Por FratresInUnum, 6 de julho de 2022 — Foi sepultado hoje, na cripta da Catedral da Sé, em São Paulo, o arcebispo emérito da cidade, Dom Claudio Hummes, franciscano, bispo, cardeal, uma personalidade muito interessante no atual cenário da Igreja.

É muito fácil julgar alguém a partir de uma posição doutrinal, inclusive porque dificilmente as pessoas conseguem realmente se enquadrar dentro dela, ao menos em todos os períodos de sua vida. A instabilidade da Igreja desde o Concílio Vaticano II, a crise teológica e pastoral dele decorrente e a mentalidade tipicamente positivista que predomina na formação do clero contemporâneo podem explicar como alguém consegue trafegar por tão diferentes direções no curto decurso de uma vida.
Quando falamos de “positivismo”, referimo-nos a essa mentalidade tão comum em uma Igreja que já não é determinada por um lastro doutrinal: para conservar a unidade, não podemos mais recorrer a princípios objetivos, mas apenas temos de seguir a quem manda, criando retóricas que justifiquem a posteriori as orientações dadas.
É daí que decorre o comportamento camaleônico de tantos padres. Eles se comportam de um jeito quando o establishment é um e mudam quando é outro, com a facilidade de quem se move ao soprar dos ventos. Infelizmente, o depauperamento intelectual da Igreja pós-conciliar, que foi necessário para que se justificasse tamanha quebra doutrinal com a teologia precedente, produziu esse efeito, do qual são vítimas praticamente todos os padres sobreviventes ao Concílio e, sobretudo, os ordenados depois dele.
Pois bem, Dom Cláudio teve um começo progressista. Foi nomeado bispo coadjutor de Santo André por Paulo VI, em 1975. Naquele tempo, apoiou o movimento sindical, cujo máximo chefe foi seu amigo por toda a vida: Luís Inácio Lula da Silva, a quem se diz que ele ajudou a esconder durante as procuras da polícia da época. Ele nunca negou o seu passado engajado nas lutas dos trabalhadores amotinados sob a bandeira socialista. Nesse período, ele se aproximou da teologia da libertação, bem como deferiu duros ataques ao capitalismo e à globalização.
Contudo, durante o pontificado de João Paulo II, ele deu uma guinada à direita, especialmente quando foi arcebispo de Fortaleza (1996-1998). Ao ser nomeado arcebispo de São Paulo, já tinha uma fama de “conservador”, como bem documenta uma matéria da Folha de São Paulo, de 16 de abril de 1998:
“A nomeação de d. Cláudio foi recebida com preocupação pela parte da arquidiocese que defende maior participação da igreja nas questões políticas e sociais. Embora o novo arcebispo tenha se notabilizado pela defesa dos operários do movimento grevista do ABC, entre 78 e 82, quando era bispo de Santo André, nos últimos anos ele tem se identificado com o chamado setor ‘conservador’ do clero, que defende prioridade para as questões religiosas”.
De fato, a sua passagem pela arquidiocese de São Paulo foi muito mais “conservadora” que “progressista”: ele expulsou drasticamente do seminário todos os homossexuais, o que provocou uma baixa de candidatos ao sacerdócio absolutamente sensível; criou um modelo de formação bastante rigoroso, o qual ele exportou mediante cursos para reitores organizados sob a sua supervisão, que traziam sempre a participação de expositores de Roma, inclusive de importantes cardeais e chefes de dicastério (tratava-se de uma espécie de reprodução do curso de bispos tradicionalmente realizado pela arquidiocese do Rio de Janeiro, mas, no caso, para reitores de seminário); convidou para os cursos do clero da arquidiocese de São Paulo teólogos europeus de renome, que depois se tornaram bispos e até cardeais.
A mudança de direção provocou duras resistências por parte de uma parcela considerável do clero de São Paulo, que não lhe tinha nenhuma simpatia. Basta lembrar das cartas anônimas que circularam naquelas épocas, que eram verdadeiros protestos contra a sua pessoa e contra a sua linha pastoral, acusada de descontinuidade com Dom Paulo Evaristo Arns (cujo centenário a arquidiocese de São Paulo celebra de modo tão ostensivo este ano, sem quase nenhuma adesão popular).
Durante aqueles anos, Dom Cláudio começou a falar angustiadamente sobre a questão da evangelização porta-a-porta, pois estava aterrorizado com as notícias da expansão do protestantismo pelo Brasil. Psicologicamente, ele tinha aquele vício germânico de ideias fixas e, portanto, repetia aqueles discursos sob forma de refrão, em verso e prosa, por todos os lados em que andasse.
Quando Bento XVI foi eleito, nomeou-o Prefeito para a Congregação do Clero. Ali, embora tenha ocorrido aquele seu deslize inicial, quando se demonstrou favorável à discussão sobre a ordenação de homens casados para o sacerdócio, declaração “voluntariamente” corrigida no momento mesmo do seu desembarque no aeroporto de Fiumicino, ele também não teve um governo progressista, muito pelo contrário.
O Card. Hummes, por exemplo, determinou a sumária expulsão do sacerdócio de todos os padres que tivessem filhos, mediante uma carta enviada aos bispos do mundo inteiro por meio das nunciaturas. Determinou visitas apostólicas, fechamentos de seminários, intervenções em dioceses, e isso por todo o mundo. De certo modo, podemos dizer que a linha dura seguida pela Santa Sé nos anos seguintes, inclusive pela concessão do Papa das chamadas “faculdades especiais” à Congregação para o clero, foi fruto do seu trabalho precedente.
