Joseph Ratzinger, 65 anos depois.

“E assim caiu a fúria da crítica protestante sobre o sacerdócio católico”. No aniversário da ordenação sacerdotal do futuro Bento XVI, o cardeal Müller narra a sua resistência indomável contra a ofensiva dos seguidores de Lutero

Por Sandro Magister | Tradução: FratresInUnum.comROMA, 28 de junho de 2016 – “No momento em que o idoso arcebispo impôs suas mãos sobre mim, um pequeno pássaro – talvez um pardal – voou por detrás do altar-mor da catedral e entoou um canto alegre. Para mim. foi como se uma voz do alto me dissesse: está tudo bem, você está no caminho certo”.

jpg_1351331Na autobiografia de Joseph Ratzinger, há também essa recordação de sua ordenação sacerdotal, ocorrida há 65 anos, 29 de junho de 1951, festa de São Pedro e São Paulo, na catedral de Freising, pelas mãos do cardeal Michael von Faulhaber.

Para comemorar o aniversário com o Papa Emérito, na Sala Clementina, estava também o atual Papa Francisco.

Na ocasião, foi oferecido a Ratzinger um volume que recolhe 43 de suas homilias, com um prefácio escrito pelo próprio Francisco, que já havia sido antecipado há poucos dias pelos jornais  “La Repubblica” e “L’Osservatore Romano”:

> “Toda vez que eu leio as obras de Joseph Ratzinger …”

O volume, intitulado “Ensinar e aprender o amor de Deus”, foi publicado simultaneamente em seis idiomas: em italiano pela Cantagalli, nos EUA pela Ignatius Press, na Alemanha pela Herder, na França pela Parole et Silence, na Espanha pela Biblioteca de Autores Cristianos, e na Polônia pela Universidade Católica de Lublin.

O trecho que segue é retirado da introdução ao livro, escrito pelo cardeal Gerhard L. Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e curador da obra completa de Ratzinger.

No aniversário da ordenação sacerdotal do futuro Bento XVI, o cardeal narra sua indomável resistência contra a ofensiva dos seguidores de Lutero.

Sacerdócio Católico e tentação protestante

Gerhard L. Müller

O Concílio Vaticano II tentou reabrir um novo caminho para a compreensão da verdadeira identidade do sacerdócio. Por que então chegamos agora, no pós Concílio, a uma crise de identidade que historicamente só é comparável com as consequências da Reforma Protestante do século XVI?

Eu penso na crise da doutrina do sacerdócio ocorrida durante a Reforma Protestante, uma crise de caráter dogmático, na qual o sacerdote foi reduzido a um mero representante da comunidade, mediante uma eliminação da diferença essencial entre o sacerdócio ordenado e aquele comum de todos os fiéis. E depois na crise existencial e espiritual, ocorrida na segunda metade do século XX, e que explodiu cronologicamente depois do Concílio Vaticano II -, mas certamente não por causa do Concílio – e cujas consequências hoje ainda sofremos.

Joseph Ratzinger destaca com grande perspicácia que onde é menosprezado o fundamento dogmático do sacerdócio católico, não apenas se esgota a fonte de onde se pode efetivamente beber da vida que nutre os que seguem a Cristo, mas desaparece também a motivação que introduz tanto uma compreensão razoável da renúncia ao casamento pelo reino dos céus (cfr. Mt 19, 12), como do celibato como um sinal escatológico do mundo de Deus que virá,  um sinal para ser vivido com a força do Espírito Santo, na alegria e na certeza.

Se a relação simbólica que pertence à natureza do sacramento é obscurecida, o celibato sacerdotal torna-se o resquício de um passado hostil ao corpo e começa a ser acusado e combatido como a única causa da escassez de sacerdotes. Não menos importante, desaparece, em seguida, também as evidências no ensino e na prática da Igreja, de que o sacramento da Ordem deve ser administrado somente aos homens. Um ofício concebido em termos funcionais na Igreja é exposto à suspeita de legitimar um domínio, que, ao invés, deveria ser baseado e limitado ao sentido democrático.

A crise do sacerdócio no mundo ocidental, nas últimas décadas, é também o resultado de uma desorientação da identidade cristã perante uma filosofia que transfere para o interior do mundo o sentido mais profundo e o fim último da história de cada existência humana, privando-o assim do horizonte da transcendência e da perspectiva escatológica.

Esperar tudo de Deus e fundamentar toda a sua vida a Deus, que em Cristo nos doou tudo: esta e só esta pode ser a lógica de uma escolha de vida que, no completo dom de si, põe-se a caminho no seguimento de Jesus, participando de sua missão de Salvador do mundo, a missão que Ele cumpre no sofrimento e na cruz, e que Ele inevitavelmente revelou através de sua Ressurreição dentre os mortos.

Mas, na raiz desta crise do sacerdócio, é necessário também levar em contra os fatores intra-eclesiais. Como mostrado em seus primeiros discursos, Joseph Ratzinger possui desde o início uma sensibilidade aguçada para perceber imediatamente o choque com o qual se anunciava o terremoto: e isso especialmente na abertura, por parte de muitos católicos, à exegese protestante em voga nos anos cinquenta e sessenta do século passado.

Muitas vezes, do lado católico, não se percebeu as visões preconceituosas das exegese nascidas da Reforma. E assim sobre a Igreja Católica (e ortodoxa), caiu a fúria das críticas ao sacerdócio ministerial, na presunção de que ele não tem um fundamento bíblico.

