Mons. Pozzo, a exclusividade do rito tradicional e o Vaticano II.

Em agosto do ano passado, os Beneditinos da Imaculada, comunidade fundada pelo Padre Jehan, egresso do mosteiro do Barroux por não aceitar a política bi-ritualista que vem se implantando naquela abadia, tiveram uma audiência com Monsenhor Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei. Os monges relataram a conversa, cuja tradução segue abaixo:

Mons. Guido Pozzo em visita ao IBP-Roma.Mons. Pozzo quis esclarecer que, segundo a carta que acompanha o motu proprio Summorum Pontificum, o rito romano existe em duas formas e que nenhum padre “pode se recusar, em princípio, a celebrar de acordo com uma ou outra forma”. Concretamente, isso implica, para ele, que, se um padre, celebrando normalmente segundo a forma extraordinária, se encontrasse numa situação de necessidade pastoral na qual a autoridade competente exigisse uma celebração segundo a forma ordinária, ele deveria aceitar fazê-lo.

Mons. Pozzo, no entanto, escutou a opinião que Mons. Stankiewicz, decano do tribunal da Rota, exprimiu ao Padre Jehan após ter lido cuidadosamente as constituições do Barroux, e segundo a qual um monge-padre do Barroux não tem o direito de celebrar segundo o Novus Ordo Missae, tanto no exterior como no interior do mosteiro. Assim, a obrigação de celebrar segundo o rito antigo seria um direito-dever específico que se aplica aos monges do Barroux, sendo tal verdadeiro onde quer que eles se encontrem.

Mons. Pozzo disse que conhecia Mons. Stankiewicz. Por sua vez, acrescentou que, ainda que a carta pontifícia que acompanha Summorum Pontificum precise que os padres que celebram o rito antigo não podem recusar por princípio a celebração do novo, ela deixa aberta, no entanto, a possibilidade de um direito próprio para certas sociedades cujos membros celebrariam segundo o rito antigo exclusivamente.

No que diz respeito ao Concílio Vaticano II, para Mons. Pozzo, o problema não está tanto nos textos como na sua interpretação e aplicação abusivas, de acordo com o famoso “espírito do Concílio”. Mas, após tantos e  tantos anos de quase monopólio de expressão pública nas mídias e na Igreja, agora é muito difícil separar este “espírito do Concílio” dos textos em si. É necessário, portanto, fazer compreender esta distinção à FSSPX (Fraternidade Sacerdotal São Pio X) e, assim, seus membros poderão aceitar os textos do Concílio.

Quando lhe foi respondido que a FSSPX conhecia bem esse discurso e persistia em sustentar que há problemas graves nos próprios textos do Concílio, Mons. Pozzo modificou sua posição:

— É verdade, acrescentou, que há passagens mal formuladas e pouco claras nesses textos. Isso se deve ao fato de que os padres conciliares queriam evitar a linguagem teológica clássica, para falar de uma maneira “mais acessível aos homens da época”. Isso pôde provocar ambigüidades, mas não significa uma intenção de negar ou mudar a doutrina católica tradicional. Pelo contrário, os padres consideravam que a doutrina católica era uma coisa estabelecida. Tratava-se apenas de alterar a maneira de se exprimir por razões pastorais. Nesta ótica, é, portanto, legítimo criticar as passagens que não são muito claras do ponto de vista da doutrina tal como fora ensinada anteriormente. Mas não é necessário lhes atribuir um significado heterodoxo, pois não havia nenhuma intenção de mudar a doutrina tradicional. Conforme uma sã hermenêutica, é necessário compreender tais passagens do Vaticano II que geram dificuldade num sentido que não contradiz o Magistério constante anterior, pois é o mesmo Magistério que ensina a todas as épocas.

