A contracultura de Bento XVI.

O que sempre atraiu na figura de Bento XVI não era o carisma, mas a determinação com que procurava tornar acessível a doutrina da fé. Suas palavras eram “de vida eterna”. Por isso os fiéis lhe conservaram uma enorme gratidão, não obstante sua renúncia, dez anos atrás.

Por Jerônimo Lourenço 

Quem imaginaria isso? Nem mesmo a equipe de liturgia do Vaticano estava preparada para a multidão de fiéis — crianças, jovens, adultos e idosos — que chegaram à Praça de São Pedro a fim de prestar as últimas homenagens a Bento XVI.

Logo que a confirmação da morte do Papa emérito foi anunciada, no dia 31 de dezembro de 2022, os preparativos para o funeral começaram de forma modesta. Esperavam-se no máximo 60 mil pessoas para as cerimônias fúnebres, entre os dias 2 e 5 de janeiro. Por quê?

As razões são várias. Primeiro, desde a renúncia, em 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI manteve-se quase em anonimato, com raríssimas aparições públicas nos últimos anos. Além disso, mesmo durante o seu pontificado, ele jamais desfrutou de popularidade entre o “grande público”. A mídia, por exemplo, o considerava “pouco carismático”. Finalmente, o coro de seus adversários fez questão de macular sua imagem como pôde, do cinema (vide o filme “Dois Papas”, de Fernando Meirelles) às redes sociais (no Twitter, houve quem o chamasse de Papa “fracassado”). Um verdadeiro attacco a Ratzinger, como escreveu Andrea Tornielli.

Mas nem um nem outro motivo foram capazes de inibir os mais de 200 mil peregrinos que, entre 2 e 4 de janeiro, se revezaram durante horas, em filas quilométricas, para rezar diante do corpo do Pontífice. Ao contrário, finda a Missa de Exéquias, celebrada pelo Papa Francisco no último dia 5, podia-se ouvir dentre os 50 mil presentes na Praça de São Pedro um clamor surpreendente: Santo subito, ecoado por escrito em vários cartazes. Uma prece popular talvez apressada — pode-se discutir —, mas eloquente para o mundo e para a Igreja.

A renúncia de Bento XVI aconteceu há quase uma década, em meio ao Ano da Fé, que ele mesmo proclamara. De lá para cá, a Igreja e o mundo parecem ter mergulhado no processo de simbiose descrito por Schillebeeckx no século passado: “As fronteiras entre a Igreja e a humanidade se apagam em direção à Igreja, mas ainda podemos afirmar que se apagam também em direção à humanidade e ao mundo”. As agendas e preocupações de uma e de outro estão agora em plena sintonia, como se finalmente os católicos tivéssemos “progredido” 200 anos em 10, para fazer referência ao “testamento espiritual” do já falecido Cardeal Martini.

POPE BENEDICT MEETS WITH ITALIAN CARDINAL MARTINI

Bento XVI saiu e a Cúria mudou, consequentemente. Da liturgia indo aos temas mais delicados de moral sexual, tudo agora parece suscetível de “mudança” e “abertura”: Comunhão para recasados, relações homossexuais, ordenação de mulheres, fim do celibato, uso de anticoncepcionais… enfim, assuntos que voltaram à ordem do dia, especialmente em sínodos recentes. Nunca houve tantos aplausos e elogios por parte da imprensa quanto hoje. Terá a Igreja encontrado a fórmula perfeita para voltar a ser atraente aos olhos da humanidade?…

Será isso mesmo? Estará a Igreja de fato em sua melhor fase?

A realidade, no mais das vezes, é severamente realista para quem vive de utopias, e por mais que tentem passar a impressão de que a Barca de Pedro vai de vento em popa, os dados mostram precisamente o contrário. Segundo a própria imprensa progressista, os acenos da Igreja ao mundo moderno (e à sua cultura) não conseguiram criar a primavera esperada.

