Por Padre Paul Aulagnier – Instituto do Bom Pastor
Tradução: Fratres in Unum
Em 23 de dezembro de 2010, Dom Fellay, encontrando-se em Nova Caledônia para celebrar a missa de meia-noite, no dia de Natal, na pequena capela da comunidade de Katiramona, teve a oportunidade de responder a algumas perguntas de um jornalista de “Nouvelles Caledoniennes”.
Duas ou três reflexões do prelado me chamaram a atenção:
Eis a primeira: “Aliás, o Papa regressa às idéias tradicionais. Ele vê muito bem que há um desvio e que é necessário corrigi-lo. Estamos, talvez, mais próximos do Papa do que pareça”.
E por último: “Sempre sustentamos que não queremos caminhar por contra própria. Afirmamos que somos e permanecemos católicos. Desejamos que Roma nos reconheça como verdadeiros bispos. Aliás, não se usa mais a palavra cismático contra nós. Portanto, se não somos cismáticos, nem heréticos, somos verdadeiros católicos. Além disso, o Papa diz que há somente um problema de ordem canônica. Basta um ato de Roma dizendo que o problema acabou e que reentramos na Igreja. Isso virá. Estou muito otimista”.
Esta última declaração é extremamente importante e, confessemos, ligeiramente desconcertante.
Ao ler essa última passagem, nos dizeres do próprio Dom Fellay e do Soberano Pontífice, não haveria mais problemas doutrinais entre Roma e FSSPX, mas apenas um problema canônico: “há somente um problema de ordem canônica. Basta um ato de Roma dizendo que o problema acabou e que reentramos na Igreja. Isso virá. Estou muito otimista”.
Tem-se a impressão que hoje as discussões teológicas com Roma, empreendidas a pedido da FSSPX, não têm mais a mínima importância. Ao menos Dom Fellay não faz nenhuma alusão abertamente.
A FSSPX afirmava ontem, todavia, que essas discussões eram capitais, de primeira ordem, e que determinavam a sequência dos acontecimentos. Constituiriam uma diligência lógica, ou seja, que era impossível considerar um acordo com Roma antes de qualquer ajuste doutrinal, e cronológica, ou seja, que uma vez resolvido este difícil problema doutrinal viria então, e só então, o problema canônico, em si fácil de resolver. Eis a importância que davam a essas conversações doutrinais. Hoje, nada disso, nada próximo, nada mais de “conversações doutrinais” (?). Elas parecem ter sido lançadas ao “sótão das velhas idéias”. Já não atrai a mínima atenção, o mínimo interesse. Não se vê mais que o problema canônico. É a atitude do próprio Papa:“Além disso, o Papa diz que há somente um problema de ordem canônica”.
Ah bom! Ficarmos felizes em saber.
Mas por que ter anunciado “urbi et orbi”, se é possível dizer, que antes de qualquer acordo canônico, era necessário resolver os pontos doutrinais contestados a respeito do Vaticano II, como, por exemplo o problema da liberdade religiosa, como o problema do diálogo interreligioso?… Estes problemas estão, portanto, resolvidos? Por acaso foram resolvidos nas suas conversações teológicas?
Caso a resposta seja positiva, como ler textos como a última declaração do Vaticano, sob a pluma de Bento XVI, intitulado “a liberdade religiosa, caminho para a paz”? Este texto é um “copiar colar” do documento conciliar “Dignitatis humanae”. O Pontífice retornaria às idéias tradicionais sobre esse assunto, aquelas defendidas por seus predecessores como Leão XIII, Pio X, Bento XV, Pio XI e Pio XII? Retomaria o “magistério de sempre”? Quanto a mim, custa-me a crer. Leiamos:
“A liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda pessoa deve poder exercer livremente o direito de professar e manifestar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir a outra religião ou não professar religião alguma. Neste âmbito, revela-se emblemático e é uma referência essencial para os Estados o ordenamento internacional, enquanto não consente alguma derrogação da liberdade religiosa, salvo a legítima exigência da justa ordem pública. Deste modo, o ordenamento internacional reconhece aos direitos de natureza religiosa o mesmo status do direito à vida e à liberdade pessoal, comprovando a sua pertença ao núcleo essencial dos direitos do homem, àqueles direitos universais e naturais que a lei humana não pode jamais negar”.
(Vemos hoje como se concede o direito à vida com o direito ao aborto e direito à eutanásia já adotados em vários Estados da Europa….)
