Quando resistir ao Papa é um dever.

O caso singular do bispo Robert Grossateste.

Por Cristiana de Magistris | Tradução: Fratres in Unum.com * – O nome do bispo inglês Robert Grossateste (1175-1253) é quase totalmente desconhecido do mundo italiano. Para os poucos que têm alguma erudição, ele é notável por sua genialidade no campo científico, onde suas obras são consideradas de valor inestimável, a ponto de lhe terem merecido o título de “pioneiro” de um movimento científico e literário, bem como de “primeiro” matemático e físico de seu tempo.

Mas Robert Grossetesta foi acima de tudo um Bispo santo, que se distinguiu por seu zelo em promover a salus animarum e por seu amor ao papado.

Mente absolutamente prodigiosa e versada não apenas em estudos científicos, mas também no literário, teológico e bíblico, Robert Grossateste tornou-se bispo de Lincoln em 1235. “Desde que fui nomeado bispo – escreveu – considero-me o pastor e guarda das almas que me comprometo a cuidar com toda a minha força, porque do rebanho que me foi confiado vou prestar estrita conta no Dia do Juízo” [1]. Seu principal objetivo era de “reformar a sociedade através da reforma do clero” [2]. A disciplina austera que exigia de seus sacerdotes era conhecida em toda a Inglaterra: renúncia à recompensa pecuniária, obrigação de residência, reverência na celebração da Santa Missa, fidelidade na recitação do Ofício Divino, educação do povo, total disponibilidade para os doentes e as crianças. Com essas regras, o bispo Inglês, além de elevar o nível das pregações e do ensino do clero, queria melhorar sua conduta moral.

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Instituto Angelicum lança curso de História da Igreja.

Escreve-nos Luiz Astorga:

Lançaremos em breve um curso de história da Igreja, ministrado por William Bottazzini e coordenado por mim. Desejamos poder auxiliar o cristão a melhor compreender e defender a sua Igreja, cuja tradição é hoje tão freqüentemente menosprezada, seja por ignorância, seja mesmo por malícia. A bibliografia é de primeira e, em sua quase totalidade, é a mesma que até recentemente se utilizava nos cursos da Gregoriana.
O primeiro módulo, aberto agora, vai das origens até 313 d.C.

Mais informações no site do Instituto Angelicum.

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Todo anúncio veiculado em FratresInUnum.com é absolutamente gratuito, visando apenas o bem das almas e a glória de Deus. Caso queira divulgar algo, nosso e-mail de contato é fratresinunum@gmail.com

Haec Sancta (1415), um documento conciliar que foi condenado pela Igreja.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 20-VII-2016 | Tradução: FratresInUnum.comO Concílio de Constança (1414-1418) está entre os 21 Concílios ecumênicos da Igreja, mas seu decreto Haec Sancta, de 6 de abril de 1415, é considerado herético, por afirmar a supremacia do Concílio sobre o Romano Pontífice. Em Constança, o Haec Sancta teve sua aplicação no decreto Frequens, de 9 de outubro de 1417, que convocava um Concílio para cinco anos mais tarde, o seguinte após outros sete anos, e depois um a cada dez anos.

concilio-costanza-390x278Com isso se atribuía de fato ao Concílio a função de órgão colegiado permanente junto ao Papa, mas que na realidade lhe era superior. Martinho V, eleito Papa em Constança em 1417, na bula Inter cunctas, de 22 de fevereiro 1418, reconheceu a ecumenicidade do Concílio de Constança e tudo o que este havia decidido, embora com uma fórmula vaga e restritiva: “in favorem fidei et salutem animarum” [em tudo que for a favor da fé e da salvação das almas].

Não sabemos se o Papa concordava, pelo menos em parte, com as teorias conciliaristas, ou se foi forçado a esta atitude pela pressão dos cardeais que o tinham elegido. Mas o fato é que ele não repudiou o Haec Sancta, antes aplicou com rigor o decreto Frequens, fixando a data de um novo Concílio geral, que se realizou em Pavia-Siena (1423-1424), e designando a cidade de Basileia como sede da seguinte assembleia conciliar. No entanto, como ele morreu em 21 de fevereiro de 1431, esse segundo Concílio foi aberto pelo seu sucessor, Gabriel Condulmer, eleito Papa em 3 de março de 1431 com o nome de Eugênio IV.

Já na abertura do Concílio de Basileia, explodiu a oposição entre os fiéis ao Papado e os partidários das teorias conciliaristas, que constituíam a maioria dos Padres conciliares. O braço de ferro conheceu alternâncias. Em uma primeira etapa, Eugênio IV retirou sua aprovação aos Padres rebeldes de Basileia. Depois, cedendo a pressões políticas e eclesiásticas, recuou, e com a bula Duduum Sacrum, de 15 de dezembro de 1433, revogou o ato de dissolução do Concílio já decretado, ratificando os documentos que havia emitido até aquele momento, e, portanto, também o Haec Sancta, que os Padres de Basileia proclamavam como a sua carta magna.

Quando o Papa percebeu que eles não se deteriam nas suas reivindicações, desautorou novamente o trabalho do Concílio, transferindo-o para Ferrara (1438), Florença (1439), e depois Roma (1443). A transferência, no entanto, foi rejeitada pela maioria dos Padres conciliares, que permaneceram em Basileia, continuando os trabalhos. Abriu-se nessa altura aquilo que entrou para a História como o pequeno Cisma do Ocidente (1439-1449), para distingui-lo do Grande (1378-1417) que o havia precedido.

O Concílio de Basileia depôs Eugênio IV como herege e elegeu o Duque de Sabóia, Amadeu VIII, como antipapa sob o nome de Félix V. De Florença, para onde o Concílio havia sido transferido, Eugênio IV lançou a excomunhão sobre o antipapa e os Padres cismáticos de Basileia. A Cristandade ficou mais uma vez dividida, mas se na época do Grande Cisma os teólogos conciliaristas haviam prevalecido, nesta fase o Papa foi apoiado por um grande teólogo, o dominicano espanhol Juan de Torquemada (1388-1468), que não deve ser confundido com o Inquisidor do mesmo nome.

Torquemada, distinguido por Eugênio IV com o título de Defensor da Fé, é autor de uma Summa de Ecclesia, na qual afirma com vigor o primado do Papa e a sua infalibilidade, e dissipa com grande precisão os mal-entendidos conciliaristas criados no século XIV, com base na hipótese de um Papa herege. Segundo o teólogo espanhol, é concretamente possível dar-se o caso de um Papa herege, mas a solução do problema não deve ser procurada de forma alguma no conciliarismo, que nega a supremacia papal. A possibilidade de heresia do Papa não compromete o dogma da infalibilidade, porque se ele quisesse definir uma heresia ex cathedra, perderia naquele mesmo momento o seu cargo (Pacifico Massi, Magisterio infallibile del Papa nella teologia de Giovanni de Torquemada, Marietti , Turim 1957, pp. 117-122). As teses de Torquemada foram desenvolvidas no século seguinte pelo seu colega italiano, o Cardeal Caetano.

O Concílio de Florença foi muito importante, por ter promulgado em 6 de julho de 1439 a bula de união Laetentur Coeli et exultet terra, que pôs provisoriamente fim ao cisma do Oriente, mas sobretudo por ter condenado definitivamente o conciliarismo, confirmando a doutrina da autoridade suprema do Papa sobre a Igreja. Em 4 de setembro de 1439, Eugênio IV definiu solenemente, e os gregos aceitaram, “que a Santa Sé Apostólica e o Romano Pontífice têm primazia sobre todo o universo; que o mesmo Romano Pontífice é o sucessor do bem-aventurado Pedro, Príncipe dos Apóstolos, é autêntico Vigário de Cristo, chefe de toda a Igreja, pai e mestre de todos os cristãos; que Nosso Senhor Jesus Cristo transmitiu a ele, na pessoa do bem-aventurado Pedro, o pleno poder de apascentar, reger e governar a Igreja universal, como está consignado nos atos dos Concílios ecumênicos e dos cânones sagrados”(DS-H, n. 1307 ).

