Fratres in Unum entrevista Pe. João Batista.

Apresentamos a nossos leitores uma entrevista que nos foi concedida pelo Reverendíssimo Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa, de Anápolis, Goiás.

Fratres in Unum: Padre João Batista, primeiramente muito obrigado por nos ter atendido. Conte-nos um pouco sobre sua vocação e o trabalho que o senhor exerce atualmente.

Padre João Batista: Com prazer ponho-me a responder à entrevista de Fratres in Unum, blog que muito aprecio. Posso dizer-lhe que desde pequeno pensei em ser padre. Nasci, graças a Deus, no seio de uma família muito católica. Meus pais sempre veneraram o sacerdócio católico e disseram que seria uma honra ter um filho padre. Muito ajudou a consolidação da minha vocação o combate de Mons. Lefebvre em defesa da tradição. Logo que a mídia começou a falar dele, meu pai dizia que ele tinha razão no que dizia. Igualmente, contribuíram muito para minha formação as revistas Permanência, de Gustavo Corção, e Catolicismo, que minha família subscrevia. Atualmente, cuido de duas capelas que preservam a tradição litúrgica da Igreja: Santa Maria das Vitórias (verdadeiro milagre da misericórdia divina) e São José da Boa Morte (preservada graças à prudência do saudoso Frei Cristóvão). Sou também professor de filosofia na Faculdade Católica de Anápolis há mais de 10 anos.

Fratres in Unum: Imaginamos que o discernimento de sua vocação tenha se dado num período um tanto conturbado da história da Igreja. O que aconselhar aos que hoje, em meio a tantas dificuldades, seguem o mesmo itinerário?

Padre João Batista: Que não desanimem. Confiem na Providência Divina. Recomendem-se à proteção de Nossa Senhora. Comecem a estudar latim antes de entrar para o seminário. Estudem o catecismo de São Pio X. Não descuidem da oração. Ingressem em um seminário que conserve, com muita convicção, a liturgia tradicional. Comparada ao que vivi há anos, a situação hoje melhorou muito.

Fratres in Unum: Num artigo o senhor afirma: “parece que o aumento do número de católicos que tomam consciência nestes últimos anos dos problemas doutrinários que flagelam a Igreja sobretudo a partir do Vaticano II incomoda a certos senhores”. Tratemos da primeira parte da afirmação: essa tomada de consciência se deve a um aprofundamento doutrinário por parte desses católicos ou mera constatação da falência dos novos métodos ‘pastorais’ adotados nos últimos 40 anos?

Padre João Batista: Creio que há um aprofundamento doutrinário, sim. Isso foi propiciado pelos meios de comunicação (Internet, principalmente). Há vinte anos atrás só quem assinava as revistas “Permanência”, Itineraires, Roma (de Buenos Aires) ou lia as cartas pastorais inesquecíveis de Dom Mayer tomava conhecimento da crise da Igreja. Hoje, ainda que sob certos aspectos, haja problemas seríssimos, parece que há mais católicos que conhecem o magistério tradicional que condenou o liberalismo, o falso ecumenismo etc. De maneira que os “incomodados” a que me referi vêem sim, com preocupação, o crescimento da tradição. Basta pensar naquela carta do Grande Oriente da França publica há alguns meses.

Fratres in Unum: Como reação à crise pela qual passa a Igreja, o Papa propõe a hermenêutica da continuidade. Ademais, acrescenta que os que a adotam geram frutos, mesmo que silenciosamente (conf. Discurso à Cúria Romana de 22 de dezembro de 2005). No mundo católico notam-se reações: à esquerda, progressistas nisso enxergam o fim do Concílio. No centro, alguns passam a justificar o Concílio em todas as suas proposições. À direita, Dom Bernard Fellay, superior da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, reconhece que tal método trata-se de um passo na direção certa, embora o considere insuficiente por não atingir a verdadeira raiz dos problemas, que seria o próprio texto do Concílio. Afinal, como o católico deve se portar nesse emaranhado de tendências?

