoglio é a “desculpa para todas as suas aberrações, não apenas em âmbito litúrgico, mas sobretudo dogmático e moral”.

    Podem reparar a ênfase que os progressistas dão a ele. Se antes diziam ‘conforme o concílio, devemos ser assim’, agora dizem: ‘conforme o papa francisco, devemos ser assim’.

    E assim aos poucos levam seu rebanho para o Inferno…

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    1. Concordo. E se a canoa virar pode ter certeza que será creditado na conta dele e assim mais uma vez o concílio será salvo com a desculpa de que foi mal interpretado…

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  2. Revolutionis Custodes, muito bem; apenas que eu e mais outros não aprovam essa canetada do papa Francisco com sua capacidade invencioneira de silenciar de uma vez para sempre a Missa Católica Apostólica Romana, aquela oriunda desde os primórdios do cristianismo e que vem sendo praticada até ante Vaticano II e, até no rito da consagração do vinho, substituição do ” pro multis” por “pro omnibus”, como fê-lo Jesus aquele, na Última Ceia com os apóstolosl
    Dessa forma, ele estaria tentando sufocá-la para agradar os heréticos e relativistas protestantes, todos sabem dessa que conhecemos com a alcunha de “Missa de sempre” a qual, à verdade, por sinal, não seria de nenhuma forma estimada pelo papa Francisco por ser sacrifical incruenta e desagradar os protestantes da ceia deles, apenas como recordação, a qual é abjurada por nós!
    Podemos comprovar por essa singular consideração para com o vétero heresiarca Lutero: “testemunho do Evangelho – a qual deles, existem diversos apócrifos nomeados de evangelho de Tomé, de Maria Madalena, de Judas, Felipe, etc. – além disso, o papa Francisco foi a Lund, quando da comemoração dos 500 anos do nascimento de Lutero para prestar-lhe as “devidas honras” – como se nós católicos tivéssemos abandonado o alienante protestantismo e quereríamos reatar os vínculos com esses bandos de paranóicos, fanáticos e alucinados, porém, eles querendo forçosamente nos associar às seitas, quase por pressão – quantas críticas recebeu o papa Francisco até do Cardeal Gehrard Müller. à época com razão, quando prefeito da CDF e, por isso, teria sido deposto do cargo!
    *”Eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, ficariam certamente conosco. Mas isto se dá para que se conheça que nem todos são dos nossos”. 1 Jo 2,19.
    *claret.org.br/biblia

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  3. Alguém me ajuda? Como os missais anglicanos, reaproveitados pela Prelazia Pessoal de Nossa Senhora de Walsingham (anglicanos conversos), podem ser expressão da Lex Orandi, e o Missal Tridentino não é? Só por curiosidade, o que os senhores pensam disso?

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