Na carta Etsi dubitemus, de 21 de Abril 1441, Eugênio IV condenou os hereges de Basileia e os “diabólicos fundadores”, um século antes, da doutrina conciliarista – Marsílio de Pádua, João de Jandun e Guilherme de Ockham (Epistolae pontificiae ad Concilium Florentinum spectantes, Pontifício Instituto Oriental, Roma, 1946, p. 28 – pp. 24-35) –, mas contra o Haec Sancta tomou uma atitude hesitante, propondo aquilo que em termos modernos poderia ser chamado de “hermenêutica da continuidade”. No decreto de 4 de setembro de 1439, Eugênio IV afirma que a superioridade dos Concílios sobre o Papa, defendida pelos Padres de Basileia com base no Haec Sancta, é “uma má interpretação dada pelos mesmos Padres de Basileia, que de fato se revela contrária ao significado genuíno das Sagradas Escrituras, dos Santos Padres e do próprio Concílio de Constança” que o promulgou (Decreto de 4 de setembro de 1439, in Conciliorum Oecumenicorum Decreta, EDB, Bolonha 2002, p. 533).

O mesmo Eugênio IV ratificou o Concílio de Constança no seu todo e em seus decretos, excluindo “qualquer prejuízo aos direitos, à dignidade e à preeminência da Sé Apostólica”, como escreveu ao seu legado em 22 de julho de 1446. A tese da “hermenêutica da continuidade” entre o Haec Sancta e a Tradição da Igreja foi logo abandonada. O Haec Sancta é certamente um ato autêntico de um Concílio ecumênico legítimo, ratificado por três Papas, mas isso não basta para tornar vinculante no plano doutrinário um documento do Magistério que está em desacordo com o ensinamento perene da Igreja. Hoje acreditamos que do Concílio de Constança só podem ser aceitos aqueles documentos que não lesam os direitos do papado e não se contrapõem à Tradição da Igreja. Tais documentos não incluem o Haec Sancta, que é um ato conciliar formalmente herético.

Historiadores e teólogos explicam que o Haec Sancta pode ser repudiado, porque não foi uma definição dogmática, uma vez que faltam nele fórmulas típicas como anathema sit e verbos como “ordena, define, determina, estabelece, decreta e declara”. O verdadeiro alcance do decreto é de caráter disciplinar e pastoral, não implicando infalibilidade (ver, por exemplo, o verbete Concílio de Constança, do cardeal Alfred Baudrillart, no Dictionnaire de Théologie Catholique, III, col. 1221 – cols. 1200-1224).

O cisma de Basileia terminou em 1449, quando o antipapa Félix V chegou a um acordo com o sucessor de Eugênio IV, o Papa Nicolau V (1447-1455). Félix abdicou solenemente e o Papa o fez cardeal e vigário papal. A condenação do conciliarismo foi reafirmada pelo V Concílio Lateranense, pelo Concílio de Trento e pelo Concílio Vaticano I. Quem hoje defende a instituição do Papado deve estudar estas definições dogmáticas, e acompanhar esse estudo com os aprofundamentos fornecidos pelas obras dos grandes teólogos da Primeira e da segunda Escolástica, a fim de encontrar nesta mina doutrinária todos os elementos necessários para enfrentar a atual crise na Igreja.

Honório I: o caso controverso de um Papa herético.

Por Roberto de Mattei – Corrispondenza Romana | Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.comO caso do Papa Honório é um dos mais controversos da História da Igreja, como observa com justeza Emile Amann, historiador da Igreja, no amplo estudo que dedica à Question d’Honorius no Dictionnaire de Théologie Catholique (vol. VII, coll, 96-132).

onorio-i-468x278No centro do pontificado do Papa Honório, que reinou de 625 a 638, havia a questão do monotelismo, a última das grandes heresias cristológicas. Para agradar o imperador bizantino Heráclio, desejoso de garantir a paz religiosa dentro do seu reinado, o Patriarca de Constantinopla Sérgio procurou encontrar um compromisso entre a ortodoxia católica, segundo a qual em Jesus Cristo há duas naturezas em uma só pessoa, e a heresia monofisita, que atribuía a Cristo uma só pessoa e uma só natureza. O resultado do compromisso foi uma nova heresia, o monotelismo, segundo o qual a dupla natureza de Cristo era movida em suas ações por uma só operação e uma só vontade. Tratava-se de um semi-monofisismo, mas a verdade ou é íntegra ou não é verdade, e uma heresia moderada permanece sempre uma heresia. Sofrônio, Patriarca de Jerusalém, estava entre os que intervieram com mais força para denunciar a nova doutrina, que anulava a humanidade de Cristo e conduzia ao monofisismo, condenado pelo Concílio de Calcedônia (451).

Sérgio escreveu ao Papa Honório para pedir que “no futuro a ninguém seja permitido afirmar duas operações em Cristo nosso Deus” e obter seu apoio contra Sofrônio. Honório infelizmente aderiu ao pedido. Em uma carta a Sérgio, afirmou que “a vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo era apenas uma (unam voluntatem fatemur), pelo fato de que nossa natureza humana foi assumida pela divindade”, e convidou Sofrônio ao silêncio. A correspondência entre Sérgio e Honório é preservada nos registros do VI Concílio Ecumênico (Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima Collectio, vol. XI, coll. 529-554) e foi republicada em latim, grego e francês por Arthur Loth (La cause d’Honorius. Documents originaux avec traduction, notes et conclusion, Victor Palmé, Paris, 1870), bem como em grego e alemão, Georg Kreuzer, Die Honoriusfrage im Mittelalter und in der Neuzeit, Anton Hiersemann, Stuttgart 1975).

Com o apoio do Papa, Heráclio publicou em 638 um formulário de doutrina chamado Echtesis (“Exposição”), pelo qual impunha a nova teoria de uma só vontade divina de Jesus Cristo como religião oficial. O monotelismo triunfou durante quarenta anos no Império bizantino. Nessa época,  o  mais vigoroso defensor da fé foi o monge Máximo, dito o Confessor, que participou de um Sínodo convocado em Latrão (649) pelo Papa Martinho I para condenar o  monotelismo. Tanto o Papa quanto Máximo foram forçados ao exílio. A Máximo, por se recusar a subscrever as doutrinas monotelitas, foram cortadas a língua e a mão direita. Sofrônio,  Máximo e Martinho  são hoje venerados pela Igreja como santos por sua indômita resistência à heresia monotelita.

A fé católica foi finalmente restaurada pelo III Concílio de Constantinopla, o VI Concílio Ecumênico da Igreja, que se reuniu em 7 de novembro de 680 na presença do Imperador Constantino IV e dos representantes do novo Papa, Santo Agatão. O Concílio condenou o monotelismo e lançou o anátema contra todos aqueles que tinham promovido ou favorecido a heresia, incluindo o Papa Honório na condenação.

Na XIII sessão, realizada em 28 de março de 681, os Padres conciliares, após proclamar seu desejo de excomungar Sérgio, Ciro de Alexandria, Pirro, Paulo e Pedro, todos Patriarcas de Constantinopla, bem como o bispo Teodoro de Faran, afirmavam: “Com eles desejamos banir da Santa Igreja de Deus e de anatematizar também Honório, outrora Papa da antiga Roma, porque encontramos em sua carta a Sérgio que ele seguiu em tudo a sua opinião e ratificou seus ensinamentos ímpios” (Mansi, col. 556).

Em 9 de agosto de 681, no final da XVI sessão, foram renovados os anátemas contra todos os hereges e fautores da heresia, inclusive Honório: “Sergio haeretico anathema, Cyro haeretico anathema, Honorio haeretico anathema, Pyrro haeretico anathema” (Mansi, XI , 622). No decreto dogmático da XVIII sessão, em 16 de setembro, se diz que, “porquanto [o demônio] não permaneceu inativo, ele que desde o início foi o inventor da malícia, e que se servindo da serpente introduziu a morte venenosa na natureza humana, assim também agora encontrou os instrumentos adequados à sua vontade: aludimos a Teodoro, que foi bispo de Faran; a Sérgio, Pirro, Paulo, Pedro, que foram bispos dessa cidade imperial; e também a Honório, que foi Papa da antiga Roma; (…) [Satanás] encontrou, portanto, os instrumentos adequados, não cessou, através destes, de suscitar no corpo da Igreja os escândalos do erro; e com expressões jamais  ouvidas, disseminou entre o povo fiel a heresia de uma única vontade e uma só operação em duas naturezas de uma [das Pessoas] da Santíssima Trindade, ou seja, de Cristo, nosso verdadeiro Deus, e isso em harmonia com a louca doutrina falsa dos ímpios Apolinário, Severo e Temístio” (Mansi, XI, coll. 636-637).