— É necessário, então, distinguir nos documentos, e em cada documento, as reafirmações do dogma e da fé tradicional, as propostas ensinadas como doutrina do Magistério autêntico, das exortações, diretrizes, e,  finalmente,  das opiniões e explicações teológicas que o Concílio propôs sem qualquer pretensão de vincular (pretesa di vincolare) a consciência católica. Não se deve, portanto, impor aos católicos a aceitação pura e simples de opiniões que o próprio Concílio não impôs com a pretensão de exigir o assentimento intelectual. A esse respeito, seria útil fazer uso das notas teológicas  que a teologia e o Magistério formaram durante os séculos. Infelizmente, hoje até mesmo os bispos não são capazes de fazer tais matizes nos documentos da Igreja.

Missa tradicional por Dom Oliveri em visita aos Beneditinos da Imaculada

Informa Rinascimento Sacro: Dom Mario Oliveri, bispo de Albenga-Imperia, celebrará, no dia 28 de setembro, a Santa Missa Gregoriana, na igreja da recém surgida Comunità Monastica dei Benedettini dell’Immacolata.

Relembramos a excepcional carta que Dom Jehan, um dos fundadores da nova comunidade, escreveu a este mesmo bispo:

É evidente que esta escolha comunitária [de não celebrar a nova missa], canonizada pela Igreja, repousa sobre convicções de fé, que a hierarquia nem sempre compreendeu e ainda menos aceitou. Vinculados “colegialmente” às instituições eclesiais em crise, os bispos, freqüentemente impregnados em demasia do espírito do mundo e às suas ideologias, não fizeram mais que paralisar a vida sobrenatural nas almas. Após quarenta anos de tal regime, as conseqüências dramáticas estendem-se tristemente sob os nossos olhos. E os que entre eles reconhecem-no e lamentam-no, não chegam sempre a reagir com os meios e a vigor necessários.

A nossa ligação ao rito tradicional é um casamento de fé e de amor que, à imagem da união conjugal, obriga-nos a uma fidelidade exclusiva. Supõe e manifesta uma teologia e uma pastoral que não podem estar de acordo com uma liturgia que volta às costas a Deus em favor do diálogo e do “estarmos juntos”.

“A nossa ligação ao rito tradicional é um casamento de fé e de amor que obriga-nos a uma fidelidade exclusiva”

Os Bénédictins de l’Immaculée formam um nova comunidade de monges que saíram do mosteiro de Sainte-Madeleine du Barroux, após Dom Louis-Marie de Geyer d’Orth, abade que substituiu Dom Gérard, fundador da abadia, implantar uma política bi-ritualista.

Na esplêndida carta que abaixo traduzimos, um dos fundadores da nova comunidade, Dom Jehan de Belleville, explica a Dom Mario Oliveri, bispo da diocese de Albenga-Imperia, os motivos doutrinários que impedem os monges de celebrar o Novus Ordo Missae.

Ressaltamos que nesta carta, publicada em 30 de outubro de 2007, Dom Jehan escrevia ao bispo ainda como monge de Le Barroux, acerca do problema que então dividia a comunidade: a concelebração. Já Dom Mario Oliveri, em 6 de fevereiro deste ano, aprovou a vida “extra-clausura” dos monges em sua diocese por um período “ad experimentum” de um ano; após, poderão ser incardinados na diocese. Quem, especialmente após ler o conteúdo desta carta, poderia imaginar uma aprovação como essa há cinco ou dez anos?

 

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PAX

A Sua Excelência,

Monsenhor Mario OLIVERI
Bispo de Albenga-Imperia

Excelência e Caro Monsenhor,

Obrigado de todo o coração por ter-me chamado ontem ao telefone e ter-me comunicado muito simplesmente o vosso pensamento sobre o problema das concelebrações que divide a nossa comunidade [nota: quando Dom Jehan enviou esta carta, ele ainda estava no mosteiro do Barroux] . A nossa conversa me sugeriu algumas reflexões das quais gostaria de abrir-me junto de vossa Excelência.