O sacerdócio sacramental, tudo que se refere ao Sacrifício Eucarístico -, assim como tinha sido afirmado pelo Concílio de Trento – à primeira vista não parecia ser baseado na Bíblia, tanto do ponto de vista terminológico, tanto no que diz respeito às prerrogativas particulares do sacerdote sobre aos leigos, especialmente no que tange ao poder de consagrar. A crítica radical ao culto – e com ela a superação, que visava um sacerdócio que se limitaria à pretensão de mediação – parecia perder terreno para uma mediação sacerdotal na Igreja.

A Reforma atacou o sacerdócio sacramental, porque argumentava-se que ele colocava em questão a unicidade do sumo sacerdócio de Cristo (de acordo com a Carta aos Hebreus) e marginalizava o sacerdócio universal de todos os fiéis (de acordo com 1 Pedro 2: 5). A esta crítica, finalmente, juntou-se a idéia moderna da autonomia do sujeito, com a praxis individualista que dela resulta, a qual vê com desconfiança qualquer exercício de autoridade.

Que visão teológica se seguiu?

Por um lado, observou-se que Jesus, de um ponto sociológico-religioso, não era um sacerdote com funções de culto e portanto, – para usar uma formulação anacrônica – era um leigo.

Do outro, com base no fato de que no Novo Testamento, para os serviços e ministérios, não foi adotada qualquer terminologia sacral,  mas denominações consideradas profanas, parecia que se poderia considerar como inadequada a transformação – na Igreja das origens, a partir do III século – daqueles que desenvolviam meras “funções” dentro da comunidade, em detentores impróprios de um novo sacerdócio do culto.

Joseph Ratzinger apresenta, por sua vez, um exame crítico detalhado, uma crítica histórica à teologia protestante e o faz distinguindo os preconceitos filosóficos e teológicos do uso do método histórico. Ao fazer isso, ele consegue mostrar que com as aquisições da moderna exegese bíblica e uma análise precisa do desenvolvimento histórico-dogmático, podemos chegar de modo bem fundamentado às afirmações dogmáticas produzidas sobretudo no Concílio de Florença, Trento e do Vaticano II.

O que Jesus significa para o relacionamento de todos os homens e de toda a criação com Deus – portanto, o reconhecimento de Cristo como o Redentor e Mediador universal de salvação, desenvolvido na Carta aos Hebreus através da categoria de “Sumo Sacerdote” (Archiereus) – nunca dependeu, como condição, da sua participação no sacerdócio levítico.

O fundamento do ser e da missão de Jesus reside muito mais na sua proveniência do Pai, daquela casa e daquele templo onde vive e deve ficar (cfr. Lc 2, 49). É a divindade do Verbo que faz de Jesus, na natureza que Ele assumiu, o único e verdadeiro Mestre, Pastor, Sacerdote, Mediador e Redentor.

Ele nos torna partícipes desta sua consagração e missão por meio do chamada dos Doze. A partir deles, surge o círculo dos Apóstolos que fundaram a missão da Igreja na história como dimensão essencial da natureza eclesial. Eles transmitem o seu poder aos chefes e pastores da Igreja universal e particular, os quais operam a nível local e supra-local.

Recordando Ratzinger.

ratzinger4Na nossa reforma litúrgica há uma tendência, ao meu ver errada, de se adaptar completamente a liturgia ao mundo moderno. Essa deveria portanto se tornar ainda mais breve e dessa deveria ser removido tudo aquilo que é visto como incompreensível e finalmente ela deveria ser traduzida numa linguagem ainda mais simples, ainda mais plana.

Desta forma, no entanto, a essência da liturgia e da própria celebração litúrgica se tornam incompreensíveis.  Porque essa não pode entendida de uma forma exclusivamente racional, como se compreende uma palestra ou confêrencia, mas sim de uma forma complexa , participando com todos os seus sentidos e permitindo-se compenetrar numa celebração que não foi inventada por qualquer comissão de peritos, mas que provém da profundidade de milênios e, definitivamente desde toda a eternidade . […] Eu , pessoalmente, acho que deveríamos ser mais generosos em permitir que o rito antigo seja acessível para todos aqueles que assim o desejarem. Não se vê aí nada que possa ser tido como perigoso ou inaceitável.

Uma comunidade se torna por si mesma questionável, quando considera como proibido aquilo que há pouco tempo lhe era sagrado e quando expressa reprovação por aqueles que o desejam. Por que alguém deveria ainda crer em tal Comunidade? Será que amanhã ela não considerará como proibido aquilo que agora ela prescreve? [ …] Infelizmente entre nós, há uma tolerância quase ilimitada para mudanças espetaculares e aventureiros, enquanto praticamente não há nenhuma para a antiga liturgia. Então, nós estamos definitivamente no caminho errado.

Riflessioni del Card. Joseph Ratzinger tratte dal libro “Il sale della terra”, Ed. San Paolo, pp. 199-202 – Créditos: Gercione Lima

Na festa da Imaculada Conceição: De Maria numquam satis.

Imaculada Conceição

“De Maria numquam satis”, dizem os Santos. Não se deve dizer basta nos louvores a Maria Santíssima. Não temamos cultuá-la excessivamente. Estamos sempre muito aquém do que Ela merece. Não é pelo excesso que nossa devoção a Maria falha. E sim, quando é sentimental e egoísta. Há devotos de Maria que se comovem até às lágrimas, e, no entanto, se ajustam, sem escrúpulos, à imodéstia e à sensualidade dominantes na sociedade de hoje. Sem imitação não há verdadeira devoção marial.

Consagremos, realmente, a Maria Santíssima nossa inteligência e nossa vontade, com a mortificação de nossa sensibilidade e de nossos gostos, e Ela cuidará de nossa ortodoxia. “Qui elucidant me vitam aeternam habebunt” (Eclo 24,31) – [Aqueles que me tornam conhecida terão a vida eterna] -, diz a Igreja de Maria. Os que se ocupam de fazê-la conhecida e honrada terão a vida eterna.

