Por Christopher A. Ferrara, The Remnant | Tradução: Fratres in Unum.com

Segunda-feira, 26 de outubro de 2009. Membros da delegação da FSSPX, ao fundo no centro, chegam ao Vaticano. AP Photo/Gregorio Borgia
No dia 16 de março, um comunicado não assinado da Sala de Imprensa do Vaticano afirmou que uma “avaliação” secreta da resposta secreta de Dom Fellay ao “preâmbulo Doutrinal” secreto, oriundo dos procedimentos secretos das conferências entre o Vaticano e a FSSPX, determinou (secretamente) que a resposta “é insuficiente para superar os problemas doutrinais que estão na base da divisão entre a Santa Sé e a mencionada Fraternidade [FSSPX]”. Dom Fellay foi “convidado a gentilmente esclarecer sua posição de modo a sanar a presente divisão, como deseja o Papa Bento XVI”.
Ainda não sabemos exatamente quais são os “problemas doutrinais” em questão ou qual fórmula seria suficiente para “esclarecê-los”. Isso é segredo. O que sabemos é que, na data do comunicado, Dom Fellay encontrou-se com o Cardeal Levada e outros oficiais da Congregação para a Doutrina da Fé – em segredo, é claro – para discutir uma cura para a “divisão” entre a Fraternidade e a Santa Sé, a fim de “evitar uma ruptura eclesial de conseqüências dolorosas e incalculáveis…”.
De acordo com a Agência de Notícias italiana AGI, durante essa reunião “uma ruptura completa foi evitada pela Santa Sé, deixando claro que Bento XVI ainda espera uma recomposição”. Mas apesar da ruptura ter sido evitada, a divisão permanece e, de acordo com a Rádio Vaticana, “Dom Fellay é convidado a esclarecer sua posição para conseguir sanar a divisão existente, como é desejo do Papa Bento XVI, de hoje até o dia 15 de abril”.
Assim, parece que há uma data limite para sanar a divisão de modo a evitar uma ruptura, através de um esclarecimento de problemas doutrinais para que possa haver uma recomposição. Notem que, curiosamente, evita-se a terminologia tradicional de “cisma”, “heresia”, “profissão de fé” e “retorno dos dissidentes para a única Igreja verdadeira”. De fato, não consegui localizar em lugar algum uma declaração do Vaticano afirmando que a FSSPX abraça qualquer doutrina que seja contrária à Fé ou que seus partidários individuais não são católicos em bons termos (em oposição ao problema do status formal da “missão canônica” da SSPX). A palavra “cisma” igualmente não mais aparece nos anúncios vaticanos a respeito da atual posição da FSSPX.
Não, isto é simplesmente uma questão de se providenciar – em segredo – um esclarecimento dos problemas doutrinais secretamente discutidos em relação ao Concílio Vaticano II. Então, a divisão seria sanada, nenhuma ruptura ocorreria e uma “recomposição” aconteceria. Não é necessário que nós saibamos os detalhes.
Minha revisão admitidamente apressada dos boletins da Sala de Imprensa Vaticana não revela tais procedimentos estranhos a respeito de nenhum outro indivíduo católico ou grupo de católicos entre o bilhão de almas que pertencem à nossa Igreja em crise. Parece não haver nenhuma outra intimação para discutir “problemas doutrinais” com a Congregação para a Doutrina da Fé e para resolvê-los antes que uma “recomposição” possa ocorrer. Poderia parecer que ninguém na Igreja inteira tem quaisquer problemas doutrinais a serem resolvidos urgentemente sob prazos apertados, salvo a FSSPX e seus membros.
Tampouco parece que o Vaticano está preocupado com divisões, rupturas ou recomposições de legiões de católicos em cada continente, incluindo numerosos bispos e padres, que não mais aderem aos ensinamentos da Igreja que não aprovem pessoalmente. Todos conhecem os exemplos óbvios, como a desobediência quase universal a respeito do ensinamento infalível sobre o casamento e a procriação. Mas considerem também a recusa da totalidade da hierarquia da Itália e da Alemanha em adotar as correções estabelecidas para as traduções vernáculas da Missa Novus Ordo que infestaram a Igreja por 40 anos até que o Vaticano finalmente ordenasse as correções. Pode tirar o cavalo da chuva, Papa!