Padre João Batista: Creio que a hermenêutica da continuidade, evidentemente, é necessária, mas não debela o mal pela raiz. A nossa atitude deve ser aquela do Communitorium de São Vicente de Lerins: “Conservar tudo aquilo que a Igreja sempre fez e ensinou em todos os tempos e lugares”.

Fratres in Unum: Diz o senhor que “há católicos que são capazes de ver que é verdade tudo que disse aqui [a respeito da crise] mas preferem silenciar, negar ou até justificar a triste realidade. O problema não está na inteligência mas na vontade. Não querem indispor-se com ninguém, muito menos com a autoridade. Vendem a sua alma por um prato de lentilha ou pela perspectiva de uma carreira brilhante ou por razões mais sórdidas ainda”. Alguns sob alegação de “obediência” extrapolam os limites  e se calam diante de atos que podem até comprometer a Fé. Chegamos, assim, num difícil aspecto que atordoa a muitos fiéis. Qual o conceito Católico de obediência e quando ela se desvirtua em subserviência que coloca em perigo a confissão clara da Fé?

Padre João Batista: Simplesmente, a obediência está a serviço da fé e da verdade. É preciso obedecer antes a Deus que aos homens. O Apóstolo diz: se um anjo vos anunciasse um evangelho diferente, seja anátema. Portanto, que não nos façam engolir um falso ecumenismo ou uma filantropia maçônica como exigências do Evangelho, em nome da obediência. Prefiro morrer a ingerir esses venenos da Sinagoga de Satã. Ou ainda precisando a minha resposta, a virtude da obediência é uma virtude moral a serviço da virtude teologal da fé. O católico precisa primeiro saber se tem fé reta. Se não a tem, que a “retifique”. Portanto, estude bem seu catecismo, o catecismo de São Pio X, procure conhecer bem o dogma da unicidade da Igreja de Cristo, hoje tão esquecido ou negado. E depois obedeça com circunspecção. A lei injusta não é lei, é corrupção da lei. A obediência indiscreta não é virtude, mas vício ou subserviência. Há belíssimos textos de D. Castro Mayer e D. Lefebvre sobre o assunto. Igualmente, acode-me à memória um estudo de JB Pacheco Salles publicado em Permanência, sob o título, se não  me engano, “A fé e a obediência em Santo Tomás de Aquino”.

Fratres in Unum: Tratemos sobre liturgia. Após a publicação do Motu Proprio Summorum Pontificum, imaginou-se uma enxurrada de missas tradicionais. Pensamento compreensível, especialmente vindo dos fiéis que há tanto tempo atravessam um deserto litúrgico e que avistaram algum alento. Mas de certa forma imprudente, pois demonstra alguma incompreensão sobre a confusão que hoje impera nos meios católicos. Afinal, o que há de tão ‘perigoso’ aos olhos do clero atual na Missa Gregoriana que o leva a restringir absurdamente a aplicação deste documento do Papa?

Padre João Batista: Creio que há muita ignorância. Mas desconfio que há também muito amor próprio ferido. Afinal, é raro ver alguém com a humildade do Papa Bento XVI e admitir que a reforma litúrgica foi um desastre, uma devastação. E dizer mais ainda: que a crise da Igreja decorre da liturgia reformada.

Fratres in Unum: Alguns chegam a dizer que hoje, com Summorum Pontificum, consegue-se no máximo a aplicação de Ecclesia Dei… O próprio Cardeal Hoyos declara ter entregado ao Santo Padre um documento que esclarece alguns termos usados como pretexto até mesmo por Conferências Episcopais para, de maneira prática, anular o documento do Papa. Como devem os fiéis se portar diante de eventuais problemas para usufruir esse direito em suas dioceses?

Padre João Batista: Não vejo outro caminho senão dirigir-se a Roma, de forma bem documentada e circunstanciada e ter muita paciência.