Dom Antônio de Castro Mayer.

Quando eu era jovem teólogo, antes e até mesmo durante as sessões do Concílio, como aconteceu e como acontecerá a muitos, eu alimentava uma certa reserva sobre algumas fórmulas antigas como, por exemplo, a famosa De Maria nunquam satis – “Sobre Maria jamais se dirá o bastante”. Esta me parecia exagerada.

Encontrava dificuldade, igualmente, em compreender o verdadeiro sentido de uma outra expressão bastante famosa e difundida (repetida na Igreja desde os primeiros séculos, quando, após um debate memorável, o Concílio de Éfeso, do ano 431, proclamara Nossa Senhora como Maria Theotokos, que quer dizer Maria, Mãe de Deus, expressão esta que enfatiza que Maria é “vitoriosa contra todas as heresias”.

Somente agora – neste período de confusão em que multiplicados desvios heréticos parecem vir bater à porta da fé autêntica -, passei a entender que não se tratava de um exagero cantado pelos devotos de Maria, mas de verdades mais do que válidas.

Cardeal Joseph Ratzinger – Entretiens sur la Foi, Vittorio Messori – Fayard 1985.

Post publicado originalmente na festa da Imaculada Conceição de 2008.

Cardeal Joseph Ratzinger: “Devemos mencionar os perigos que, nas últimas décadas, infelizmente, não permaneceram apenas como fantasias de tradicionalistas inimigos da reforma”.

“Parece-me muito importante que o Catecismo, ao mencionar os limites do poder da suprema autoridade da Igreja acerca da reforma, chame a atenção sobre qual é a essência do primado, assim como é enfatizado pelos Concílios Vaticano I e II: o papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei, mas sim o guardião da autêntica Tradição e, por isso, o primeiro fiador da obediência. Ele não pode fazer o que quiser, e justamente por isso pode se opor àqueles que pretendem fazer o que querem”.

A liturgia entre reformistas radicais e intransigentes

IHU – Foi publicado na Itália o livro de Alcuin Reid Lo sviluppo organico della liturgia. I principi della riforma liturgica e il loro rapporto con il Movimento liturgico del XX secolo prima del Concilio Vaticano II [O desenvolvimento orgânico da liturgia. Os princípios da reforma litúrgica e a sua relação com o Movimento Litúrgico do século XX antes do Concílio Vaticano II] (Cantagalli, 432 páginas). O livro tem um prefácio do então cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, que aqui publicamos.

O artigo foi publicado no sítio Vatican Insider, 26-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Nas últimas décadas, a questão da correta celebração da liturgia tornou-se cada vez mais um dos pontos centrais da controvérsia em torno do Concílio Vaticano II, ou seja, de como ele deve ser avaliado e acolhido na vida da Igreja.

Há os estrênuos defensores da reforma, para os quais é uma culpa intolerável que, sob certas condições, tenha sido readmitida a celebração da Santa Eucaristia segundo a última edição do Missal antes do Concílio, a de 1962. Ao mesmo tempo, porém, a liturgia é considerada como “semper reformanda”, de modo que, no fim, é a “comunidade” individual que faz a sua “própria” liturgia, na qual ela mesma se expressa. Um Liturgisches Kompendium [compêndio litúrgico] protestante (editado por Christian Grethlein e Günter Ruddat, Göttingen, 2003) apresentou recentemente o culto como “projeto de reforma” (pp. 13-41), refletindo também o modo de pensar de muitos liturgistas católicos . Por outro lado, há também os críticos ferozes da reforma litúrgica, que não só criticam a sua aplicação prática, mas também as suas bases conciliares. Estes veem a salvação somente na rejeição total da reforma.

Entre esses dois grupos, os reformistas radicais e os seus adversários intransigentes, muitas vezes se perde a voz daqueles que consideram a liturgia como algo vivo, algo que cresce e se renova no seu ser recebida e no seu atuar-se. Estes últimos, no entanto, com base na mesma lógica, também insistem no fato de que o crescimento só é possível se for preservada a identidade da liturgia e ressaltam que um desenvolvimento adequado só é possível prestando atenção às leis que, do interior, sustentam esse “organismo”. Como um jardineiro acompanha uma planta durante o seu crescimento com a devida atenção às suas energias vitais e às suas leis, assim também a Igreja deve acompanhar respeitosamente o caminho da liturgia através dos tempos, distinguindo o que ajuda e cura, daquilo que violenta e destrói.

Se é assim, então devemos tentar definir qual é a estrutura interna de um rito, bem como as suas leis vitais, de modo a encontrar os caminhos certos para preservar a sua energia vital na mudança dos tempos para incrementá-la e renová-la. O livro do padre Alcuin Reid se coloca nesta linha. Percorrendo a história do Rito Romano (missa e breviário), desde as origens até as vésperas do Concílio Vaticano II, ele tenta estabelecer quais são os princípios do seu desenvolvimento litúrgico, obtendo, assim, da história, com os seus altos e baixos, os critérios sobre os quais toda reforma deve se basear.

O livro está dividido em três partes. A primeira, muito breve, analisa a história da reforma do Rito Romano desde as suas origens no fim do século XIX. A segunda parte é dedicada ao movimento litúrgico até 1948. A terceiro – de longe a mais extensa – trata da reforma litúrgica sob Pio XII até as vésperas do Concílio Vaticano II. Esta parte se revela muito útil, justamente porque tal fase da reforma litúrgica não é mais muito lembrada, apesar de que justamente nela – assim como na história do movimento litúrgico, evidentemente – se encontram todas as questões acerca das modalidades corretas para uma reformas, fazendo com que seja possível adquirir também critérios de julgamento.