Dom Fellay estaria de acordo com esta declaração vaticana tão equívoca e por conseguinte falsa? Custa-me a crer. Ao menos que se afaste do pensamento dos Papas dos séculos XIX e XX, até Pio XII, sobre esse assunto. Está ele, portanto, próximo, sobre esse assunto, do pensamento expresso por Bento XVI? Ele diz, de fato, quando responde ao jornalista: “Estamos, talvez, muito mais próximos do Papa do que pareça”. Estivesse eu lugar no deles, vigiaria… Mas talvez tenha falado num momento de euforia…
Ao querer resolver primeiro e antes de tudo o problema doutrinal, Dom Fellay complicava não somente a vida, mas se afastava na mesma proporção do regulamento canônico desejado por Roma ,pelo menos desde o ano 2000, desde o ano jubilar. Veja o regulamento dos padres de Campos! E não se pense que foi a regularização canônica que fez Dom Rifan “evoluir” ou “se desviar”, foi Dom Rifan ele mesmo, ou talvez sua enorme astúcia…
O texto continua:
“A liberdade religiosa não é patrimônio exclusivo dos crentes, mas da família inteira dos povos da terra. É elemento imprescindível de um Estado de direito; não pode ser negada, sem ao mesmo tempo minar todos os direitos e as liberdades fundamentais, pois é a sua síntese e ápice. É «o papel de tornassol para verificar o respeito de todos os outros direitos humanos». Ao mesmo tempo que favorece o exercício das faculdades humanas mais específicas, cria as premissas necessárias para a realização de um desenvolvimento integral, que diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em cada uma das suas dimensões”.
E se tiver assimilado bem o ensinamento da encíclica de Leão XIII, “Libertas praestantissimus”, comentado por Dom Lefebvre no seu livro “C’est moi l’accusé qui devrais vous juger!”, dificilmente se poderá afirmar que o problema doutrinal sobre este assunto tenha sido resolvido.
Ademais, o Vaticano, neste texto, convida-nos mesmo a comemorar o 25º aniversário da jornada de Assis de 1986, que tanto havia escandalizado o nosso santo fundador. Naquele dia, vimos o Soberano Pontífice, João Paulo II, enfileirado com os “ líderes” das “religiões”, esquecendo-se por um instante, parece, que era o “Vigário de Cristo”, Ele, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; o Sucessor de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”:
“Em 2011, tem lugar o 25º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz, que o Venerável Papa João Paulo II convocou em Assis em 1986. Naquela ocasião, os líderes das grandes religiões do mundo deram testemunho da religião como sendo um fator de união e paz, e não de divisão e conflito. A recordação daquela experiência é motivo de esperança para um futuro onde todos os crentes se sintam e se tornem autenticamente obreiros de justiça e de paz”.
Veremos uma jornada idêntica
Portanto, eis anunciada uma nova jornada sincretista. Não basta dizer que ela não o será para que não o seja. Como diz o professor Amerio em seu livro “Stat veritas”, “não se pode promover o sincretismo e em seguida advertir que é necessário tomar cuidado para evitar o sincretismo” (p 139).
Realmente, tenho dificuldade em acreditar que “basta um ato de Roma dizendo que o problema acabou e que reentramos na Igreja”. Não o creio. Simplesmente não penso dessa forma.
Sempre pareceu-me prudente – terminaria eu por ter razão? — se manter no pensamento de Dom Lefebvre, expresso na sua carta de 21 de novembro de 1987 — carta que nos faz pensar, em razão de sua importância e de coincidência de data com a sua famosa declaração de 1974, ela também de 21 de novembro — e que pedia:
– que nos aceitem tal como somos, sem procurar nos fazer desviar em nada de nossa ligação com a Tradição litúrgica e doutrinal. Que nos seja reconhecido o direito à missa tridentina. Algo já feito, melhor ainda, o direito a este rito é um direito universalmente reconhecido por Roma para qualquer padre. E é necessário a má vontade evidente dos bispos para ver tão pouco do fruto do Motu Proprio de Bento XVI.
– que se levante as excomunhões dos bispos sagrados por Dom Lefebvre, os quatro. Coisa já feita.
– que se reabilite a FSSPX e que Roma aceite as modificações dos estatutos quanto à sucessão de Dom Lefebvre. É algo a fazer, mas isso seria coisa fácil.
– que se reconheça, no estatuto canônico a ser dado à FSSPX, um jurisdição própria e pessoal à autoridade superior, uma espécie de isenção a exemplo da organização dos ordinariatos militares.
– por último, que os diversos institutos fiéis à missa tridentina sejam unidos numa espécie de “federação” ou de “confederação” e vinculados a Roma, a uma espécie de “Congregação romana”, para regulamentar com os episcopados os diferentes problemas inerentes aos desenvolvimentos da “Tradição”. Está em via de constituição. Mas isso permanece ainda no pensamento de Bento XVI. Ele o disse em seu Motu Proprio “Summorum Pontificum”.
Penso que o Instituto do Bom Pastor se prestaria de bom grado a tal “organização canônica”. O Sr. Padre Laguérie poderia exprimir seu parecer sobre esse assunto.
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