Fratres in Unum: Se há crise na liturgia, naturalmente, há uma crise também no sacerdócio. É comum notar que alguns fiéis, pelos infelizes tropeços que cometem não poucos membros da hierarquia, começam a levantar uma suspeita a priori contra todo o clero. Surgem, com isso, leigos que não raro usurpam algumas funções exclusivamente sacerdotais. Neste período turbulento, como evitar que as ovelhas a serem apascentadas procurem uma espécie de ‘emancipação’ que abala diretamente a própria estrutura hierárquica da Igreja desejada por Nosso Senhor?

Padre João Batista: Efetivamente, trata-se de um perigo real. Muitas vezes o homem é tentado a querer resolver problemas que não lhe compete resolver. Como se diz, não adianta querer abraçar o mundo, fazer tudo. Cada um saiba o seu lugar. O meu querido padre Vieira diz: “O nosso querer tem de ser sempre menor que o nosso poder.” Muito obrigado pela oportunidade que Fratres in Unum me concede. A minha bênção para toda sua equipe.

Padres Antônios

Depois de dolorosamente violarem suas consciências, muitos padres que adotaram a Missa reformada sentiram que ela era morte de suas almas. Um pároco da arquidiocese de Florença escreveu em junho de 1969 ao Bispo Celada: “Estou vivendo num estado de alma que eu não posso descrever. Estou sofrendo e às vezes choro lágrimas amargas. Com o aproximar dos dias, penso nisso em terror e tremo. Eu gostaria de escrever, ou ir e me jogar aos pés de Paulo VI e implorar-lhe que me dispense da oferecer essa ‘missa’. Arcebispo Lefebvre diria: ‘Conheço padres que morreram de tristeza por ter que dizer essa Missa Nova’, sem mencionar aqueles que se mantiveram fiéis à Missa de sempre que foram perseguidos por seus bispos, retirados de suas paróquias, rebaixados por seus superiores e apenas superaram essas provações por uma rara fortaleza de caráter e de virtude heróica.

(Marcel Lefebvre, the biography. Bernard Tissier de Mallerais, Angelus Press, 2004, p. 386)

Como não se lembrar do sofrido Pe. Antônio, personagem descrito por Gustavo Corção que é a encarnação dos padres que perderam todas as suas perspectivas e a alegria de sua juventude diante da Reforma de Paulo VI?

Uma dupla homenagem: Corção e Santa Maria das Vitórias

Nosso humilde blog tem a honra de apresentar o artigo do Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa homenageando o grande Gustavo Corção, que tanta falta nos faz hoje e que com muita alegria, certamente, teria visto a honra da Santa Missa Gregoriana recobrada pelo Santo Padre em seu Motu Proprio.

Parabenizamos o Pe. João Batista pela inauguração no próximo dia 29, festa dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, da Capela Santa Maria das Vitórias. Quisera outros padres espalhados por nosso Brasil tivessem o mesmo ímpeto e zelo apostólico desse sacerdote e seus fiéis de Anápolis.

Por questão de justiça — como lembrou-me Dom Lourenço — faz-se necessário citar o site da obra de Gustavo Corção: www.permanencia.org.br, por sinal já indicado em nossa lista de sites católicos.

Anápolis, 2 de abril de 2008

Saudades de Gustavo Corção

Este ano comemoramos o trigésimo aniversário da morte de Gustavo Corção, ocorrida aos 6 de julho de 1978.

Não me proponho analisar aqui o pensamento filosófico de Gustavo Corção nem sua evolução ao longo dos anos, impulsionada pela sua reflexão perspicaz sobre o crescimento da crise da Igreja e do mundo moderno, bem como por sua honestidade intelectual e humildade em reconhecer seus equívocos na apreciação das coisas e dos homens. Proponho-me simplesmente dar meu depoimento sobre a influência benéfica de um grande escritor católico sobre uma ampla parcela da sociedade brasileira.