A decisão do autor de se deter no limiar do Concílio Vaticano II é muito sábia. Ele evita, assim, entrar na controvérsia ligada à interpretação e à recepção do Concílio, ilustrando o momento histórico e a estrutura das várias tendências, o que é determinante para a questão acerca dos critérios da reforma.

No fim do seu livro, o autor elenca os princípios para uma correta reforma: ela deve ser igualmente aberta ao desenvolvimento e à continuidade com a Tradição; deve saber-se ligada a uma tradição litúrgica objetiva e fazer com que a continuidade substancial seja salvaguardada.

O autor, depois, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica, sublinha que “mesmo a suprema autoridade da Igreja não deve modificar a liturgia arbitrariamente, mas somente em obediência à fé e com respeito religioso pelo mistério da liturgia” (CC, n. 1.125). Como critérios adicionais encontramos, enfim, a legitimidade das tradições litúrgicas locais e o interesse pela eficácia pastoral.

Eu gostaria de ressaltar ainda, do meu ponto de vista pessoal, alguns dos critérios já brevemente indicados da renovação litúrgica. Vou começar com os dois últimos critérios fundamentais. Parece-me muito importante que o Catecismo, ao mencionar os limites do poder da suprema autoridade da Igreja acerca da reforma, chame a atenção sobre qual é a essência do primado, assim como é enfatizado pelos Concílios Vaticano I e II: o papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei, mas sim o guardião da autêntica Tradição e, por isso, o primeiro fiador da obediência. Ele não pode fazer o que quiser, e justamente por isso pode se opor àqueles que pretendem fazer o que querem.

A lei à qual deve se ater não é o agir ad libitum, mas sim a obediência da fé. Razão pela qual, com relação à liturgia, ele tem a tarefa de um jardineiro e não de um técnico que constrói máquinas novas e joga fora as velhas. O “rito”, ou seja, a forma de celebração e de oração que amadurece na fé e na vida da Igreja, é forma condensada da Tradição viva, na qual a esfera do rito expressa o conjunto da sua fé e da sua oração, tornando assim experimentável, ao mesmo tempo, a comunhão entre as gerações, a comunhão com aqueles que rezam antes de nós e depois de nós. Assim, o rito é como um dom feito à Igreja, uma forma viva de parádosis.

É importante, a esse respeito, interpretar corretamente a “continuidade substancial”. O autor nos adverte expressamente com relação ao caminho equivocado no qual podemos ser conduzidos por uma teologia sacramental neoescolástica separado da forma viva da liturgia. Partindo dela, se poderia reduzir a “substância” à matéria e à forma do sacramento e dizer: o pão e o vinho são a matéria do sacramento, as palavras da instituição são a sua forma; somente essas duas coisas são necessárias, todo o resto pode até mudar. Sobre esse ponto, modernistas e tradicionalistas se encontram de acordo. Basta que haja a matéria e que sejam pronunciadas as palavras da instituição: todo o resto é “à vontade”. Infelizmente muitos sacerdotes hoje agem com base nesse esquema, e até as teorias de muitos liturgistas, infortunadamente, se movem nessa direção.

Eles querem superar o rito como algo rígido e constroem produtos da sua imaginação, considerada pastoral, em torno desse núcleo residual, que é, assim, relegado ao reino da magia, ou privado totalmente do seu significado. O movimento litúrgico tinha tentado superar esse reducionismo, produto de uma teologia sacramental abstrata, e nos ensinar a considerar a liturgia como o conjunto vivo da Tradição que se fez forma, que não pode ser rasgado em pequenos pedaços, mas que deve ser visto e vivido na sua totalidade viva.

Quem, como eu, na fase do movimento litúrgico às vésperas do Concílio Vaticano II, ficou impressionado com essa concepção só pode constatar com profunda dor a destruição daquilo que estava em seu coração.

Eu gostaria de comentar brevemente outras duas intuições que aparecem no livro do padre Alcuin Reid. O arqueologismo e o pragmatismo pastoral – este último, no entanto, é muitas vezes um racionalismo pastoral – são ambos incorretos. Poderiam ser descritos como um par de gêmeos profanos. Os liturgistas da primeira geração eram, em sua maioria, historiadores e, consequentemente, propensos ao arqueologismo.

Eles queriam desenterrar as formas mais antigas na sua pureza original; viam os livros litúrgicos em uso, com os seus ritos, como expressão de proliferações históricas, fruto de mal-entendidos e ignorância passados. Tentava-se reconstruir a mais antiga Liturgia romana e limpá-la de todos os acréscimos posteriores. Não era algo totalmente equivocado; mas a reforma litúrgica é, contudo, algo diferente de uma escavação arqueológica, e nem todos os desenvolvimentos de algo vivo devem seguir a lógica de um critério racionalista/historicista.

Essa é também a razão pela qual – como o autor observa com razão – na reforma litúrgica a última palavra não deve ser deixada aos especialistas. Especialistas e pastores têm, cada um, o seu próprio papel (assim como, na política, os técnicos e aqueles que são chamados a decidir representam dois níveis diferentes). Os conhecimentos dos estudiosos são importantes, mas não podem ser imediatamente transformados em decisões dos pastores, que têm a responsabilidade de ouvir os fiéis na implementação com inteligência junto com eles do que hoje ajuda a celebrar os Sacramentos com fé ou não.