Quase o oposto. Com raras exceções, os seminários estão vazios, os mosteiros estão vazios, as igrejas estão vazias. O que vimos, em contrapartida, foi uma rápida e agressiva laicização da cultura, na Europa e em qualquer outro lugar, de modo que a fé católica já praticamente não tem a menor influência sobre as decisões dos Estados ou da população em geral. A esse respeito, podemos lembrar dois casos emblemáticos nos quais a Santa Sé mesmo preferiu não intervir: a legalização do “casamento gay” na Itália, em 2016, e a legalização do aborto na Argentina, em 2020.

O mundo, no fim das contas, embora aplauda a Igreja, não sente falta dela. Se a Igreja é o mundo, e vice-versa, ninguém precisa sair de onde está para supostamente se encontrar com Deus. Não há por que se converter.

Ao mesmo tempo, comunidades ditas “mais tradicionais” apresentam um vigor estonteante, com apelos vocacionais cujo alcance causa preocupação em Roma. Diante de uma cultura cambiante, em que não se acha facilmente um apoio firme para se sustentar, os que desejam conservar a Tradição não veem alternativa senão a do profeta Jeremias: parar na estrada para observar, perguntar sobre as veredas de outrora, qual o bom caminho, e andar nele (6, 16).

Foi justamente o que fizeram os anglicanos “tradicionalistas”, ao pedirem para ingressar na Igreja Católica, durante o pontificado de Bento XVI, atraídos pela firmeza da ortodoxia, como diria Chesterton.

Em 2010, Bento XVI esteve na Inglaterra e respondeu precisamente à questão de como a Igreja, na relação com os britânicos, crentes e não-crentes, poderia se tornar mais “crível e atraente para todos”:

Diria que uma Igreja que procura sobretudo ser atraente já estaria num caminho errado, porque a Igreja não trabalha para si, não trabalha para aumentar os próprios números e, assim, o próprio poder. A Igreja está ao serviço de um Outro: não serve a si mesma, para ser um corpo forte, mas serve para tornar acessível o anúncio de Jesus Cristo, as grandes verdades e as grandes forças de amor, de reconciliação que apareceu nesta figura e que provém sempre da presença de Jesus Cristo. Neste sentido a Igreja não procura tornar-se atraente, mas deve ser transparente para Jesus Cristo e, na medida em que não é para si mesma, como corpo forte, poderosa no mundo, que pretende ter poder, mas faz-se simplesmente voz de um Outro, torna-se realmente transparência para a grande figura de Cristo e para as grandes verdades que ele trouxe à humanidade.

Eis a chave para entender o “sucesso” de público no funeral de Bento XVI. Na Inglaterra, “o êxito real desta viagem não foi Bento XVI”, escreveu uma correspondente do The Guardian, “mas o seu rebanho, que desafiou as expectativas e a publicidade negativa para dar as boas-vindas ao Papa”.

Em Roma, dessa vez, o rebanho se reuniu para lhe dar adeus. Seja como for, em ambas ocasiões os fiéis foram ao encontro de seu pastor não tanto por ele mesmo, mas por ter encontrado em seu magistério “o anúncio de Jesus Cristo, as grandes verdades e as grandes forças de amor, de reconciliação”. O que sempre atraiu na figura de Bento XVI não era o carisma, mas a determinação com que procurava tornar acessível a doutrina da fé. Suas palavras eram “palavras de vida eterna”. Por isso, passados já 10 anos, os fiéis católicos conservaram a ele uma enorme gratidão.

Para as categorias mundanas da imprensa e do “grande público”, deve ser assustadora a estima de tantos católicos por Bento. Uma jornalista que cobria o funeral não conseguiu disfarçar a perplexidade quando ouviu os fiéis suplicarem: Santo subito. A mesma perplexidade foi vista quando, na eleição de 2005, jovens em Roma se abraçaram, comemorando-a efusivamente. Também na JMJ de Madri, a despeito de todas as manifestações contrárias, viu-se o entusiasmo com que 1,5 milhão de peregrinos permaneceram ao lado do Santo Padre, mesmo sob forte chuva.