Posso dizer que ouvi falar de Gustavo Corção desde pequeno. Nascido numa pequena cidade do interior do Estado de São Paulo, meu pai, meu avô e meus tios assinavam um grande diário da capital que publicava os seus artigos, lidos e comentados pelos meus parentes mais vGustavo Corçãoelhos, a quem ouvia às vezes falar de política com alguma referência às idéias de Corção. Meu avô e meus tios não eram católicos praticantes, mas eram homens de um grande bom senso e demonstravam sempre um grande respeito pela ordem natural das coisas, não se deixando arrastar pela onda revolucionária que devasta a sociedade contemporânea. Estou convencido de que Corção os ajudou muito a ver as questões mais graves com maior acuidade, impedindo que se contaminassem com a demagogia da esquerda católica, sobretudo após a Revolução de 31 de março de 1964. A esquerda católica fez de tudo para confundir a opinião pública negando a necessidade de combater a subversão, sempre sob o pretexto de defesa dos direitos humanos e da justiça social. Corção foi de uma felicidade única na tarefa de desmascarar os falsos profetas do progressismo dito católico. Suas vergastadas contra esses homens que traíram sua missão de defender ou esclarecer (pense-se em Alceu Amoroso Lima, por exemplo) os católicos acerca do perigo comunista, a corrupção doutrinária e outros problemas, são inesquecíveis. Lembro-me perfeitamente, e com saudade, dos comentários dos meus parentes mais velhos aos artigos de Corção. Que bênção!

Em 1968, após uma dolorosa agonia do Centro Dom Vital, corroído pelo câncer da heresia modernista e do progressismo, Corção funda o Grupo Permanência no Rio de Janeiro e lança uma revista com o mesmo nome, com o apoio de um grupo de intelectuais católicos, alguns monges beneditinos; entre estes Dom Lourenço de Almeida Prado OSB, que fez grande divulgação da referida revista em Jahu. O sucesso do apostolado desenvolvido pelo grupo Permanência foi enorme, apesar do boicote imposto pela maioria da hierarquia eclesiástica. O próprio Corção chegou a escrever que choveram assinaturas do Brasil inteiro.

Foi assim que começamos a receber Permanência: minha avó e minhas tias, logo que tomaram conhecimento da publicação pelos artigos de Corção, fizeram sua subscrição. E posso dizer que o efeito benéfico foi considerável. À primeira vista, poderia ser tentado pelo desânimo vendo hoje o estado das coisas, o desastre geral em todos os setores da sociedade. Mas se não fosse a Permanência muita coisa boa não teria acontecido. Com licença. Explico-me.

Logo após o Vaticano II a corrupção doutrinária acelerou-se à proporção que se degradava a liturgia, como todos sabem. Aos domingos todos os católicos eram bombardeados, envenenados por verdadeiras monstruosidades exaradas pelos famigerados folhetinhos litúrgicos que ocuparam o lugar dos veneráveis missais quotidianos de Dom Gaspar Lefebvre. Infelizmente, a maioria dos católicos, apáticos, inertes, dopados, não soube reagir. Engoliu goela baixo o veneno, como os jovens de classe média hoje ingerem em suas baladas de fins de semana o ecstaze.

Pois bem, foi justamente aí que a Permanência atuou como uma espécie de antídoto. Os católicos (aí compreendida minha família), por força do hábito ou por questão de consciência, continuaram freqüentando a missa dominical, não obstante a agressão moral e verbal que sofriam periodicamente. Mas muitos tinham a graça de ter em casa, em compensação, uma fonte de doutrina católica pura, autêntica, que os consolava, fortalecia, preparava para uma reação, uma resposta.