As cópias autênticas dos atos do Concílio, subscritas por 174 Padres e pelo Imperador, foram enviadas às cinco sede patriarcais, em particular à de Roma. Com a morte de Santo Agatão em 10 de janeiro 681, os atos do Concílio, após mais de 19 meses de sede vacante, foram ratificados por seu sucessor, Leão II. Na carta enviada em 7 de maio 683 ao Imperador Constantino IV, o Papa escrevia: “Anatematizamos os inventores do novo erro, ou seja, Teodoro de Faran, Ciro de Alexandria, Sérgio, Pirro, Paulo e Pedro da Igreja de Constantinopla, e também Honório, que não se esforçou para manter pura esta Igreja Apostólica na doutrina da tradição apostólica, mas permitiu,  com  uma execrável traição, que esta Igreja sem mácula fosse manchada” (Mansi, XI, 733). Nesse mesmo ano, o Papa Leão ordenou que as atas, traduzidas para o latim, fossem assinadas por todos os bispos do Ocidente, e as assinaturas conservadas junto ao túmulo de São Pedro. Como enfatiza o eminente historiador jesuíta Hartmann Grisar, “se queria assim obter a aceitação universal do sexto Concílio do Ocidente, e isso, pelo que se conhece, ocorreu sem dificuldade” (Analecta romana, Desclée, Roma 1899, pp. 406 -407).

A condenação de Honório foi confirmada pelos sucessores de Leão II, como atesta o  Liber diurnus romanorum pontificum e pelos sétimo (787) e oitavo (869-870) Concílios Ecumênicos da Igreja (C. J. Hefele, Histoire des Conciles, Letouzey et Ané, Paris 1909, vol. III, pp. 520-521).

O padre Amann julga historicamente indefensável a posição daqueles que, como o cardeal Barônio, crêem que os atos do sexto Concílio tenham sido alterados. Os legados pontifícios estavam presentes no Concílio e seria difícil imaginar que eles pudessem ter-se deixado ludibriar ou tivessem produzido um relatório falso sobre um ponto tão importante e delicado como a condenação, por herético, de um Pontífice romano. Referindo-se em seguida a teólogos como São Roberto Belarmino, que para salvar a memória de Honório negaram a presença de erros explícitos em suas cartas, Amann salienta que eles levantam um problema maior do que aquele que pretendem resolver, isto é,  o da infalibilidade dos atos de um Concílio presidido por um Papa. Se de fato  Honório não caiu em erro, então erraram os Papas e o Concílio  que o condenaram. Os atos do VI Concílio Ecumênico, aprovados pelo Papa e acolhidos pacificamente pela Igreja universal, têm um força magisterial muito maior do que as cartas de Honório a Sérgio. Para resguardar a infalibilidade, é melhor admitir a possibilidade histórica de um Papa herege do que afrontar as definições dogmáticas e os anátemas de um Concílio ratificado pelo Romano Pontífice. É doutrina comum que a condenação dos escritos de um autor é infalível quando o erro é anatematizado com a nota de heresia, enquanto não é sempre e necessariamente infalível o Magistério ordinário da Igreja [como o exercido pelo Papa Honório em suas cartas].

Durante o Concílio Vaticano I, a Deputação da Fé enfrentou o problema, expondo uma série de regras de caráter geral, que se aplicam não só ao caso de Honório, mas a todas as dificuldades passadas ou que possam surgir no futuro. Não basta que o Papa se pronuncie sobre uma questão de fé ou de costumes dirigindo-se à Igreja universal; é necessário que o decreto do Romano Pontífice seja redigido de modo tal, que fique claro tratar-se de um julgamento solene e definitivo, com a intenção de obrigar todos os fiéis a crer (Mansi, vol. LII, et al., 1204-1232). Há, portanto, atos do Magistério pontifício ordinário não infalíveis, porque privados do necessário caráter definitório, quod ad formam seu modum attinet.

As cartas do Papa Honório são desprovidas dessas características. Elas são, sem dúvida, atos do Magistério, mas no Magistério ordinário não infalível pode haver erros e até mesmo, em casos excepcionais, formulações heréticas. O Papa pode cair em heresia, mas não poderá jamais pronunciar uma heresia ex cathedra. No caso de Honório, como observava o patrólogo beneditino Dom John Chapman OSB, não se pode afirmar que ele tenha tido a intenção de fazer um julgamento ex cathedra definitivo e vinculante: “Honório era falível, estava errado, era um herege, precisamente porque não definiu com plena autoridade, como deveria, a tradição petrina da Igreja de Roma” (The Condemnation of Pope Honorius [1907] Reprint. Livros Esquecidos, Londres, 2013, p. 110). Suas cartas a Sérgio, embora tratando de fé, não promulgaram qualquer anátema e não cumpriram os requisitos exigidos pelo dogma da infalibilidade, promulgado pelo Concílio Vaticano I. O princípio da infalibilidade ficou salvo, ao contrário do que pensavam protestantes e galicanos. E se Honório foi anatematizado, explicou o Papa Adriano II no Sínodo romano de 869, “a razão é que Honório tinha sido acusado de heresia, a única causa pela qual é permitido aos inferiores resistir a seus superiores e rejeitar seus sentimentos perversos” (Mansi, XVI, 126). Também se baseando nessas palavras, após analisar o caso do Papa Honório, o grande teólogo dominicano Melchior Cano resumiu o ensino mais seguro nesses termos: “Não se deve negar que o Sumo Pontífice possa ser herege, coisa sobre a qual se pode oferecer um ou dois exemplos. Mas não se pode demonstrar um caso sequer em que [o Papa], ao julgar sobre a fé, tenha definido [ex cathedra] qualquer coisa contra a fé” (De Locis Theologicis, l. VI, tr. espanhola, BAC, Madrid 2006, p. 409).

A filial resistência de São Bruno de Segni ao Papa Pascoal II.

Por Roberto de Mattei | Tradução: Fratres in Unum.com – Entre os mais ilustres protagonistas da reforma da Igreja nos séculos XI e XII, destaca-se a figura de São Bruno, bispo de Segni e abade de Monte Cassino.

Bruno nasceu em torno do ano 1045 em Solero, perto de Asti, no Piemonte. Depois de ter estudado em Bolonha, foi ordenado sacerdote no clero romano e aderiu com entusiasmo à reforma gregoriana. O Papa São Gregório VII (1073-1085) nomeou-o bispo de Segni e o teve entre os seus mais fiéis colaboradores. Também seus sucessores Vitor III (1086-1087) e Urbano II (1088-1089) valeram-se da colaboração do bispo de Segni, que unia aos seus trabalhos de estudioso um intrépido zelo apostólico em defesa do Primado romano.

Bruno participou dos concílios de Piacenza e de Clermont — no qual Urbano II convocou a primeira Cruzada — e mais tarde foi legado da Santa Sé na França e na Sicília. Em 1107, sob o novo Pontífice Pasqual II (1099-1118), tornou-se abade de Monte Cassino, cargo que fazia dele uma das personalidades eclesiásticas mais destacadas de seu tempo. Grande teólogo e exegeta, resplandecente pela doutrina, como escreve em seus Anais o cardeal Barônio (tomo XI, ano 1079), é considerado um dos melhores comentadores medievais das Sagradas Escrituras (Réginald Grégoire,  Bruno de Segni, exégète médiéval et théologien monastique, Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, Spoleto, 1965).

Sua época foi cheia de choques políticos e de profunda crise espiritual e moral. Na obra De Simoniacis, Bruno oferece-nos uma imagem dramática das deturpações da Igreja de seu tempo. Já no tempo do Papa São Leão IX (1049-1054) “mundus totus in maligno positus erat (todo o mundo estava sob o poder do maligno): não havia mais santidade; a justiça estava em decadência e a verdade sepultada. Reinava a iniquidade, dominava a avareza; Simão o Mago possuía a Igreja, os Bispos e os sacerdotes entregavam-se à volúpia e à fornicação. Os sacerdotes não se envergonhavam de tomar mulher, de abertamente contrair núpcias e matrimônios nefandos. (…) Tal era a Igreja, tais eram os Bispos e os sacerdotes, tais foram alguns dos Romanos Pontífices” (cf. S. Leonis papae Vita in Patrologia Latina (PL), vol. 165, col. 110).