Também existe aquele movimento de padres na Áustria, liderados pelo antigo vigário geral do Cardeal Schönborn, Helmut Schüller que, como Sandro Magister noticia, “tem, entre seus objetivos a abolição do celibato clerical e a reintegração ao ministério sacerdotal de padres ‘casados’ e suas concubinas”. A revolta, “abertamente apoiada por 329 padres, ameaçou causar uma ruptura na Igreja Austríaca semanas antes da visita de 22 a 25 de setembro do Papa Bento XVI à vizinha Alemanha”. Os dissidentes emitiram um “Chamado à Desobediência”, que exige “clero casado, mulheres padres e outras reformas” e tem o apoio de “3/4 da população pesquisada neste país tradicionalmente Católico Romano”.
Os líderes da revolta declararam abertamente que “vão desobedecer às leis da Igreja ao dar a Comunhão aos protestantes e católicos divorciados e recasados ou ao permitir que leigos preguem e dirijam paróquias sem padre”. Schüler declara abertamente que “muitos padres já estão silenciosamente desobedecendo às leis de qualquer jeito, muitos com o conhecimento de seus próprios bispos, e a sua campanha tem como meta forçar a hierarquia a concordar em mudar”. Sandro Magister chama isso de cisma – não uma divisão ou uma ruptura, mas simplesmente um cisma. Evidentemente, ele está certo. E cismas como este abundam hoje em dia.
Eu poderia continuar catalogando a dissidência institucionalizada da doutrina e da práxis que se levantou na Igreja desde o Concílio Vaticano II eternamente. Muitos livros seriam necessários para meramente pesquisá-la. O Vaticano não faz nada, ou quase nada, para punir tal dissidência. Mas, então, todos já ouvimos a conversa neo-católica: o Papa [complete com o nome] teme um confronto com os dissidentes nas hierarquias nacionais com receio de que isso cause um cisma. Ou seriam divisões e rupturas?
Com relação à FSSPX, porém, estranhamente não há temor de provocar uma divisão, uma ruptura, um cisma, um seja lá o que for. À FSSPX foi dado até o dia 15 de abril para que esclareçam seus problemas doutrinais. Ou senão… Ou senão o quê? Uma re-excomunhão dos quatro bispos? Como isso poderia ser visto como outra coisa senão algo ridículo, mesmo pela mídia que vem torcendo pelo permanente ostracismo da FSSPX em nome do Concílio? Uma declaração de cisma?
Embasada em quê? Os bispos da FSSPX sequer foram acusados de recusar obedecer ao Romano Pontífice, senão somente de deixar de providenciar um esclarecimento “suficiente” de problemas doutrinais não especificados e secretamente discutidos. A FSSPX corre à Roma sempre que é convocada para discutir a questão. Como tal conduta pode possivelmente constituir um cisma?
Isto sugere um paradoxo: a FSSPX está enfrentado ameaças disciplinares veladas precisamente porque ela obedece e leva a sério tais ameaças. Essa perseguição à FSSPX me lembra o raciocínio da guerra contra o Iraque para “combater o terrorismo”: a conquista do Iraque era um “objetivo conquistável” ainda que não existisse de fato nenhum campo da Al Qaeda por lá. Ao esmagar uma ditadura insignificante que ofereceria pouca resistência, os Estados Unidos poderiam fingir que estavam lutando contra os “malvados”.
Talvez depois do dia 15 de abril algo não muito agradável acontecerá à FSSPX. Algo secreto. Algum mecanismo canônico pode aparecer de repente. Talvez algum tipo de ultra-excomunhão está sendo considerado, apesar de absurdo. Muito provavelmente, porém, nada acontecerá. O Vaticano continuará simplesmente a deplorar a divisão que poderia tornar-se uma ruptura quando, na verdade, todos sabem que a FSSPX e seus membros são, simplesmente, católicos que estão sendo forçados a agir como ninguém na história da Igreja jamais teve que agir. Enquanto isso, ninguém no Vaticano falará sobre a divisão ou ruptura na Áustria ou em qualquer outro lugar onde os ensinamentos fundamentais do Magistério e as diretivas papais estão sendo ignorados.
Mas honestamente: como nenhum dos notórios chefes da atual pandemia de dissidência da fé e da moral foi chamado ao Vaticano para que “esclareça” seus “problemas doutrinais”? Por que a nenhum deles foi dado um prazo para que “esclareça sua posição, de modo a sanar a atual divisão”?
A resposta se encontra naquilo que todos os dissidentes têm em comum: todos eles adoram o Vaticano II. Nenhum deles tem qualquer “problema doutrinal” com o Concílio. Muito pelo contrário, o Concílio lhes dá transportes de alegria. Eles celebram o Concílio como a Magna Carta de sua libertação da Tradição. O “problema doutrinal” deles diz respeito somente àquilo que a Igreja constantemente ensinou e acreditou antes do Concílio. Você sabe: dogmas definidos, esse tipo de coisa.
