Em uma nova biografia, o Papa Bento XVI fala sobre a ‘dimensão espiritual’ do papado ‘, que, ‘sozinha, ainda é o meu mandato’.
Por Maike Hickson, LifeSiteNews, 6 de maio de 2020 | Tradução: FratresInUnum.com: Em uma nova biografia, publicada em 4 de maio, o papa Bento XVI faz algumas declarações que destacam seu próprio entendimento acerca de sua renúncia ao papado. Ele fala no livro sobre a “dimensão espiritual… que, somente ela, ainda é o meu mandato”. Ele mostra uma compreensão de sua resignação ao papado, segundo a qual renunciou a quaisquer “poderes legais concretos” e a todo papel de governo, mas, ao mesmo tempo, manteve um “mandato espiritual”.

O papa Bento XVI respondeu, no outono de 2018, a várias perguntas escritas por seu biógrafo Peter Seewald, que foram incluídas na biografia, com mais de 1.000 páginas, intitulada Bento XVI: Uma Vida . Este livro foi lançado hoje em alemão e será publicado em inglês em 17 de novembro.
Parte dessas perguntas estava relacionada ao fato de ele ter renunciado em 11 de fevereiro de 2013, depois de quase sete anos sendo o papa. Peter Seewald aponta para Bento que existem historiadores da Igreja que criticam o fato de ele se chamar “Papa emérito”, uma vez que esse título “não existe, também porque não há dois papas”. Depois de dizer, primeiramente, que ele próprio não entende por que um historiador da Igreja deveria saber mais sobre esses assuntos do que qualquer outra pessoa – afinal eles “estão estudando a história da Igreja” -, Bento XVI cita o fato de que “até o final do Concílio Vaticano II também não havia renúncia por parte dos bispos”.
Após a introdução da figura do bispo emérito, prosseguiu o Papa emérito, surgiu o problema de que “só se pode ser bispo vinculado a uma diocese específica”, ou seja, cada “consagração é sempre relativa” e “vinculada a uma sede episcopal”. Para os bispos auxiliares, por exemplo, a Igreja escolheu “sedes fictícias”, como as de países anteriormente católicos no norte da África. Com o crescente número de bispos eméritos, essas sedes fictícias estavam sendo ocupadas rapidamente, e um bispo alemão – Simon Landersdorfer, da diocese de Passau – acabou por decidir que se tornaria simplesmente o bispo ‘emérito de Passau’”.
É aqui que o Papa Bento XVI faz uma comparação com o papado. Pois, como um bispo aposentado, ele acrescenta, “não tem mais uma sé episcopal ativamente, mas ainda possui um relacionamento especial de ex-bispo com a sua sede”. Esse bispo aposentado, no entanto, “não se torna um segundo bispo de sua diocese”, explica Bento. Tal bispo “abdicou completamente de seu cargo, mas a conexão espiritual com sua antiga sede estava agora sendo reconhecida, também como uma qualidade legal”. Esse “novo relacionamento com a sede” é “dado como realidade, mas está fora da substância legal concreta do múnus episcopal”. Ao mesmo tempo, acrescenta o papa emérito, o “vínculo espiritual” é considerado uma “realidade”.
“Assim”, continua, “não há dois bispos, mas um com mandato espiritual, cuja essência é servir sua antiga diocese desde dentro, a partir do Senhor, estando presente e disponível em oração”.
“Não é concebível que esse conceito jurídico também não deva ser aplicado ao bispo de Roma”, afirma o Papa Bento explicitamente, deixando claro que, de acordo com suas próprias idéias, ele renunciou completamente ao múnus papal, mantendo uma “dimensão espiritual” de seu ofício papal.
Posteriormente na entrevista, ao final da nova biografia de Seewald, Bento volta a falar sobre o fato de que não deseja comentar a questão dos dubia apresentados pelo cardeal Raymond Burke e seus irmãos cardeais acerca de Amoris Laetitia, uma vez que isso o “levaria muito à área concreta do governo da Igreja e, assim, deixaria a dimensão espiritual que por si só ainda é meu mandato”.
O papa Bento lamenta que qualquer de suas declarações como papa emérito – como sua famosa observação de 2017 sobre o barco naufragado que representa a Igreja – esteja sendo usada por seus críticos como meio de encontrar “uma confirmação para a sua calúnia”.
“A alegação de que eu constantemente intervenho em debates públicos”, também afirma ele, “é uma distorção maligna da realidade”. Aqueles que estão usando palavras, como as sobre o naufrágio de uma barca – que provém de São Gregório Magno -, a fim de constatar “uma intervenção perigosa no governo da Igreja”, são, aos olhos de Bento XVI, “participantes de uma campanha contra mim que não tem nada a ver com a verdade”. Em outro contexto, o papa menciona especialmente a “teologia alemã”, que interpretou suas palavras de uma “maneira estúpida e maligna”, de modo que “é melhor não falar sobre isso”.
“Prefiro não analisar as reais razões pelas quais alguém deseja silenciar minha voz”, conclui Bento XVI.
Discutindo ainda mais o assunto de um “papa emérito” com Peter Seewald, Bento faz uma comparação com a “mudança das gerações”, em que o pai de uma família renuncia a “seu status legal”, mantendo sua “importância humano-espiritual”, que permanece “até a morte”. Ou seja, o aspecto “funcional” da paternidade pode mudar, não sua parte “ontológica”.