[…]

Se se atém à lei canônica, o cânon 902 deixa a entender que a regra geral na Santa Igreja é a celebração individual da missa e que a concelebração é apenas permitida (sacerdotes Eucharistiam concelebrare possunt), que é às vezes mesmo proibida e que, em todos os casos, reside a liberdade para cada um celebrá-la individualmente. Seria, por conseguinte, injusto reprovar um padre e uma comunidade por não concelebrar.

Se a nossa comunidade [ndt: do Barroux] se constituiu em torno exclusivamente do rito tradicional, era, por conseguinte, o seu direito, e a Igreja como tal o reconheceu através das suas Constituições. Após a leitura atenta destas últimas, o meu antigo professor na faculdade de direito do Opus Dei, Monsenhor Stankiewicz, decano atual da Rota, me deu em Junho de 2006 uma plena confirmação. A lei própria (lex propria) dos diversos Institutos não é uma lei territorial, incitando a pensar, por exemplo, que o rito tradicional da missa é obrigatório apenas dentro da abadia. O comentário do Código pela universidade de Salamanca explica, pelo contrário, a propósito do cânon 13, que “certas leis afetam diretamente os seus destinatários, não devido à sua relação com um território, mas por um motivo que os tocam mais pessoalmente, de modo que estas leis seguem as pessoas que são-lhes sujeitas por toda a parte aonde vão”. A nossa lei própria obriga-nos, por conseguinte, mesmo fora do mosteiro.

É evidente que esta escolha comunitária, canonizada pela Igreja, repousa sobre convicções de fé, que a hierarquia nem sempre compreendeu e ainda menos aceitou. Vinculados “colegialmente” às instituições eclesiais em crise, os bispos, frequentemente impregnados em demasia do espírito do mundo e as suas ideologias, não fizeram mais que paralisar a vida sobrenatural nas almas. Após quarenta anos de tal regime, as conseqüências dramáticas estendem-se tristemente sob os nossos olhos. E os que entre eles reconhecem-no e lamentam-no, não chegam sempre a reagir com os meios e a vigor necessários.

A nossa ligação ao rito tradicional é um casamento de fé e de amor que, à imagem da união conjugal, obriga-nos a uma fidelidade exclusiva. Supõe e manifesta uma teologia e uma pastoral que não podem estar de acordo com uma liturgia que volta às costas a Deus em favor do diálogo e do “estarmos juntos”.

“A reforma litúrgica, confessava já o Cardeal Ratzinger, produziu prejuízos extremamente graves para a fé” (La mia vita, éd. San Paolo, Roma, 1997). A denúncia e a condenação pelo próprio Bento XVI do tabu “do conciliarmente correto” ou “o espírito do concílio” liberta pouco a pouco os espíritos, e cada vez mais Pastores e teólogos terminam por reconhecer publicamente as carências e as ambigüidades doutrinais do N.O.M. [ndt: Novus Ordo Missae, isto é, a missa de PauloVI]. Ora, como recordava João Paulo II, “A Eucaristia é um dom muito grande para poder suportar ambigüidades e reduções” (Ecclesia de Eucharistia, n° 10).

Tal é o drama que vive a reação tradicional: querendo ao mesmo tempo conservar a união hierárquica desejada pelo Senhor, recusa vincular-se a um rito ao qual, embora válido e legal, não reconheça o testemunho autêntico de uma fé inequívoca. O Cardeal Ratzinger tinha plenamente consciência quando escrevia na sua autobiografia: “Estou convencido que a crise da Igreja que vivemos hoje em grande parte repousa sobre a desintegração da liturgia”. Não está aí a razão fundamental pela qual o papa mesmo aspira reformar a reforma litúrgica sobre o modelo da missa sempre?

É verdadeiro que esta grave insuficiência da liturgia atual, mesmo quando é celebrada com a dignidade necessária, não é sempre e facilmente perceptível aos espíritos teológicos, porque a linguagem da liturgia não é a da doutrina. Esta se serve de conceitos, aquela de sinais. Uma dirige-se à inteligência, a outro a todo o ser humano, corpo e alma. A liturgia, dizia Péguy, é a teologia estendida. Se a liturgia é a obra da fé dos nossos Pais, é, por conseguinte, a expressão, mas também a guardiã. Tudo o que se choca contra o sentido litúrgico tradicional é pelo menos duvidoso. Por exemplo, o contra-altar voltado para o povo, ao contrário, fere o instinto de piedade litúrgica.