Bento XVI jamais foi o homem “dogmático”, no sentido pejorativo do termo, pintado pela imprensa. Foi um Papa muito pouco legislador. A sua preocupação, antes disso, foi desenvolver uma nova cultura cristã, conduzindo a porção eleita da grei de Cristo aos fundamentos da Verdade, a fim de que, quando chegasse a hora de a Igreja se tornar novamente “uma pequena comunidade de fiéis”, ela fosse capaz de ser uma resposta aos anseios “dos habitantes de um mundo rigorosamente planificado” e “indizivelmente sós”. Os católicos deveriam ser transparentes para Cristo, vivendo de “modo a mostrar que o infinito de que o homem tem necessidade pode provir somente de Deus” [i].

Daí o zelo com que o Papa Ratzinger lutou para preservar a fé e os mandamentos de Nosso Senhor. “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23). Os cristãos estão no mundo, mas não podem viver como mundanos, simplesmente inculturados; devem promover uma contracultura que desperte aqueles ao seu redor para a vida sobrenatural.

Afinal, como Ratzinger dizia ainda na década de 1990, num evento do movimento Comunhão e Libertação: “A libertação fundamental que a Igreja nos pode oferecer consiste em nos manter dentro do horizonte do eterno… Por isso, a própria fé, em toda a sua grandeza e amplitude, é sempre a reforma essencial de que precisamos”. Essa é, na verdade, a grande revolução cristã, que dá aos homens o rumo decisivo. É a cultura do encontro com a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é Deus e ao qual nos unimos pela virtude da fé.

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De fato, foi essa a primeira lição da Encíclica Deus Caritas Est e a tônica de todo um pontificado. Na verdade, ao longo de toda a sua vida sacerdotal, não só como Papa, Ratzinger se propôs a dissipar as névoas que escureciam a visão dos homens e os impediam de enxergar a Cristo e encontrá-lo. Pessoas de boa vontade que se abriram à sua escuta não acolheram apenas uma “grande ideia” ou uma “decisão ética”, mas se encontraram com o próprio Senhor, atravessando a porta da fé, que Ratzinger lhes havia aberto. Foi o caso de personalidades como Scott Hahn, ex-ministro protestante, e Peter Seewald, jornalista e ex-ateu, que, como tantos outros, se deixaram conduzir pelas lições de Bento XVI.

Não admira, portanto, que em seu “testamento espiritual” o Santo Padre tenha feito um único pedido: “Permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir”. Numa hora em que a Igreja inicia mais uma tarefa sinodal, é preciso levar em conta esse apelo do Papa, para que o clima febril de confusão não se agrave.

A imagem de um sacerdote negando a Comunhão a um fiel que queria recebê-la na boca e de joelhos, durante a Missa de Réquiem de Bento XVI, sintetiza bem como está abalada a relação dos fiéis com os pastores. Enquanto estes se inclinam para o mundo, em busca de aberturas e aggiornamentos, aqueles se inclinam para Deus, porque querem adorá-lo e preservar as suas palavras no coração.

Por isso eles foram a Bento XVI. Por isso gritaram: Santo subito. Por isso já o querem “Doutor da Igreja”. Precipitados ou não, eles deram o recado, mostraram o que realmente desejam: nada além da fé católica!

Referências:

  1. Bento XVI, Luz do mundo. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 84.
  2. Joseph Ratzinger, Compreender a Igreja hoje. 3. ed., Petrópolis: Vozes, 2006, p. 81.

 

 

 

 

4 comentários sobre “A contracultura de Bento XVI.

  1. Excelente artigo! O silêncio do papa Bento em sua contemplação nos últimos dez anos fala mais alto que o mundo e – lamentavelmente – que parte da Santa Igreja. Viva Bento XVI, papa, santo e doutor da Igreja. Viva Cristo Rei do Universo!

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  2. Simplesmente irretocável o artigo. Rezemos pela alma de Bento XVI e peçamos a Deus por Sua única e verdadeira Igreja.

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