Uma das debilidades da primeira fase da reforma depois do Concílio foi que quase somente os especialistas tinham voz no capítulo. Teria sido desejável uma maior autonomia por parte dos pastores. Porque, muitas vezes, obviamente, é impossível elevar o conhecimento histórico ao posto de nova norma litúrgica, esta “arqueologismo” se vinculou muito facilmente ao pragmatismo pastoral. Decidiu-se, em primeiro lugar, eliminar tudo o que não era reconhecido como original e, consequentemente, como “substancial”, para depois integrar a “escavação arqueológica” – quando ainda parecesse insuficiente – com o “ponto de vista pastoral”.

Mas o que é “pastoral”? Os julgamentos intelectualistas dos professores sobre essas questões eram muitas vezes determinados pelas suas considerações racionais e não levavam em conta o que realmente sustenta a vida dos fiéis. De modo que, hoje, após a vasta racionalização da liturgia na primeira fase da reforma, estamos novamente em busca de formas de solenidade, de atmosferas “místicas” e de uma certa sacralidade.

Mas uma vez que existem – necessariamente e cada vez mais evidentes – julgamentos largamente divergentes sobre o que é pastoralmente eficaz, o aspecto “pastoral” tornou-se uma fenda para a irrupção da “criatividade”, que dissolve a unidade da liturgia e nos coloca muitas vezes diante de uma deplorável banalidade. Com isso, não queremos dizer que a liturgia eucarística, assim como a liturgia da Palavra, não sejam muitas vezes celebradas a partir da fé, de modo respeitoso e “bonito”, no melhor sentido da palavra.

Mas, como estamos buscando os critérios da reforma, também devemos mencionar os perigos que, nas últimas décadas, infelizmente, não permaneceram apenas como fantasias de tradicionalistas inimigos da reforma. Gostaria de me deter ainda sobre o fato de que, naquele compêndio litúrgico acima mencionado, o culto foi apresentado como “projeto de reforma”, isto é, como um canteiro de obras onde sempre há muito a fazer. Semelhante, embora um pouco diferente, é a sugestão, por parte de alguns liturgistas católicos, de adaptar a reforma litúrgica à mudança antropológica da modernidade e de construí-la de modo antropocêntrico.

Se a liturgia aparece sobretudo como o canteiro de obras do nosso agir, então isso significa que esquecemos do essencial: Deus. Porque, na liturgia, não se trata de nós, mas sim de Deus. O esquecimento de Deus é o perigo mais iminente do nosso tempo. A essa tendência, a liturgia deveria opor a presença de Deus. Mas o que acontece se o esquecimento de Deus entra até mesmo na liturgia, se na liturgia pensamos apenas em nós mesmos?

Em toda reforma litúrgica e em toda celebração litúrgica, o primado de Deus deveria sempre ocupar o primeiríssimo lugar. Com isso, foi muito além do livro do padre Alcuin. Mas acredito que, no entanto, tenha ficado claro que este livro, com a riqueza das suas ideias, nos ensina critérios e nos convida a uma reflexão posterior. Por isso eu recomendo a sua leitura.

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Atenção: blog em recesso ao longo de todo o mês de agosto.

“De Maria numquam satis”.

“De Maria numquam satis”, dizem os Santos. Não se deve dizer basta nos louvores a Maria Santíssima. Não temamos cultuá-la excessivamente. Estamos sempre muito aquém do que Ela merece. Não é pelo excesso que nossa devoção a Maria falha. E sim, quando é sentimental e egoísta. Há devotos de Maria que se comovem até às lágrimas, e, no entanto, se ajustam, sem escrúpulos, à imodéstia e à sensualidade dominantes na sociedade de hoje. Sem imitação não há verdadeira devoção marial.

Consagremos, realmente, a Maria Santíssima nossa inteligência e nossa vontade, com a mortificação de nossa sensibilidade e de nossos gostos, e Ela cuidará de nossa ortodoxia. “Qui elucidam me vitam aeternam habebunt” (Eclo 24,31) – [Aqueles que me tornam conhecida terão a vida eterna] -, diz a Igreja de Maria. Os que se ocupam de fazê-la conhecida e honrada terão a vida eterna.

Dom Antônio de Castro Mayer.

Quando eu era jovem teólogo, antes e até mesmo durante as sessões do Concílio, como aconteceu e como acontecerá a muitos, eu alimentava uma certa reserva sobre algumas fórmulas antigas como, por exemplo, a famosa De Maria nunquam satis – “Sobre Maria jamais se dirá o bastante”. Esta me parecia exagerada.

Encontrava dificuldade, igualmente, em compreender o verdadeiro sentido de uma outra expressão bastante famosa e difundida repetida na Igreja desde os primeiros séculos, quando, após um debate memorável, o Concílio de Éfeso, do ano 431, proclamara Nossa Senhora como Maria Theotokos, que quer dizer Maria, Mãe de Deus, expressão esta que enfatiza que Maria é “vitoriosa contra todas as heresias”.

Somente agora – neste período de confusão em que multiplicados desvios heréticos parecem vir bater à porta da fé autêntica –, passei a entender que não se tratava de um exagero cantado pelos devotos de Maria, mas de verdades mais do que válidas.

Cardeal Joseph Ratzinger – Entretiens sur la Foi, Vittorio Messori – Fayard 1985.

(Publicado originalmente na festa da Imaculada Conceição de 2008)

O Cardeal Ratzinger e Fátima.

Segundo o Cardeal Ratzinger, no comentário publicado pelo Vaticano que acompanha o texto do Terceiro Segredo, “quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade…”. Alguns críticos vêem nisso uma contradição a uma quantidade considerável de evidências registradas, inclusive de testemunhos antigos do próprio Cardeal Ratzinger.

O então Cardeal Joseph Ratzinger emitia algumas opiniões desencontradas sobre o assunto Fátima.
O então Cardeal Joseph Ratzinger emitia algumas opiniões desencontradas sobre o assunto Fátima.