Conheço apenas um só bispo – honra a vós, Monsenhor – que havia pedido aos seus padres que tirassem a mesa posta na frente do altar. A orientação litúrgica significa, com efeito, que o culto que rendemos é primeiro para a honra e glória de Deus e não uma auto-celebração da assembléia que, o diálogo obriga, necessita deslocar o crucifixo para o lado; ao centro seria muito embaraçoso. Esta liturgia que temos recebido de toda a tradição bi-milenar da Igreja é Opus Dei e não opus hominum, uma liturgia que vem de Deus e não uma liturgia “fabricada”, como escreveu o Cardeal Ratzinger.

A mentalidade tradicional, reconhecendo ao mesmo tempo a validade e a legalidade eclesial do N.O.M., não reencontra nele a expressão plena de sua fé. Tal é a razão profunda do seu distanciamento no que diz respeito a ele e a sua recusa instintiva de utilizá-lo. A concelebração, que não é nem uma obrigação jurídica nem mesmo uma necessidade teológica, não se chocaria como tal. À nossa época, onde se prova uma necessidade específica de sentir-se juntos, exprime evidentemente uma relação fraternal entre os padres, que é sinal de comunhão eclesial. O que a mentalidade tradicional rejeita é mais o rito que a própria concelebração. A esta última, contudo, prefere enormemente a maneira mais antiga, com diácono, sub-diácono, os ministros inferiores, que manifesta uma comunhão hierárquica mais expressiva de uma sã eclesiologia que uma comunhão igualitária, influenciada pela mentalidade democrática da sociedade.

Dom Gérard, nosso fundador, animado como um Dom Guéranger pela idéia litúrgica, escrevia em um das suas numerosas obras sobre este assunto: “A Igreja, Esposa e Corpo místico de Cristo, é sociedade mais diversificada, mais estruturada, hierarquizada que existe: de cima até a base, tudo leva nela a marca de uma hierarquia sagrada emanada do seu centro vivificante. Esta Igreja celestial, composta de anjos e eleitos que os nossos pintores primitivos representaram com grandes olhos abertos, as mãos juntas e organizados por ordem em redor do Cordeiro, desde os grandes Serafins até as almas do Purgatório que tomam lugar entre os inumeráveis coros, é ela que é a nossa verdadeira pátria e é vendo-a esboçada sob os nossos olhos que fazemos a aprendizagem da eternidade. ” (La Sainte liturgie, éd. Sainte-Madeleine, p. 59-60, Le Barroux, 1982.)

Perdoai, Monsenhor, a franqueza destes propósitos que requerem certamente matizes; é sobretudo a expressão do desejo de transparência em relação à vossa Excelência. Espero que nossas eventuais e legítimas divergências não constituam um obstáculo, mas que pelo contrário vós me permitais colaborar no vosso sagrado ministério, em união com o Papa e com todo o colégio episcopal, pelo testemunho da obediência filial, da oração e do exemplo. Se por ora for difícil encontrar um lugar onde possa instalar-me sozinho ou com um ou dois companheiros, poderia pelo menos me dar uma aceitação em princípio para receber-me em vossa diocese? Com a ajuda de vários padres, que me manifestaram o seu grande desejo de uma presença monástica entre eles, poderíamos procurar então juntos uma solução prática. Nunca vos agradecerei o bastante por haver me concedido a graça de prosseguir a minha vocação de filho São Bento na paz reencontrada.

Queira, Excelência e caro Monsenhor, abençoar-me e receber a certeza de minha respeitosa e religiosa devoção em Nosso Senhor e Nossa Senhora.

Ir. Jehan, O.S.B.

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