Aqui, o ex-Papa se refere às famílias de agricultores da Baviera, onde o pai de uma família, em um determinado momento de sua vida, entrega a maior casa de fazenda a seu filho, enquanto fica em uma cabana menor na mesma terra. O filho então se torna responsável por prover ao pai suas necessidades materiais, como alimentos. “Assim”, argumenta Bento XVI, “é dada sua independência material, assim como a transição dos direitos concretos ao filho. Isso significa: o lado espiritual da paternidade permanece, enquanto a situação muda em relação aos direitos e deveres concretos”.
Em maio de 2016, o arcebispo Georg Gänswein proferiu um discurso no qual falou sobre o Papa Bento XVI e um “Ministério Petrino expandido”, uma formulação que provocou debate, pois poderia indicar que Bento XVI não renunciou a todas as diferentes partes do papado. Mais tarde, ele corrigiu essa afirmação e, desde então, insistiu que há apenas um papa. Gänswein disse à LifeSite em 2019: “Eu já esclareci o ‘mal-entendido’ várias vezes”. “Não faz nenhum sentido, não, e mais ainda, é contraproducente insistir nesse ‘mal-entendido’ e me citar repetidamente. Isso é absurdo e leva à auto-mutilação [Selbstzerfleischung]. Eu disse claramente que há apenas um papa, um papa legitimamente eleito e em exercício, e este é Francisco. ”
Já em 2013, ao explicar sua renúncia ao público, o Papa Bento XVI havia declarado que “não pode mais haver retorno à esfera privada. Minha decisão de renunciar ao exercício ativo do ministério não revoga isso. Não volto à vida privada, a uma vida de viagens, reuniões, recepções, conferências e assim por diante. Não estou abandonando a cruz, mas permanecendo de uma nova maneira ao lado do Senhor crucificado. Não tenho mais o poder de exercer o governo da Igreja, mas no serviço da oração permaneço, por assim dizer, no recinto de São Pedro. São Bento, cujo nome levo como Papa, será um grande exemplo para mim. Ele nos mostrou o caminho para uma vida que, ativa ou passiva, é completamente entregue à obra de Deus”.
O LifeSite procurou Monsenhor Nicola Bux, teólogo do Vaticano e ex-colaborador do Papa Bento XVI como consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, pois ele havia feito no passado algumas observações sobre a “validade jurídica da renúncia do Papa Bento XVI . ”
Depois que o LifeSite resumiu para ele a nova declaração do Papa Bento XVI, como pode ser encontrada nesta nova biografia papal, Monsenhor Bux respondeu, dizendo:
“Na minha opinião, um dos aspectos mais problemáticos seria a idéia implícita no ato do papa Ratzinger de que o papado não é um cargo único e indivisível, mas, pelo contrário, um cargo divisível que pode ser ‘descompactado’, com a sensação de que um papa pode optar por renunciar a algumas funções, mantendo para si outras, que não seriam repassadas a seu sucessor. Uma ideia claramente errada”.
Em outras conversas com monsenhor Bux, o teólogo italiano acrescentou os seguintes pensamentos:
“A comparação do ofício papal com o ofício episcopal no que diz respeito à renúncia do múnus papal não está correta. O múnus episcopal é conferido pela ordenação ou sagração episcopal, imprimindo um caráter indelével na alma do bispo. Assim, embora possa ser dispensado de uma responsabilidade pastoral específica, ele permanece sempre um bispo. O múnus papal é conferido pela aceitação da eleição na Sé de Pedro, ou seja, por um ato da vontade da pessoa eleita, aceitando o chamado de ser Vigário de Cristo na terra. Desde o momento em que a pessoa eleita consente, ele tem toda a jurisdição de pontífice romano”.
Se a pessoa eleita não é um bispo, continuou Monsenhor Bux, deve ser imediatamente ordenado bispo, porque o papado implica o exercício do múnus episcopal, mas ele é papa desde o momento em que concorda com a eleição. Se a mesma pessoa, em um determinado momento, declara que não pode mais cumprir o chamado de ser Vigário de Cristo na Terra, perde o ofício papal e volta à condição em que estava antes de dar o consentimento para ser o Vigário de Cristo na terra”.
Aqui, o teólogo italiano explicou o princípio fundamental de que “o papado não é conferido pela graça sacramental. Não imprime um caráter indelével na alma. A quem consentir em ser papa e perseverar no consentimento, a graça é dada, como Nosso Senhor prometeu, para ser ‘a fonte perpétua e visível e o fundamento da unidade dos bispos e de toda multidão dos fiéis’. (Lumen Gentium , n. 23). Tal graça, por sua própria definição, é dada a apenas uma pessoa em um determinado momento”.
Em conclusão, Monsenhor Bux escreve: “Nosso Senhor deu a Pedro um mandato único – legal e espiritual ao mesmo tempo – e pediu aos apóstolos que o ajudassem através da comunhão, cum et sub Petro (com e sob Pedro). São Paulo explica como: ‘sollicitudo omnium ecclesiarum’ (cuidado de todas as igrejas). Portanto, não há primazia petrina a compartilhar, mas dois princípios indissolúveis em permanente comunhão entre si: a primazia petrina e o trabalho conjunto episcopal (colegialidade)”.
Como fica claro, a discussão acadêmica sobre o conceito de renúncia do papa Bento XVI ainda não está encerrada.