Numa entrevista publicada na edição de 11 de novembro de 1984 da revista Jesus, o Cardeal Ratzinger foi questionado se havia lido o texto do Terceiro Segredo e por que ele não havia sido revelado. Ratzinger reconheceu que havia lido o Terceiro Segredo e afirmou que ele, em parte, envolve a “importância dos novissímos” e “perigos ameaçando a fé e a vida dos cristãos e, portanto, (a vida) do mundo”. Ratzinger também comentou que “se ele ainda não foi revelado — ao menos na época — é a fim de impedir que as profecias religiosas sejam mal interpretadas por uma busca pelo sensacional”. Além disso, um artigo de jornal citou o antigo embaixador filipino no Vaticano, Howard Dee, afirmando que o Cardeal Ratzinger pessoalmente o confirmou que as mensagens de Akita e Fátima são “essencialmente a mesma”. A profecia de Akita, em parte, contém o seguinte: “A obra do demônio se infiltrará até mesmo da Igreja, de tal modo que se verá cardeais contra cardeais, bispos contra bispos. Os padres que Me venerarem serão desprezados e sofrerão oposição de seus confrades… igrejas e altares [serão] saqueados; a Igreja estará repleta daqueles que aceitam compromissos e o demônio pressionará muitos padres e almas consagradas a deixar o serviço do Senhor”.

Letter #28, 2010 — 93rd Anniversary, de Robert Moynihan, editor da Revista Inside the Vatican

A curva de Padre Ratzinger a Bento XVI.

Resenha de Nicholas Lash – National Catholic Reporter

THEOLOGICAL HIGHLIGHTS OF VATICAN II [DESTAQUES TEOLÓGICOS DO VATICANO II]
Por Joseph Ratzinger
Publicado pela Paulist Press, $ 16,95

Após cada uma das quatro sessões do Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger, o jovem teólogo alemão que atuou como consultor perito do Cardeal Joseph Frings, de Colônia, na Alemanha, publicava um livreto informativo sobre a sessão recém concluída. Em 1966, um ano após o término do concílio, esses livretos foram recolhidos em forma de livro, tanto em inglês quanto em alemão. Agora este livro foi reeditado, com uma introdução feita pelo padre jesuíta Thomas Rausch.

Embora a primeira sessão do concílio não tenha produzido resultados concretos, de acordo com Ratzinger, ela foi excepcionalmente importante por dois motivos. Em primeiro lugar, ao recusar-se a endossar os materiais preparados pela Cúria Romana, “o colégio dos bispos” demonstrou que “era uma realidade em si”. O esquema preparatório sobre a revelação, por exemplo, foi “completamente um produto da mentalidade ‘anti-modernista’”, de acordo com Ratzinger. Será que a “negação quase neurótica de tudo o que era novo” continuaria? Ou será que a Igreja “viraria uma nova página, e seguiria em frente em um encontro novo e positivo com as suas próprias origens, com os seus irmãos, e com o mundo contemporâneo? Uma vez que uma clara maioria dos padres optaram pela segunda alternativa, podemos mesmo falar do concílio como um novo começo”.

Ao rejeitar o esquema da revelação, “o concílio tinha afirmado a sua própria autoridade magisterial. E agora, contra as congregações da Cúria, que servem a Santa Sé e as suas funções de unificação, o concílio fez com que a voz do episcopado fosse ouvida – não, a voz da Igreja universal”.

Em segundo lugar, o primeiro capítulo da Constituição sobre a Sagrada Liturgia “contém uma declaração que representa uma inovação fundamental para a Igreja latina”. A declaração em questão é a estipulação de que, dentro de certos limites, as conferências episcopais “disponham em seu próprio direito uma função legislativa definitiva”. Ratzinger enxerga isso como de importância fundamental: “Talvez se possa dizer que este pequeno parágrafo, que, pela primeira vez, atribui às conferências episcopais a sua própria autoridade canônica, seja mais importante para a teologia do episcopado e para o fortalecimento a muito desejado do poder episcopal do que qualquer coisa na própria Constituição sobre a Igreja”.

O Padre Joseph Ratzinger durante o Concílio Vaticano II em 1962 (CNS / KNA)
Pe. Ratzinger durante o Concílio Vaticano II em 1962 (CNS / KNA)

Considerando que os Papas anteriores haviam “considerado a cúria como um assunto pessoal no qual o Concílio não tinha o direito de interferir”, em razão do discurso de abertura do Papa Paulo VI na segunda sessão, “o tema da reforma da Cúria foi… no sentido oficialmente declarado aberto para o debate do concílio”. A noção de colegialidade estava no coração e no centro dos debates sobre o esquema da Igreja: “Assim como Pedro pertencia à comunidade dos Doze, para que o Papa pertença ao colégio dos bispos, independentemente do papel especial que exerce, não fora, mas dentro do colégio”. Uma discussão posterior do esquema sobre os bispos buscou de forma concreta implementar o conceito de colegialidade, descentralizando o poder para bispos e conferências episcopais, e propor formas adequadas de centralização através da criação de um “concílio episcopal em Roma”.

As reflexões de Ratzinger no que tange os debates sobre o ecumenismo, o esquema em que pode ser visto como “uma aplicação pastoral da doutrina no esquema sobre a Igreja”, contém uma interessante discussão sobre a relação entre “igrejas” e “a igreja”, na forma de uma resposta detalhada à eclesiologia protestante apresentada em outubro de 1963 em uma conferência em Roma por Edmund Schlink de Heidelberg, na Alemanha.