Foi durante a sua gestão como Chefe do Dicastério do Clero que a Santa Sé promoveu o Ano Sacerdotal, que foi um estrondo de exaltação do sacerdócio católico em meio a uma tempestade de escândalos, durante o qual se realizaram conferências importantíssimas acerca da importância do celibato sacerdotal e da santidade do sacerdócio.
Quando ocorre a eleição do Papa Francisco, ele muda completamente de direção.
Ao nosso ver, a análise que os jornais fizeram de sua atuação no conclave é muito exagerada. Ele não era um membro da chamada Máfia de St. Gallen. O equívoco se deve ao fato de que, na biografia do Card. Danneels, menciona-se uma reunião realizada em 1984 da qual participou o Card. Basil Hume, inglês; que não pode ter participado da reunião de 2006, aquela que definiu Bergoglio como candidato da chapa progressista, visto que Hume faleceu em 1999.
A sua frase ao recém-eleito Bergoglio, “não esqueça dos pobres”, pode muito bem ter sido uma daquelas expressões brasileiras que se fazem quando alguém é promovido ou fica muito rico – não esqueça dos pobres, hein?! –, que não tem correspondente em espanhol ou italiano e, justamente por isso, pode ter sido captada de modo meio místico pelo papa argentino, a ponto de tê-lo dado a ideia de escolher o nome de Francisco e, por isso, de chamar o Card. Hummes, juntamente com Danneels, para estar com ele na sacada de São Pedro durante a sua apresentação ao mundo… Hipóteses, sempre hipóteses…
Mas, se a sua participação na eleição de Francisco parece realmente ter sido fraca, seu protagonismo posterior no desenrolar do pontificado não o foi, pois ele soube rapidamente engajar o pontífice naquelas ideias que giraram em torno do eixo A-A – Alemanha-Amazônia: o ecologismo tribalista e a eventual ordenação dos homens casados para o sacerdócio, enfim, aqueles temas que, juntamente com o da comunhão aos adúlteros, a ordenação das mulheres e o casamento homossexual, compõem o conjunto das polêmicas germânicas que se tentaram impor com o chamado “Amazoniza-te”.
Na verdade, a articulação em torno da Amazônia foi apenas uma espécie de tentativa de abrir uma brecha na Igreja para que se introduzisse depois toda a agenda do episcopado alemão, que detém os cofres mais opulentos da Igreja atual, com um Vaticano em plena crise financeira. Aqui, a tal opção pelos pobres já se esvaiu há muito tempo! E é justamente isso que está por detrás do atual Sínodo sobre a sinodalidade.
Contudo, se Laudato sì, o Sínodo da Amazônia e Querida Amazônia não conseguiram despertar engajamento nos fieis, produziu certo desapontamento tanto em Francisco quanto em Dom Cláudio: comenta-se que o papa não gostou do Sínodo da Amazônia, que se irritou com aquele culto à Pachamama, que esperava algo elevado do ponto de vista acadêmico e o que obteve foi uma grotesca celebração das CEBs, que causou vergonha por todos os lados; mas também Dom Cláudio saiu dessa experiência um tanto desiludido, tanto porque esperava maior reverberação, quanto porque os seus intentos de ordenação de um clero casado autóctone foram abortados pelo Papa, que não teve coragem de levar até o fim aquilo que havia ensejado.
Parece, mesmo, que essa fixação do Card. Hummes na ordenação de homens casados era devida a muitas questões interiores: ele era realmente contrário aos escândalos no clero e achava que um modo de resolvê-los seria esse, também se afligia com o avanço do protestantismo na região amazônica e queria uma contrapartida da Igreja… Mas terminou vendo essas aflições um tanto irrespondidas e, talvez, um pouco interiormente desiludido com o pontificado atual (ao menos há relatos de padres que trabalham na Amazônia e que teriam escutado discretas declarações disso por parte dele).
Em todo caso, ele é um modelo dos clérigos conciliares: vão de um lado para o outro ao sabor dos pontificados, quer sejam conservadores ou progressistas. A instabilidade doutrinal produziu o positivismo, que acabou sendo a psicologia dos padres e que os faz usar casula romana em 2009 e abraçar a Pachamama em 2019; contrastes chocantes, mas que podem ser compreendidos sob a luz de uma coerência subjetiva, a de obedecer a quem manda, independentemente de princípios, que são rearranjados retoricamente a posteriori para justificar as ações comandadas.
Se isso é uma tragédia psico-eclesial, de um lado, demonstra o completo fracasso intelectual do progressismo, de outro. Essa loucura teológica conseguiu produzir apenas vazio e ceticismo. O que resta, na vida prática, é adaptar-se. E talvez esse tenha sido o maior sucesso de Dom Cláudio, como comenta uma matéria da BBC de 15 de abril de 2005:
“A chave para o entendimento dessa aparente contradição na trajetória de d. Cláudio está na sua capacidade de se adaptar aos rumos da Igreja Católica mundial e à realidade do Brasil”.
Nesse sentido, D. Cláudio foi não apenas um clérigo típico da Igreja Conciliar, mas talvez tenha sido um dos mais eminentes e um dos exemplares mais bem-sucedidos.
A caridade cristã nos obriga a rezar por sua alma e a desejar que ele descanse nos braços de Deus. Fato é que os seus equívocos não apagam o bem que ele fez e, por isso, esperamos que o Senhor lhe tenha concedido tempo de arrependimento e a salvação eterna.