No âmago da crise, além do problema da simonia e do concubinato dos sacerdotes, havia a questão da investidura dos bispos. O Dictatus Papae, com o qual, em 1075, São Gregório VII havia reafirmado os direitos da Igreja contra as pretensões imperiais, constituiu a magna carta à qual apelavam Vítor III e Urbano II. Mas Pascoal II abandonou a posição intransigente de seus predecessores e tentou de todas as maneiras um acordo com o futuro imperador Henrique V. No começo de fevereiro de 1111, em Sutri, ele pediu ao soberano alemão que renunciasse ao direito de investidura, oferecendo-lhe em troca a renúncia da Igreja a todos os direitos e bens temporais. As negociações esvaneceram-se como fumaça e, cedendo às intimidações do imperador, Pascoal II aceitou um compromisso humilhante, assinado em Ponte Mammolo, em 12 de abril de 1111. O Papa concedia a Henrique V o privilégio da investidura dos bispos, antes mesmo da sagração pontifícia, com o anel e o báculo que simbolizavam tanto o poder temporal quanto o espiritual, prometendo ao soberano de jamais excomungá-lo. Pascoal coroou então Henrique V em São Pedro.

Essa concessão levantou uma multidão de protestos na Cristandade, porque contrariava a posição de São Gregório VII. O abade de Monte Cassino, segundo o Chronicon Cassinense (PL, vol. 173, col. 868 C-D), protestou com força contra o que ele então definiu não como um privilegium, mas um pravilegium [NdT: jogo de palavras contrapondo um privilégio legítimo ao favorecimento do mal – pravus], e promoveu um movimento de resistência ao lapso papal. Numa carta endereçada a Pedro, bispo de Porto, ele definiu o tratado de Ponte Mammolo como “heresia”, apelando para as determinações de muitos concílios: “Quem defende a heresia – escreve – é herético. Ninguém pode dizer que essa não é uma heresia” (Carta Audivimus quod, in PL, vol. 165, col.1139 B).

Dirigindo-se depois diretamente ao Papa, Bruno afirma: “Os meus inimigos vos dizem que eu não vos amo e que falo de vós pelas costas, mas eles mentem. Eu de fato vos amo, como devo amar a um Pai e senhor. Enquanto estiverdes vivo, não quero ter outro pontífice, como vos prometi, junto a muitos outros. Escuto porém Nosso Salvador que me diz: ‘Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim’ (Mt. 10-37). (…) Devo portanto amar-vos, mas devo amar ainda mais Aquele que criou a vós e a mim”. Com o mesmo tom de filial franqueza, Bruno convidava o Papa a condenar a heresia, porque “quem defende a heresia é herético” (Carta Inimici mei, in PL, vol. 163, col. 463 A-D).

Pascoal não tolerou essa voz de dissensão e destituiu Bruno do cargo de abade de Monte Cassino. Mas o exemplo de São Bruno motivou muitos outros prelados a pedirem com insistência ao Papa que revogasse o pravilegium. Alguns anos mais tarde, num Concílio que se reuniu no Palácio de Latrão, em março de 1116, Pascoal II retratou o acordo de Ponte Mammolo. O mesmo Sínodo lateranense condenou a visão pauperista da Igreja, expressa no acordo de Sutri. A concordata de Worms, de 1122, entre Henrique V e o Papa Calixto II (1119-1124), encerrou – pelo menos temporariamente – a questão das investiduras. Bruno morreu em 18 de julho de 1123. Seu corpo foi sepultado na catedral de Segni e, pela sua intercessão, houve a seguir muitos milagres. Em 1181, ou, mais provavelmente, em 1183, o Papa Lúcio III colocou-o entre os santos.

Alguém poderá objetar que Pascoal II (como mais tarde João XXII, na questão da visão beatífica) não incorreu jamais em heresia formal. Mas esse não é o cerne do problema. Na Idade Média o termo heresia era empregado em sentido amplo. Depois do Concílio de Trento, a linguagem teológica tornou-se mais precisa, introduzindo distinções entre proposições heréticas, próximas da heresia, errôneas, escandalosas, etc.

Não vem ao caso, aqui, definir a natureza das censuras teológicas aplicáveis aos erros de Pascoal II e João XXII, mas analisar a liceidade de se resistir a tais erros, os quais certamente não correspondiam a sentenças pronunciadas ex cathedra. A teologia e a história nos ensinam que, se uma declaração do Sumo Pontífice contém elementos censuráveis no plano doutrinário, é lícito — e pode até ser obrigatório — criticá-la, mesmo que não se trate de uma heresia formal, expressa solenemente. Foi o que fizeram São Bruno de Segni contra Pascoal II e os dominicanos do século XIV contra João XXII. Com sua atitude, eles não erraram, mas os Papas daqueles tempos, os quais aliás se retrataram antes de morrer.

Além disso, aqueles que com mais firmeza resistiram aos Papas que se desviavam da Fé foram precisamente os mais ardentes defensores da supremacia do Papado. Os prelados oportunistas e servis da época adaptaram-se ao flutuar dos homens e dos acontecimentos, antepondo a pessoa do Papa ao Magistério da Igreja. Bruno de Segni, nas pegadas de outros campeões da ortodoxia católica, antepôs, pelo contrário, a fé de Pedro à pessoa de Pedro e redarguiu a Pascoal II com a mesma firmeza respeitosa com que Paulo resistiu a Pedro (Gál. 2, 11-14).

Em seu comentário exegético de Mt. 16, 18, São Bruno explica que o fundamento da Igreja não é Pedro, mas a fé cristã confessada por Pedro. Cristo afirma, de fato, que Ele edificará a sua Igreja não sobre a pessoa de Pedro, mas sobre a fé que Pedro manifestou dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. A esta profissão de fé, Jesus responde: “É sobre esta pedra e sobre esta fé que edificarei a minha Igreja” (Comment.. in Matth., Pars III, cap. XVI, in PL, vol. 165, col. 213).

Elevando Bruno de Segni à honra dos altares, a Igreja chancelou a sua doutrina e o seu comportamento.

Bispo de Roma enquanto Papa.

Por Roberto de Mattei – Messa in Latino |Tradução: Alexandre Semedo – Fratres in Unum.com – Bispo de Roma enquanto Papa, ou o Papa enquanto Bispo de Roma? O primeiro título do Papa, Bispo de Roma, lembra a origem da eleição papal, que ocorre pelos cardeais representantes do clero romano, e indica que o Pastor universal é o Bispo da Igreja local de Roma. Mas o eleito torna-se bispo de Roma porque se tornou Papa; não se torna Papa porque eleito Bispo e Roma. Isto é evidenciado pelo fato de que um simples sacerdote ou até mesmo um leigo poderiam ser eleitos Papas. Pio XII explica que uma pessoa leiga, em caso de sua eleição ao pontificado supremo, poderia aceitar a nomeação, se aceitar ser ordenado bispo, mas, cumprida esta condição, “o poder de ensinar, governar e também o carisma da infalibilidade, ser-lhe-iam concedidos imediatamente, a partir do momento da sua aceitação, mesmo antes de sua ordenação” (Discurso ao II Congresso Mundial do Apostolado Leigo de 5 de Outubro de 1957, em Discursos e Rádio, XIX, p. 457-458).

O exercício do poder supremo de governo, mesmo antes da consagração episcopal, recebido após a eleição, por Papas que não são bispos ou nem mesmo sacerdotes, nunca foi contestado. Basta lembrar o caso de Bonifácio VIII, que, durante o mês decorrido entre sua eleição e sua consagração, cancelou todas as nomeações feitas por seus dois antecessores, Nicolau IV e Celestino V. Talvez o exemplo mais significativo é o de Adriano V, que, entre julho e agosto de 1.276, reinou apenas 38 dias, sendo apenas um diácono. Ninguém jamais contestou a validade dos atos com os quais, neste curto período, exerceu sua autoridade papal. As fontes históricas dizem especificamente dele, vixit in (Pontificato) Papatu 35 (38) dias. Alguns dos maiores papas da história da Igreja, como São Gregório Magno, São Gregório VII e Inocêncio III, foram ordenados bispos somente após a sua eleição para o Papado; mas desde o primeiro momento da sua aceitação foram considerados Papas. Após o século XVI, oito Papas receberam o episcopado após a sua eleição: Pio III, Leão X, Marcelo II, Clemente VIII, Clemente XI, Pio VI e Gregório XVI. A tradição e a prática da Igreja nos ensinam, portanto, que quem for eleito papa, embora simples leigo ou sacerdote, deve ser consagrado bispo o mais rápido possível, porque o Papa é o Bispo de Roma. Mas não é a consagração episcopal que lhe confere o Papado. Este erro se tornou comum nas últimas décadas, graças à nova eclesiologia progressiva.