Esta sessão viu a promulgação dos dois primeiros textos conciliares, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia e o Decreto sobre os Meios de Comunicação Social. A fórmula de Paulo VI de aprovação rompeu com o costume, desde o final da Idade Média, de considerar as decisões conciliares como sendo postas em vigor como lei papal: “Paulo, bispo, servo dos servos de Deus, juntamente com os padres conciliares” (o meu itálico).

Em setembro de 1964, “o capítulo sobre a colegialidade dos bispos foi aprovado logo na primeira votação por uma maioria de dois terços”. Não é de surpreender que, o capítulo de Ratzinger sobre a terceira sessão, durante o qual a Constituição sobre a Igreja foi promulgada, concentre-se sobre a doutrina da colegialidade episcopal e sobre a questão estrutural não desconexa das relações entre o Papa e o concílio.

Na primeira, Ratzinger diz que a noção de que a Igreja, que consiste de comunidades adoradoras, é “consequentemente construída a partir de uma comunidade de bispos … é provavelmente a idéia central na doutrina de colegialidade do concílio”. Ele coloca o dedo sobre o que ele chama de “fraqueza real do debate sobre a colegialidade”: “Tanta energia foi concentrada na relação de colegialidade como a primazia de que os problemas intrínsecos do próprio princípio da colegialidade, sua complexidade, seus limites e suas variações históricas não eram mais vistos”.

No que tange as relações entre o Papa e o concílio, ele acredita que as intervenções papais em novembro de 1964, embora necessárias no interesse da mediação entre as forças opostas no concílio, revelou que “o Papado não tinha ainda encontrado uma forma para a formulação de sua posição”, que não seja, e não pareça ser, monárquica. Esta, ele acredita ser um problema prático e não teórico, no sentido de que a resolução vai levar tempo: “A paciência é necessária”.

A característica mais marcante do capítulo sobre a terceira sessão, no entanto, aparece em seu discurso de encerramento. Observando que “o episcopado tornou-se mais aberto, de ano para ano”, e que, à medida que os bispos, “a partir de inícios um pouco tímidos e hesitantes”, encontravam voz e coragem, faziam declarações corajosas que “há cinco anos seriam impensáveis”, Ratzinger dá a entender que o “evento verdadeiro” do concílio foi “o despertar da Igreja”. Alcançado em uma unidade de propósito mundial, “este despertar espiritual… foi o grande e irrevogável evento do concílio. Ele foi mais importante em muitos aspectos do que os textos que aprovou”.

O Papa Bento XVI chega para celebrar uma missa que marca o quinto aniversário da morte do Papa João Paulo II na Basílica de São Pedro, no Vaticano, 29 mar. (CNS / Paul Haring)
O Papa Bento XVI chega para celebrar uma missa que marca o quinto aniversário da morte do Papa João Paulo II na Basílica de São Pedro, no Vaticano, 29 mar. (CNS / Paul Haring)

Agora as coisas estão ficando realmente interessantes, pois esta é exatamente a avaliação feita pelo falecido Giuseppe Alberigo, em sua conclusão para o quinto e último volume da maciça História do Concílio Vaticano II, do qual foi editor geral. Há já vários anos, os funcionários da cúria romana vêm realizando uma campanha enérgica de polêmica e declarações errôneas contra essa história, em uma tentativa de desacreditar a história que ele diz (Examinei esta campanha nos últimos capítulos do meu livro Teologia para Peregrinos).

A pergunta surge, e é uma indagação muito mais ampla do que uma importância meramente acadêmica: Até que ponto o Papa Bento XVI concorda com o jovem padre Joseph Ratzinger?

A quarta e última sessão do concílio “teria de enfrentar os problemas mais difíceis, os problemas que tinham sido adiados por três anos” – a liberdade religiosa, o cristianismo e o judaísmo, e os problemas associados à produção de um tipo inteiramente novo de documento conciliar, o documento que se tornou Gaudium et Spes. “Apesar de todas as rejeições”, o texto da Constituição conservou “um otimismo progressista quase ingênuo que parecia ignorar a ambivalência de todo o progresso humano externo”.

É interessante observar que, ao discutir o Decreto sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes, ele comenta sobre a questão do celibato sacerdotal: “Em vista da escassez de sacerdotes em muitas áreas, a Igreja não pode evitar rever esta questão silenciosamente. Esquivar-se disso é impossível, em vista da responsabilidade de pregar o Evangelho dentro do contexto do nosso tempo”. Quarenta anos mais tarde, a escassez de sacerdotes atinge o nível de crise, e ainda assim Bento parece ter conseguido continuar fugindo dela.

A Paulist Press está de parabéns por reeditar essas reflexões lúcidas, perspicazes e entusiasmadas sobre as quatro sessões conciliares. Como já mencionei mais de uma vez, eles levantam muito fortemente a questão da relação entre as opiniões do jovem peritus e àquelas do atual Papa.

Na sua introdução, o padre jesuíta Thomas Rausch afirma que “os próprios pontos de vista de Ratzinger, com algumas exceções, permaneceram notavelmente coerentes ao longo dos anos”. Sobre o qual, duas observações. A grande exceção, que ele menciona, é a liturgia. No entanto, não vejo nenhuma incoerência entre o entusiasmo de Ratzinger à Constituição sobre a Liturgia, por um lado, e, por outro lado, a sua avaliação cada vez mais crítica do que aconteceu na liturgia nas últimas décadas.