Ainda bem pequeno, certamente graças à contribuição de Permanência, pude ver, a partir da minha pequena cidade interiorana, que havia algo errado na Igreja. De repente, os cônegos premonstratenses fecham seu antigo colégio São Norberto; as irmãs de São José de Chamberry fecham igualmente seu colégio cheio de alunas católicas, tendo a madre reitora a petulância de responder a meu pai que manifestava sua inconformidade e tristeza: “Não vamos trabalhar mais para a burguesia”. Também os padres consolatas fecham seu seminário. Todas essas congregações dilapidam de forma irresponsável e criminosa (o mínimo que se pode dizer) o seu valioso patrimônio, construído com a ajuda e o esforço da comunidade católica e do poder público (não se esqueça o prestígio de que então gozava a Igreja junto ao poder público que ainda reconhecia a sua contribuição para o bem comum).

Os anos se passaram. O menino nascido no seio de uma família católica que via aturdido tudo aquilo quis ser padre. Para a escolha de um seminário a revista Permanência e a obra de Gustavo Corção foram de uma particular importância. De fato, a leitura mensal da Permanência ajudou-me a entrar em contato com autores católicos de grande valor. A leitura de Dois Amores Duas Cidades e do Século do Nada, que reputo os melhores livros de Corção auxiliou-me não só a ter uma visão da gravidade do processo de decomposição da cristandade e da crise da Igreja decorrente do Vaticano II, mas também a despertar o desejo de ler Carlos de Laet, Eduardo Prado, Jackson de Figueiredo, Leonel Franca, Galvão de Sousa, entre os autores brasileiros. A leitura de Corção avivou-me ainda o interesse por Eça de Queirós, Machado de Assis, Dostoievski e Paul Bourget. Quanto a este último, devo dizer que considero injusto o que diz Corção a seu respeito em A descoberta do Outro, qualificando como detestável sua obra por ser “ esmiuçadora de alcovas” como a de Montherlant. Aqui laborou em erro grave Corção, não reconhecendo o valor da obra de Bourget que desenvolve em seus romances de tese uma argumentação sólida em defesa dos princípios e fundamentos da ordem social cristã, combatendo o divórcio e o igualitarismo. Os romances de Paul Bourget L’Étape, L’Emigré, Un divorce são ainda hoje leituras recomendáveis e proveitosas para a formação de uma sã mentalidade católica.

Fazendo uma síntese da leitura desses autores sugeridos por Corção, na hora de escolher um seminário para ser padre, com o propósito de lutar contra a decomposição da sociedade tradicional e defender a Igreja contra o ataque de seus inimigos infiltrados até na sua medula, minha escolha só podia recair sobre um seminário que se orientasse conforme o magistério perene dos papas e preservasse a liturgia romana tradicional, o que na época só existia nos seminários da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por Mons. Lefèbvre.

Lembro-me de uma polêmica que explodiu pouco antes de ingressar no seminário. O grupo Permanência saiu em defesa dos padres da Diocese de Campos que, em torno do grande bispo Dom Antonio de Castro Mayer, preservavam a liturgia tradicional e combatiam o progressismo. Houve um sujeito descarado que não teve pejo de escrever a um jornal de São Paulo que Corção, no fim da vida, havia aceitado plenamente as reformas mais desastrosas feitas em nome do Vaticano II. Esse sujeito foi desancado e saiu desmoralizado da polêmica, que propiciou um retorno aos melhores artigos de Corção sobre a crise da Igreja. Hoje parece que ocorre algo semelhante com a obra de Romano Amério, autor do monumental Iota unum – studio delle variazioni della Chiesa Cattolica nel secolo XX. É lamentável que haja católicos que, para agradar a autoridades religiosas, cheguem a ter a desfaçatez de querer falsificar o pensamento de grandes autores que tiveram o mérito de agradar antes a Deus que aos homens e com valentia combateram a heresia onde quer que ela se econtrasse.

Passados trinta anos da morte de Corção e mais de dez anos da minha ordenação sacerdotal, vendo os últimos desdobramentos da crise na Igreja e no mundo, aprendendo a conhecer a grandeza e a malícia dos homens, aprecio hoje com mais proveito não só a beleza de estilo da obra de Corção mas sua grandeza moral. O drama que vive hoje a Igreja resulta em grande medida da covardia dos homens que perderam o amor à verdade. Em nome de arranjos, combinações, enfim, em nome da prudência da carne, não se quer mais defender a verdade.