Roberto de Mattei.

Professor Roberto de Mattei no Rio de Janeiro: uma perspectiva histórica sobre o Concílio Vaticano II.

“Sem o Vaticano II não conseguimos compreender o Papa Francisco; não conseguimos compreender a crise atual na Igreja. Essa crise existe, está diante dos nossos olhos e não tem precedentes na História; ela é uma crise que a todos nos diz respeito como homens e como cristãos.”

Por Fratres in Unum.com –  Realizou-se na tarde do último domingo, dia 8, no Rio de Janeiro, a tão aguardada conferência do Professor Roberto de Mattei. O salão de conferências do Hotel Flórida ficou repleto e os organizadores estimam que cerca de duzentas pessoas estiveram presentes para prestigiar o renomado historiador e professor titular de História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma.

Professor Roberto de Mattei no Rio de Janeiro: evento contou com cerca de 200 assistentes.
Professor Roberto de Mattei no Rio de Janeiro: evento contou com cerca de 200 assistentes.

Após a apresentação dos componentes da mesa pelo Sr. Mario Dias de Oliveira, Presidente do Instituto Vera Fides, teve inicio pontualmente às 16:30h a palestra do Prof. Roberto de Mattei, que foi proferida em língua portuguesa, para admiração dos presentes. Durante mais de uma hora, Roberto de Mattei falou interruptamente com suma clareza e objetividade sobre o evento mais marcante para a Igreja Católica no último século.

Inicialmente, de Mattei abordou a finalidade dos Concílios em geral — confirmar uma doutrina ou corrigir um erro, ainda que eles não fossem privados da dimensão pastoral. Ao contrário dos anteriores, o Concílio Vaticano II [1] preferiu expressar-se da maneira “pastoral”, adaptando sua linguagem ao homem moderno, priorizando, assim, esta dimensão em relação àquela doutrinal. Consequentemente, o Concílio deixou de condenar problemas gravíssimos, como, por exemplo, o comunismo. João XXIII já preconizava essa postura na abertura da Assembléia: “Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações”.

Sucesso de público: cadeiras tiveram que ser adicionadas e o espaço ficou pequeno.
Sucesso de público: cadeiras tiveram que ser adicionadas e o espaço ficou pequeno.

De Mattei, então, discorreu sobre o esforço de padres conciliares conservadores a fim de pedir ao Santo Padre que o Concílio condenasse explicitamente o Comunismo. Essa iniciativa contou com o trabalho de um pequeno grupo constituído especialmente por Dom Antonio de Castro Mayer, bispo de Campos, Dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo de Diamantina e pelo Prof. Plínio Correa de Oliveira, que consultaram centenas de Padres Conciliares sobre a oportunidade do Concílio se pronunciar contra a ideologia que dizimou milhões de homens no século passado. A essa iniciativa somou-se outra correlata, que pedia a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Ambas não lograram êxito. De Mattei discorreu também sobre as evidências de um acordo (o Pacto de Metz) [2] entre Roma e a Igreja Ortodoxa, segundo o qual o Concílio se absteria de condenar o comunismo em troca da participação de observadores do Patriarcado de Moscou.

Em seguida, foram abordadas questões como, por exemplo, a infiltração do comunismo nas estruturas a Igreja e o apoio de prelados vermelhos, como Dom Helder Câmara.

O professor explanou sobre o jogo de forças entre os dois grupos principais: progressistas – sobretudo de língua alemã — e conservadores, e o que ele chamou de Terceiro Partido, um grupo de Padres Conciliares sem muitas pretensões ideológicas e que se deixavam guiar pelo lobby dos dois anteriores.

Como ponto de destaque, o professor de Mattei salientou que o Concílio Vaticano II não pode ser visto apenas como aquilo que está escrito em seus documentos, mas sim como um evento global, que abrange diversos aspectos, incluindo suas consequências. Para exemplificar, ele falou da Revolução Francesa, comentando que “não é preciso que se leia ou se tenha conhecimento dos estatutos e documentos que a ensejaram; todos sabem o que a Revolução Francesa realmente significou, a julgar por seus frutos.” Pois bem, assim é o Concílio. Não se pode restringi-lo apenas aos seus documentos.

O professor deixou claro que sua análise do Concílio era sob o ponto de vista histórico, e que a ele não competia analisar o valor intrínseco de seus documentos, que deveriam ser analisados por teólogos e pela própria Igreja, em caráter dogmático.

Como uma das consequências mais prejudiciais do Vaticano II, o professor citou a substituição do conceito de “Igreja Militante” pelo de “Igreja Peregrina”. No início da palestra, citando o Padre O’Malley, ele comentou sobre o estilo dos documentos conciliares, que seria uma revolução na linguagem dos documentos da Igreja. A omissão ou limitação de referências ao Inferno, mesmo sem ser uma heresia, pode levar a caminhos graves, ou seja, a ideia de que ele não existe porque não se fala dele.

Uma longa fila formou-se para o autógrafo.
Uma longa fila formou-se para o autógrafo.

Após um pequeno intervalo, houve uma sessão de perguntas e respostas. O professor de Mattei respondeu a todas com muita clareza e simplicidade, ainda que fossem polêmicas ou delicadas. Uma das perguntas versava sobre a declaração do então Papa Bento XVI ao clero de Roma, a qual reclamava a existência de um Concílio Real e um Concílio da Mídia. O professor de Mattei respondeu que até se pode falar de um Concílio da Mídia [inventado pelos meios de comunicação], mas que este está também incluído dentro do único Concílio – o Concílio Real -, que deve ser analisado como um evento global.

A pedido do próprio Prof. de Mattei, as respostas foram dadas em italiano para melhor clareza e gentilmente traduzidas para o português pelo Dr. Mario Navarro da Costa, diretor de campanhas do IPCO, que atuou como intérprete para as perguntas e respostas.

O evento marcou ainda o lançamento do livro “Apologia da Tradição, um post-scriptum do livro Concílio Vaticano II – Uma História Nunca Escrita”, da Editora Ambientes & Costumes. Ao final dessa sessão, seis participantes foram sorteados com livros do autor, que foram entregues por cada um dos organizadores que compuseram a mesa.

Ao final, uma longa fila se formou para que todos pudessem ter seus livros autografados e cumprimentar pessoalmente o ilustre palestrante. Enquanto isso, os demais participantes puderam desfrutar de um café oferecido pelos organizadores e, assim, trocar ideias sobre a excelente conferência.

Da esquerda para a direita: Sra. Teresa Maria Freixinho (Fratres in Unum), Sr. Rodolpho Loreto (Instituto Vera Fides), S.A.I.R. Dom Antônio de Orleans e Bragança, Sr. Márcio Coutinho (Ação Jovem pela Terra de Santa Cruz) e o Sr. Mario Dias de Oliveira (Presidente do Instituto Vera Fides e Mestre de Cerimônias do Evento).
Da esquerda para a direita: Sra. Teresa Maria Freixinho (Fratres in Unum), Sr. Rodolpho Loreto (Instituto Vera Fides), S.A.I.R. Dom Antônio de Orleans e Bragança, Sr. Márcio Coutinho (Ação Jovem pela Terra de Santa Cruz) e o Sr. Mario Dias de Oliveira (Presidente do Instituto Vera Fides e Mestre de Cerimônias do Evento).

Agradecemos a todos os leitores do Fratres in Unum que participaram do evento no Rio de Janeiro e deixamos a caixa de comentários aberta a estes e também àqueles que estiveram ontem na palestra no Recife, para nos relatem suas impressões. Lembrando ainda que, conforme noticiamos anteriormente, hoje a palestra será em Brasília e na quinta-feira em São Paulo.

* * *


[1] O Concílio Vaticano II se realizou em Roma, de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965 e contou a participação de 2.500 Padres Conciliares sob a orientação dos papas João XXIII e Paulo VI. Ele foi o vigésimo primeiro Concílio da Igreja.

[2] Este acordo se deu na cidade francesa de Metz, em agosto de 1962, e seus negociadores foram o Cardeal Tisserant, representando o Vaticano, e o arcebispo ortodoxo Nicodemo, que, conforme comprovado por documentação dos arquivos de Moscou, era um agente do KGB.