Se o Concílio pode ser corretamente caracterizado dessa forma não é a questão. A questão é que os dissidentes que povoam abundantemente a Igreja hoje em dia percebem-no desta forma e, portanto, aceitam tal caracterização sem reservas. Assim, não há necessidade de nenhum convite urgente para ir ao Vaticano. A resposta que dão ao Concílio é “suficiente” o bastante. Mas a resposta da FSSPX ao concílio é “insuficiente”. A FSSPX deve esclarecer sua posição respeitando os imprecisos textos conciliares de acordo com uma “hermenêutica da continuidade” a qual o Papa constantemente se refere, mas que nunca foi explicitada.
O Concílio, o Concílio, o Concílio. Só o Concílio importa. É por isso que só a FSSPX enfrenta o prazo final do dia 15 de abril, para evitar “uma ruptura eclesiástica de dolorosas e incalculáveis conseqüências”. Evidentemente, a partir da perspectiva Vaticana, não há nada doloroso ou incalculável a respeito da apostasia do mundo ocidental que os padres e bispos vêm administrando desde… bem, desde o Concílio.
Permitam-me sugerir algumas questões que talvez pertençam com mais propriedade no arquivo “insuficiente” do Vaticano. Talvez as autoridades vaticanas possam estabelecer alguns prazos para tratar de tais questões, que dizem respeito ao bem comum de toda a Igreja, ao invés de “problemas doutrinais” que quatro bispos tradicionalistas expressaram a respeito de documentos conciliares reconhecidos como problemáticos praticamente por todos, incluindo o próprio Papa:
- “Insuficiente”: a fé de milhares de católicos, incluindo bispos e padres rebeldes, que não mais se importam com o que Papas ou Concílios sempre ensinaram com relação às questões de fé e moral naquilo que decidiram ir contra.
- “Insuficiente”: uma liturgia Romana que, como o Papa afirmou quando Cardeal Ratzinger, entrou em “colapso” por causa de uma “ruptura na história da liturgia”, cujas “conseqüências só poderiam ser trágicas”.
- “Insuficiente”: a defesa da Hierarquia Católica das “duras verdades” frente à rejeição popular, bem como seu fraco-quase-inexistente testemunho contra a suave tirania da nação-estado moderno, ao qual os homens da Igreja se renderam completamente de acordo com um programa de “diálogo”, “ecumenismo”, “liberdade religiosa” e “abertura ao mundo” que o Concílio Vaticano II inaugurou – refletindo os “problemas doutrinais” que a FSSPX foi chamada a “esclarecer”.
- “Insuficiente”: o esforço de livrar as dioceses dos homossexuais, dos hereges, dos catecismos heréticos e de programas depravados de “educação sexual”.
- “Insuficiente”: as tentativas absurdas de realizar a “consagração da Rússia” enquanto deliberadamente deixam de mencionar a Rússia, pois os burocratas do Vaticano acham imprudente honrar o pedido da Virgem Prudentíssima.
- “Insuficiente”: a condição geral da Igreja onde, mais de 40 anos após a “renovação conciliar”, vastos números de católicos nominais exibem o que João Paulo II descreveu como uma “apostasia silenciosa” e onde grande parte da hierarquia exibe o que a irmã Lúcia de Fátima chamou de “desorientação diabólica”.
- “Insuficiente”: a liberação do Terceiro Segredo de Fátima no ano 2000, onde falta a explicação de Nossa Senhora sobre uma visão tão ambígua quanto os documentos do Vaticano II.
E, finalmente, há a abordagem geral do Vaticano com relação à FSSPX. Ela deveria ser regularizada imediatamente – unilateral e incondicionalmente, com permissão para operar independentemente dos bispos que estão cantando louvores ao Vaticano II enquanto fecham escolas, fecham paróquias, ignoram ou desafiam o Summorum Pontificum, se aproximam de grupos de “católicos gays”, administram o Santíssimo Sacramento a hereges públicos e sorriem como loucos enquanto sufocam a vida da Igreja.
Somente uma renovação católica como a que foi produzida de modo independente e com apoio papal pelos monastérios de Cluny pode restaurar a Igreja agora. A FSSPX está preparada para ter um papel importante nessa renovação. Negar à FSSPX este papel simplesmente para continuar a barganhar a respeito das ambigüidades de um Concílio que ninguém parece conseguir esclarecer é insuficiente. Rezemos para que o Papa traga este espetáculo ridículo a um fim para o bem da Igreja e do mundo.