Em segundo lugar, algumas coisas se sobressaem mais fortemente deste livro que o apoio incondicional de Ratzinger para o projeto central do concílio: a saber, a elaboração e implementação da doutrina da colegialidade episcopal como a estrutura para, em suas palavras, o “fortalecimento do poder episcopal há muito tempo desejado”. Bento é obcecado pela importância de conciliar os cismáticos lefebvristas com a Igreja. É essa obsessão, creio eu, que explica dois de seus empreendimentos mais extraordinários: o motu proprio permitindo o uso geral do Missal de 1962 e a Constituição Apostólica que estabelece “ordinariatos” para anglicanos descontentes. O primeiro foi feito sem consultar os bispos, e contra os pontos de vista de um número considerável deles. O segundo foi ainda mais espantoso: uma das grandes inovações estruturais na Igreja foi promulgada sem consultar os outros bispos da Igreja Católica (para não falar de membros seniores da Comunhão Anglicana).

Parece-me que não se pode dizer que um Papa que tem capacidade para fazer essas coisas, da maneira que foram feitas, tenha um pingo de imaginação verdadeiramente colegial. Precisamos lembrar que, entre o jovem teólogo, Joseph Ratzinger, tão crítico da cúria romana e tão entusiasmado com a restauração do poder episcopal, e o Papa Bento XVI, ergue-se o Cardeal Ratzinger, há 24 anos o chefe da mais poderosa das congregações da Cúria.

[Nicholas Lash é professor emérito de teologia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra.]

De Maria numquam satis.

“De Maria numquam satis”, dizem os Santos. Não se deve dizer basta nos louvores a Maria Santíssima. Não temamos cultuá-la excessivamente. Estamos sempre muito aquém do que Ela merece. Não é pelo excesso que nossa devoção a Maria falha. E sim, quando é sentimental e egoísta. Há devotos de Maria que se comovem até às lágrimas, e, no entanto, se ajustam, sem escrúpulos, à imodéstia e à sensualidade dominantes na sociedade de hoje. Sem imitação não há verdadeira devoção marial.

Consagremos, realmente, a Maria Santíssima nossa inteligência e nossa vontade, com a mortificação de nossa sensibilidade e de nossos gostos, e Ela cuidará de nossa ortodoxia. “Qui elucidam me vitam aeternam habebunt” (Eclo 24,31) – [Aqueles que me tornam conhecida terão a vida eterna] -, diz a Igreja de Maria. Os que se ocupam de fazê-la conhecida e honrada terão a vida eterna.

Dom Antônio de Castro Mayer.

Quando eu era jovem teólogo, antes e até mesmo durante as sessões do Concílio, como aconteceu e como acontecerá a muitos, eu alimentava uma certa reserva sobre algumas fórmulas antigas como, por exemplo, a famosa De Maria nunquam satis – “Sobre Maria jamais se dirá o bastante”. Esta me parecia exagerada.

Encontrava dificuldade, igualmente, em compreender o verdadeiro sentido de uma outra expressão bastante famosa e difundida (repetida na Igreja desde os primeiros séculos, quando, após um debate memorável, o Concílio de Éfeso, do ano 431, proclamara Nossa Senhora como Maria Theotokos, que quer dizer Maria, Mãe de Deus, expressão esta que enfatiza que Maria é “vitoriosa contra todas as heresias”.

Somente agora – neste período de confusão em que multiplicados desvios heréticos parecem vir bater à porta da fé autêntica -, passei a entender que não se tratava de um exagero cantado pelos devotos de Maria, mas de verdades mais do que válidas.

Cardeal Joseph Ratzinger – Entretiens sur la Foi, Vittorio Messori – Fayard 1985.

(Publicado originalmente na festa da Imaculada Conceição de 2008)

Na festa da Imaculada Conceição: De Maria numquam satis.

Imaculada Conceição

“De Maria numquam satis”, dizem os Santos. Não se deve dizer basta nos louvores a Maria Santíssima. Não temamos cultuá-la excessivamente. Estamos sempre muito aquém do que Ela merece. Não é pelo excesso que nossa devoção a Maria falha. E sim, quando é sentimental e egoísta. Há devotos de Maria que se comovem até às lágrimas, e, no entanto, se ajustam, sem escrúpulos, à imodéstia e à sensualidade dominantes na sociedade de hoje. Sem imitação não há verdadeira devoção marial.

Consagremos, realmente, a Maria Santíssima nossa inteligência e nossa vontade, com a mortificação de nossa sensibilidade e de nossos gostos, e Ela cuidará de nossa ortodoxia. “Qui elucidam me vitam aeternam habebunt” (Eclo 24,31) – [Aqueles que me tornam conhecida terão a vida eterna] -, diz a Igreja de Maria. Os que se ocupam de fazê-la conhecida e honrada terão a vida eterna.

Dom Antônio de Castro Mayer.

Quando eu era jovem teólogo, antes e até mesmo durante as sessões do Concílio, como aconteceu e como acontecerá a muitos, eu alimentava uma certa reserva sobre algumas fórmulas antigas como, por exemplo, a famosa De Maria nunquam satis – “Sobre Maria jamais se dirá o bastante”. Esta me parecia exagerada.

Encontrava dificuldade, igualmente, em compreender o verdadeiro sentido de uma outra expressão bastante famosa e difundida (repetida na Igreja desde os primeiros séculos, quando, após um debate memorável, o Concílio de Éfeso, do ano 431, proclamara Nossa Senhora como Maria Theotokos, que quer dizer Maria, Mãe de Deus, expressão esta que enfatiza que Maria é “vitoriosa contra todas as heresias”.

Somente agora – neste período de confusão em que multiplicados desvios heréticos parecem vir bater à porta da fé autêntica -, passei a entender que não se tratava de um exagero cantado pelos devotos de Maria, mas de verdades mais do que válidas.

Cardeal Joseph Ratzinger – Entretiens sur la Foi, Vittorio Messori – Fayard 1985.