“É a missa que importa”. A Resistência do Oeste Inglês ao protestantismo.

Por Maria Pia Ghislieri, Corrispondenza Romana | Tradução: Lucas Janusckiewicz Coletta, Fratres in Unum.com –  Durante o reinado de Henrique VIII, após seu ato cismático, muitas mudanças foram feitas na Inglaterra no campo religioso. Embora isso não fosse do agrado dos católicos Ingleses, os mesmos foram assegurados de que a fé professada em suas paróquias continuaria a ser a fé de seus antepassados. Henrique VIII rompeu com Roma, mas a Igreja da qual ele tinha se proclamado chefe não havia se separado da doutrina romana.

Thomas Cranmer
Thomas Cranmer

Após a morte do rei, Cranmer (que fora nomeado arcebispo de Canterbury em 1532) mostrou a sua verdadeira face. Fora um dos mais influentes conselheiros do menino-rei Eduardo VI e, graças a essa influência, ele levou a cabo o seu plano de remover os últimos vestígios do catolicismo inglês, começando com a destruição das imagens, relíquias, cerimônias, procissões (também a do Corpus Christi), mas especialmente a da Santa Missa, que ele substituiu com a pseudo liturgia de comunhão protestante, que foi imposto em duas fases, em 1549 e 1552.

Essa tarefa destrutiva na Cornualha [ndr: um ducado na Inglaterra] foi confiada a William Body, cuja ação foi vista como uma profanação dos lugares sagrados, o que levou a seu assassinato 05 de abril de 1548. Entendia-se desde o início que o povo da Cornualha não havia aceitado facilmente a “nova” imposição no campo religioso.

O Livro de Oração Comum (Book of Common Prayer), que refletia a teologia protestante, embora mantendo algum vestígio do rito católico, deveria traduzir para o idioma inglês os quatro antigos textos litúrgicos latinos, ou seja, missal, breviário, ritual e do pontifical. Essa mudança foi vista com desconfiança e muita oposição, especialmente naqueles lugares felizmente conhecidos por sua lealdade para com a Igreja Católica Romana, como nos condados da Cornualha e Devonshire. Foi esse ataque à Igreja, e particularmente à Santa Missa, que levou a uma resistência armada conhecida na Inglaterra como a “insurreição ocidental” (the wester rising). É interessante notar que para os agricultores e trabalhadores que encorajaram tal resistência, muitos dos quais eram simples analfabetos, o repúdio ao Papa não era muito preocupante. Eles estavam lutando, antes de tudo, pela sua missa.

Em 09 de junho de 1549, Domingo de Pentecostes, a nova Missa ou Liturgia de comunhão protestante entrou em vigor com punição severa para aqueles que se recusassem a se adequar às novas normas. Em um lugar remoto de Devonshire, chamado Samford Courtney, um sacerdote que contava com mais de setenta anos, em obediência às ordens do rei, celebrou a missa de acordo com o novo rito. Os paroquianos que estavam presentes, quando pela primeira vez se viram privados de sua eterna Missa, decidiram rejeitar a nova liturgia. No dia seguinte, eles foram até o pároco e o obrigaram a utilizar o antigo Missal e a celebrar a missa haviam participado por toda a vida, não querendo que ela jamais fosse alterada. O bom padre cedeu aos pedidos de seu rebanho e celebrou a Missa de sempre. Os fiéis católicos, de fato, sustentavam que a nova liturgia em inglês não era mais do que “uma comemoração natalícia” e não tinham nenhuma intenção de aceitá-la. Na cerimônia sucessiva vieram alguns juízes para impor as mudanças litúrgicas, mas durante a celebração houve uma briga que levou à morte de um dos defensores das inovações (William Hellyons), que foi perfurado com uma foice nos degraus da igreja.

Um “gentleman” do local tentou convencer o povo a aceitar o novo rito com a ameaça de que o protesto traria uma necessária intervenção armada do governo. Mas o povo da Cornualha e Devonshire não tinha nenhuma intenção de ceder a qualquer pressão, alegando que a sua resistência foi motivada por uma profunda fé na Santa Missa, que – eles compreendiam bem – dizia respeito não só a sua vida terrena, mas também, e acima de tudo, a sua salvação eterna.

Houve uma longa tentativa de negociação entre esses católicos, “rebeldes” para com o novo rito, mas fiel à tradição de seus pais, e o governo oficial que os obrigava a usar o novo rito protestante. Estes homens simples e iletrados, analfabetos, mas de uma fé límpida e profunda prometeram acabar com a insurreição desde que o rei e os seus conselheiros não ousassem modificar a verdadeira religião. Era óbvio que a verdadeira razão da resistência era a defesa da fé católica.

A proposta não foi aceita, e eis que muitos milhares de camponeses, mineiros e pescadores (que representavam muitos outros com as mesmas crenças), marcharam em direção Exeter para protestar contra a introdução do novo rito. Eles estavam avançando com o estandarte com as Cinco Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, com crucifixos, velas e incenso. Eram homens simples, que formaram uma força organizada, armada e disciplinada que combatia contra o poder do Estado.

Lideravam a procissão sacerdotes que, vestidos com seus paramentos tradicionais, levavam consigo o Santíssimo Sacramento sob um magnífico baldaquino. Enquanto o grupo atravessava o condado de Devonshire, ganhava mais adeptos entre os católicos fervorosos da área. Embora a maioria fosse composta de camponeses da Cornualha e Devonshire, se uniram a eles também membros da aristocracia Inglesa como Humphrey Arundell, que pertencendo a uma nobre e respeitada família de Devonshire, também era conhecido por suas proezas militares.

O governo não deixou de divulgar uma série de acusações infundadas sobre as “supostas” atrocidades cometidas pelos “rebeldes”. Mas das 15 demandas que eles expuseram contra o governo, provando claramente a natureza puramente religiosa da resistência, citemos, por exemplo, apenas três:

* Nós não aceitamos o novo rito (protestante), porque ele é como uma “festinha de aniversário”, mas queremos as Matinas, a Missa, as Vésperas e Procissões em latim, como era antes. E por isso nós, homens da Cornualha (e também porque alguns de nós não entendem o inglês) rejeitamos firmemente o novo rito inglês.

* Nós queremos a missa em latim como era antes, celebrada só pelo sacerdote sem qualquer diálogo com o povo.

* Todo pregador nas suas homilias e cada sacerdote em suas missas devem rezar especialmente pelas almas do Purgatório, citando os nomes, como faziam no tempo dos nossos pais. (Cranmer, não acreditando no purgatório, havia removido qualquer traço no culto protestante).

Cranmer, diante dessas demandas assinadas por muitos agricultores, mas também por Humphrey Arundell, não teve outra reação a não ser o desprezo. Considerou o desejado retorno para a liturgia latina simplesmente “ridículo” porque ele havia imposto a língua vernácula para o bem daquela gente iletrada. É importante notar que se esses homens, por um lado, em consciência desobedeciam ao rei quanto à nova Missa e os novos ritos, por outro, reconheciam sua autoridade e não pensaram em nenhum momento em depô-lo. Eles o obedeceriam com a condição de que não fossem privados de sua fé. Eram homens humildes que se rebelavam espontaneamente para defender a fé de seus pais.

Mas o governo teve tempo de organizar um exército para destruí-los. Contra toda a esperança, os rebeldes continuaram a lutar suas batalhas até que restaram apenas alguns. Lutaram bravamente e não tiveram medo de perder suas vidas. A última batalha teve lugar em 29 de agosto de 1549, em Sampford Courtenay, onde a rebelião começou. As forças eram desiguais e os católicos militantes sabiam que estavam condenados à derrota. Mas, em sua homenagem, um historiador da época escreveu: “Os fiéis católicos da Cornualha não se renderam até que a maioria deles não havia sido morta ou capturada”. Nesta última batalha extenuante, Humphrey Arundell, que estava entre os líderes da insurreição, foi capturado. Levado a Londres depois de alguns meses, foi julgado e acusado de alta traição. Em 27 de janeiro de 1550, foi executado com uma das piores punições previstas pelo regime da época: enforcado, estripado e esquartejado.

Ao longo da resistência, cerca de 5000 homens perderam sua vida, morreram pela fé, mas sobretudo pela Missa de sempre. O rito de Cranmer foi imposto a preço do sangue desses heróis da fé.