Corção não teve essa pequenez moral. Amicus Plato, sed magis amica veritas. Corção viveu plenamente essa frase atribuída a Aristóteles. No fim de sua vida, quando já via com clareza as causas e conseqüências da crise da Igreja, não teve medo nem vergonha de combater e denunciar o erro com uma autoridade, uma convicção que só se podia explicar por uma graça especial de Deus concedida a ele para cumprir uma missão. Seu estilo literário apurou-se, ganhou mais brilho e vigor. Mas muitos o abandonaram ou não o entendiam mais. Morreu praticamente isolado, sem apoio da hierarquia eclesiástica.

Creio que sua obra deve ser lida e interpretada à luz dos princípios da escatologia. Representa uma graça especial concedida pela Divina Providência para os últimos tempos, a fim de que os eleitos tivessem uma orientação segura em dias de borrasca e trevas, onde parece que tudo naufraga na apostasia e no naturalismo.

Creio também que o que há de mais admirável, perene e importante na sua obra não é tanto sua Capela Santa Maria das Vitórias - Anapolis (GO)reflexão sobre as causas históricas da crise que vivemos, como, por exemplo, seu minucioso estudo do affaire Dreyfus e da condenação da Ação Francesa de Maurras ou dos graves erros da filosofia política de Maritain, ou ainda dos problemas do Vaticano II, mas sim sua meditação sobre a condição do homem na terra, as causas da sua angústia, do seu desespero ou de sua felicidade e esperança. Corção refletiu sobre tudo isso de uma forma admirável, em um estilo literário de beleza ímpar, analisando páginas de grandes escritores em seu livro O Desconcerto do Mundo (1965). Nele, Corção faz ver a inconsistência do humanismo e do naturalismo sem Deus e sem esperança. Aí Corção faz ver que o homem não foi feito para o mundo e que todas as tentativas de acomodar o homem ao mundo, em vez de lhe mitigarem o sofrimento, só deformam e desumanizam o homem. Assim ele explica o famoso pessimismo de Machado de Assis, como o de alguém que compreende que o destino do homem na terra é realmente a frustração porque o homem não encontra aqui o seu lugar, mas como lhe falta a fé, Machado de Assis não sabe remediar tal situação angustiosa. É um livro que se lê com grande proveito e prazer.

De maneira que, aplicando ao problema da história e da política essas reflexões sobre o homem, Corção foi capaz de desmascarar as utopias socialistas e o democratismo cristão. Diz ele, com efeito, na citada obra: “o socialismo é uma filosofia de vida que pretende adaptar o homem ao mundo, e cingir a sorte do homem aos horizontes terrestres. Cada vez que isto for tentado, não é somente a felicidade do céu que se perde, é inicialmente a felicidade da terra.” (o. c. p. 36).

Foi também, justamente, essa sabedoria de Corção que lhe permitiu travar tão rígido combate doutrinário e assistir à agonia da Igreja e da civilização sem assumir um caráter rancoroso ou desesperado. Pelo contrário, nele tudo era serenidade e confiança. Nelson Rodrigues, seu grande amigo, dizia em Corção tudo é amor. (cf. Permanência, 1971).

Oxalá essa efeméride propicie um retorno à obra de Corção, a fim de que ela lance uma luz sobre o caminho trilhado pela Igreja esses últimos anos e assim se possa fazer uma reflexão, corrigir tantos erros e distinguir o joio do trigo.

Pelo grande bem que fez, rendo hoje, através do site Santa Maria das Vitórias, à memória de Gustavo Corção minha humilde homenagem de gratidão.


Teremos oportunidade de publicar em nosso site os melhores artigos de Corção sobre a crise da Igreja.