Naqueles tempos difíceis, era um espetáculo aterrorizante, mas muito comum ver padres enforcados nos campanários, vestidos com seus sagrados paramentos e com aspersório [de água benta], sineta e rosário pendurados com eles. Todos os livros litúrgicos tradicionais foram queimados. Os grandes e sonoros sinos das igrejas que chamavam os fiéis para a missa tradicional foram removidos para dar lugar a sinos pequenos para o uso na liturgia protestante. E, assim, também as pobres pessoas do Oeste Inglês foram constrangidas a aceitar a nova religião em língua vernácula.

O futuro do mundo e da salvação das almas depende da “sobrevivência” da Missa tradicional na Igreja Católica. Por quê? Porque lex orandi lex credendi. A lei da oração é a lei da fé. Em todos os lugares onde se continua a celebrar a Missa de sempre a fé não pode ser extinta.

Os valorosos heróis da resistência inglesa, que daquele longínquo ano de 1549 até hoje, continuam a gritar com o seu memorável exemplo que levou até ao derramamento de sangue: “É a Missa que importa”.

Tradução e adaptação para a língua portuguesa de Lucas Janusckiewicz Coletta, a quem agradecemos. 

Apontamentos sobre os artigos “A inquisição, o Papa e o suspiro de alguns católicos conservadores” e “Um ativista pró-vida pode defender a inquisição?”, de Julio Severo – Parte I.

E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. (Mateus 16:18)

Por Teresa Maria Freixinho * 

Primeiramente, gostaria de enfatizar que respeito e admiro Julio Severo por sua incansável luta em defesa da vida e da família, e escrevo esses apontamentos em espírito de caridade cristã, motivada tão somente pelo desejo de esclarecer vários equívocos nos textos supracitados. Rezo para que Nosso Senhor ilumine seu intelecto e seu coração, e que, ao final e ao cabo, ele consiga perceber a grande malícia e o estrago das heresias nas almas, buscando e, com a graça de Deus, encontrando a Verdade que salva e liberta.

Sobre a Inquisição

São Bernardo de Claraval O.Cist, santo e Doutor da Igreja (1090 - 1153). Uma das personalidades mais influentes do século XII, São Bernardo foi pregador de grande relevância em tempos da heresia albigense. Fundou 72 mosteiros cistercienses. Foi canonizado em 18 de junho de 1174 por Alexandre III e declarado Doutor da Igreja por Pio VIII, em 1830.
São Bernardo de Claraval O.Cist, santo e Doutor da Igreja (1090 – 1153). Uma das personalidades mais influentes do século XII, São Bernardo foi pregador de grande relevância em tempos da heresia albigense. Fundou 72 mosteiros cistercienses. Foi canonizado em 18 de junho de 1174 por Alexandre III e declarado Doutor da Igreja por Pio VIII, em 1830.

No artigo acima mencionado, Julio Severo afirma: “Católicos que elogiam ou desculpam a Inquisição entram em choque com João Paulo II, envergonham o verdadeiro Evangelho e evidenciam que desconhecem as posições de seus próprios líderes. Querem ser mais católicos do que o papa e no final acabam defendendo o crime, a tortura e o assassinato de inocentes. Acabam pecando e defendendo o pecado.”

A tortura sempre esteve presente em diversos lugares e épocas. A Igreja Católica é a instituição que mais tem lutado para eliminá-la do planeta. Tomemos o caso dos povos nativos na época do descobrimento da América Hispânica. Fala-se a torto e a direito que os religiosos que acompanharam os conquistadores espanhóis eram coniventes com a matança de povos indígenas. Porém, a bem da verdade, esses povos se matavam em guerras tribais, comiam-se literalmente e ainda ofereciam bebezinhos a falsos deuses. Foram justamente os religiosos católicos, através de catequeses sólidas e educação progressiva, que lutaram para acabar com esses costumes bárbaros. Eu mesma quando estive no México pude ver os altares onde esses povos levavam os bebês para serem assassinados.

Sinceramente, não consigo imaginar católicos tendo prazer sádico de elogiar a tortura. A esmagadora maioria de católicos pouco conhece sobre a Inquisição e apenas repete os mesmos jargões propalados pela mídia anticatólica e professores marxistas. O que podemos afirmar com segurança, ao estudarmos minimamente o assunto de fontes confiáveis, é que, longe de acreditarmos cegamente nas críticas superficiais, devemos entender em que consistiu a Inquisição e como as pessoas da época pensavam. Isso não significa justificar ou elogiar a tortura, mas buscar uma reta e honesta compreensão dos fatos. Assim, chegamos às seguintes conclusões:

1) Tal como acontece com os abortistas, que, para avançar a cultura da morte, apregoam aleatoriamente um número de mortes maternas decorrentes de aborto extremamente superior ao de mortes maternas decorrentes de causas diversas registradas nos sistemas oficiais de saúde, o número de execuções reais de hereges pelo braço eclesiástico foi MUITÍSSIMO inferior ao que se apregoa nos meios de comunicação anticatólicos . [1]

2) Para o homem medieval, ao contrário do homem contemporâneo, a vida eterna era o bem mais precioso que se podia almejar e a heresia era simplesmente um mal intolerável.

Se, hoje em dia, os hereges ocupam as cátedras das melhores universidades católicas, permanecem em paróquias durante anos, vandalizando a doutrina e a liturgia sob a complacência e o pleno conhecimento das autoridades eclesiásticas, têm seus nomes citados honrosamente em folhetos da missa dominical e são best-sellers nas livrarias ditas católicas, naquela época, o elogio público da heresia em ambientes eclesiásticos era algo impensável, pois, além de ser uma doença espiritualmente contagiosa, a heresia também destruía o tecido social.

3) Muitos inquisidores eram homens bem-intencionados, piedosos e até santos, que queriam preservar a saúde espiritual da comunidade e se esforçavam ao máximo para lograr a conversão dos hereges. As punições aos recalcitrantes, de fato, existiram e variavam do exílio, castigos físicos e, em alguns casos, morte. O braço secular, ao contrário dos inquisidores eclesiásticos, não tinha dó nem piedade, muito menos preocupação com as almas, e eliminava hereges encrenqueiros facilmente. Digo encrenqueiros, porque, em geral, o problema da heresia conflitava também com os interesses da sociedade.[2]

4) Algumas heresias eram perigosíssimas não apenas do ponto de vista espiritual, mas também do físico e social. Tomemos, por exemplo, o caso dos cátaros. Eles pregavam o rechaço pelo matrimônio, a insubordinação às leis civis e, em alguns casos, até mesmo a inanição, para que o iniciado atingisse um estado de vida que julgavam mais perfeito. Como eram dualistas, a procriação era um mal, pois só servia para replicar a matéria, e as mulheres eram desprezadas, visto que desviavam os homens de seu nobre ideal contemplativo. Além disso, elas geravam outros homens, o que acabava emperrando o processo de purificação tão almejado.

Julio afirma categoricamente que ele, Silas Malafaia e Marco Feliciano são vistos como ““cátaros” modernos — dignos de tortura e morte na fogueira”. Essa frase não tem o menor cabimento, porque ninguém que conheça um pouco sobre os cátaros vai olhar para eles e pensar em um cátaro. E também não há porque dizer que os católicos os quereriam na fogueira. Católicos verdadeiros rezam pela conversão de não católicos e tentam apresentar-lhes em que realmente consiste a Fé Católica.

5) Inegavelmente, houve abusos e injustiças por parte de clérigos inescrupulosos e pessoas más, que usaram de seus cargos para fins não cristãos. Observe que naquele tempo não havia Internet nem Instagram. Hoje em dia, qualquer abuso é logo gravado, fotografado e em poucos minutos postado no Youtube. Naquela época as coisas eram lentas e até as notícias chegarem a Roma, muita coisa já tinha acontecido.

Nenhum católico pode “elogiar” a tortura, mas deve elogiar o esforço de preservar a fé do erro. Além disso, devemos tentar compreender, estudar e ver o evento sob os seus vários aspectos e a dimensão que realmente teve. Para isso, precisamos buscar fontes confiáveis, historiadores medievalistas de primeira linha. Se quisermos estudar a Inquisição com mais profundidade, o ideal é que leiamos esses autores. Régine Pernoud dedicou sua vida inteira a explicar a Idade Média; seu nome é aclamado mundialmente como historiadora medievalista de primeira grandeza, embora, lamentavelmente, apenas uma parte de suas obras tenha sido traduzida para o português. Seus textos são formidáveis! Por que não começar por ela? A Enciclopédia Britânica pode ser ótima para dados gerais e para muita coisa, mas o fato de uma enciclopédia ser “ponto de referência de próvida americanos” não a torna a fonte por excelência de pesquisas sobre a Idade Média.

A heresia é algo horrível! Ela é uma doença que ataca o intelecto, o coração e a alma das pessoas. A heresia é feia, muito feia! Cada uma em particular dissemina uma mentira, destrói o depósito da fé e propaga o odium ecclesiae.  Como toda doença, ela precisa ser tratada e curada, com oração e exposição clara da verdade.

A pergunta correta a fazer

No artigo de hoje, Julio indaga “Como querem combater a cultura da morte do socialismo, homossexualismo e feminismo quando se sentem à vontade com a cultura da tortura e morte da Inquisição?

Creio que o articulista desvia grandemente o foco da questão. A pergunta correta a fazer é: “Como combater a cultura da morte, do socialismo, homossexualismo e feminismo estando à vontade com a heresia?” Será que Julio já parou para pensar que, em grande parte, o liberalismo religioso, que chamamos na Igreja Católica de modernismo – “a síntese das heresias” -, como dizia São Pio X, nada mais foi do que produto de teólogos protestantes liberais, cujas obras influenciaram grandemente os teólogos do Concílio Vaticano II e, desde então, vêm sendo amplamente utilizados nos seminários diocesanos?

A Fé Católica íntegra é o único exército verdadeiramente capaz de combater as mazelas morais em nível institucional. Contudo, um exército se faz de soldados, se faz com bravura e armas adequadas. Se os comandantes fogem ou se aliam às hostes inimigas, se os soldados não estão preparados e se não há armas adequadas, perde-se a batalha. E não é esse exatamente o cenário de nossos dias, em que a verdadeira evangelização foi substituída pela cultura do relativismo, cujas sementes foram plantadas pelos Deformadores no fim da Idade Média?

Antes de enveredar pela crítica a um suposto apoio da tortura por parte de católicos atuais como causa de insucesso nas iniciativas dos grupos pró-vida, Julio deveria sinceramente envidar esforços para ver o quanto foi ludibriado pela heresia protestante.

Achei interessante ler trechos de discursos do padre Malachias Martin sobre a crise na Igreja em seu segundo artigo, mas por que não ir mais a fundo nessa busca? Por que descontextualizar as afirmações do padre Martin? Duvido muito que o referido padre fizesse tal ilação com a opinião de alguns católicos sobre a Inquisição.  A preocupação dele certamente era bem outra. E se é para citar o padre Martin em trechos que incluíam a mensagem de Fátima, por que não investigar também esse tópico?

Todavia, quando o instigamos a pesquisar a Verdade, Julio refugia-se em um castelo de meias verdades, em um Jesus desconexo de seu Corpo, em uma Bíblia incompleta, independente da Tradição que a gerou e do Magistério que a validou, e em ideias bastante equivocadas sobre a Virgem Maria, os santos e outras coisas mais.

O falso ecumenismo, a tibieza na promoção das verdades da Fé e o bom-mocismo das últimas décadas podem explicar em parte porque hoje em dia não apenas Julio, mas até mesmo muitos católicos, têm impressões equivocadas sobre a Inquisição e a necessidade do empenho missionário. Julio foi roubado, roubado no que há de mais precioso, de mais santo e mais sublime, e não sabe. Só o tempo dirá se ele terá a coragem, a inteligência e o esforço de buscar a verdade, ainda que ela seja extremamente dolorosa. A nós cabe a oração e o trabalho, para que cada vez mais Julios descubram o beleza e o esplendor da Fé Católica.

Como recomenda o reverendíssimo Padre Michael Rodríguez, grande promotor do catolicismo, nesses tempos de crise urge mais do que nunca rezar, frequentar os sacramentos e estudar a nossa Fé.

Salus infirmorum, ora pro nobis!

Teresa Maria Freixinho é tradutora e assistente de edição do Fratres in Unum.

* * *


[1] Um desses mitos, espalhados por escritores protestantes ingleses, se refere às torturas sádicas supostamente praticadas pelos inquisidores espanhóis. Descobriu-se que a tortura foi raramente utilizada e, mesmo quando se recorreu a ela, isso se deu de maneira limitada. Em um grupo de 7 mil pessoas apresentadas à Inquisição em Valência, por exemplo, apenas 2% foram torturados, e não por mais de 15 minutos. Execuções eram igualmente raras. Até mesmo as prisões da Inquisição estão muito longe das masmorras representadas em sua mitologia. Conta-se que os prisioneiros prestes a serem julgados nos tribunais seculares deliberadamente faziam algo que os transferisse para a Inquisição, a fim de receber o tratamento menos severo das prisões eclesiásticas. Deve-se mencionar também que se permitia a apelação nos julgamentos dos tribunais da Inquisição, e que se punha os indivíduos que apresentavam falsas acusações …”

Somente no começo do século XIV os elementos sobreviventes do catarismo foram eliminados da região, em grande parte por causa do esforço de Bernard Gui, famoso inquisidor. Ele interrogou centenas de suspeitos, dos quais se puniram 636: quarenta com a morte, trezentos com prisão e o resto com punições leves.”

“Nos países que registraram estatísticas a execução foi rara. Na Inglaterra, entre 1401 e 1485, por exemplo, queimaram-se 11 hereges. É possível que outras execuções por traição tenham ocorrido: o tema da traição confunde os arquivos em todo lugar; em algumas áreas não se fazia distinção entre rebelião contra ordem espiritual e revolta contra a ordem temporal.” (“As Sete Mentiras sobre a Igreja Católica” de Diane Moskar, Editora Castela).

[2] A Inquisição adquiriu a sua deplorável reputação devido a uma ação semelhante dos poderes laicos, desviando esse instrumento em seu favor, para fazer das medidas da Igreja um instrumento de dominação – por vezes, entende-se, com a cumplicidade de certos eclesiásticos isolados. Contudo, ela só teve um caráter verdadeiramente sangrento e feroz na Espanha imperial do início do século XVI. Durante toda a Idade Média, é apenas um tribunal eclesiástico destinado a “exterminar” a heresia, quer dizer, expulsá-la para fora dos limites (ex terminis) do reino. As penitências que impõe não saem do âmbito das penitências eclesiásticas, ordenadas em confissão: esmolas, peregrinações, jejuns. Somente nos casos graves o culpado é entregue ao braço secular, o que significa que incorre em penas civis, como a prisão ou a morte, pois o tribunal eclesiástico não tem o direito de pronunciar ele próprio semelhantes penas.

Segundo declaração de autores que estudaram a Inquisição pelos seus autos — não importa quais sejam as suas tendências — ela apenas fez “poucas vítimas”. Esta é a expressão de Lea, escritor protestante traduzido em francês por Salomon Reinach (Histoire de l’inquisition, t. 1, p. 489). Em 930 condenações produzidas pelo inquisidor Bernard Gui durante a sua carreira, apenas 42 conduziram à pena de morte. Quanto à tortura, em toda a história da Inquisição no Languedoc apenas se assinalam três casos confirmados em que ela foi aplicada, indicando um uso muito longe de ser generalizado. Por outro lado, para que ela fosse aplicada era preciso que houvesse começo de prova, só podia servir para fazer completar confissões já feitas. Acrescentemos que, como todos os tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua culpabilidade. (“Luz sobre a Idade Média”, Régine Pernoud)

Conferência sobre a “Cristiada” em São Gonçalo, RJ.

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Hoje, às 20 horas, na Paróquia Nossa Senhora Aparecida, em São Gonçalo, RJ, o Reverendíssimo Padre Jonathan Romanowski, FSSP, fará uma conferência sobre a Guerra dos Cristeros.

A luta entre a Igreja Católica e o Estado no México foi a causa de um conflito armado que ficou conhecido como a Guerra Cristera (também conhecida como Guerra dos Cristeros ou Cristiada) e que se desenrolou entre 1926 e 1929. Tratou-se de um levantamento popular contra as disposições anticlericais da Constituição Mexicana de 1917.

Endereço: Rua Dr Francisco Portela, 762, São Gonçalo, RJ. Mais informações aqui.