Carta Encíclica Lumen Fidei.

CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS

SOBRE A FÉ

1. A luz da fé é a expressão com que a tradição da Igreja designou o grande dom trazido por Jesus. Eis como Ele Se nos apresenta, no Evangelho de João: « Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em Mim não fique nas trevas » (Jo 12, 46). E São Paulo exprime-se nestes termos: « Porque o Deus que disse: “das trevas brilhe a luz”, foi quem brilhou nos nossos corações » (2 Cor 4, 6). No mundo pagão, com fome de luz, tinha-se desenvolvido o culto do deus Sol, Sol invictus, invocado na sua aurora. Embora o sol renascesse cada dia, facilmente se percebia que era incapaz de irradiar a sua luz sobre toda a existência do homem. De facto, o sol não ilumina toda a realidade, sendo os seus raios incapazes de chegar até às sombras da morte, onde a vista humana se fecha para a sua luz. Aliás « nunca se viu ninguém — afirma o mártir São Justino — pronto a morrer pela sua fé no sol ».[1] Conscientes do amplo horizonte que a fé lhes abria, os cristãos chamaram a Cristo o verdadeiro Sol, « cujos raios dão a vida ».[2] A Marta, em lágrimas pela morte do irmão Lázaro, Jesus diz-lhe: « Eu não te disse que, se acreditares, verás a glória de Deus? » (Jo 11, 40). Quem acredita, vê; vê com uma luz que ilumina todo o percurso da estrada, porque nos vem de Cristo ressuscitado, estrela da manhã que não tem ocaso.

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O caráter orgânico do Magistério ordinário.

Breve ensaio, com vistas a futura análise do Vaticano II

Por Arnaldo Xavier da Silveira

São Paulo escreveu: “a fé vem pela audição, a audição pela pregação de Cristo”. — O Magistério ordinário é o do dia-a-dia. Abarca tudo que os bispos ensinam, diretamente ou pelos que têm sua aprovação: doutores, pregadores, leigos. Ora escrito, em geral falado, está na Igreja toda, sempre orgânico, fecundo, cheio de vida. ― Jesus pregou pela palavra; o que escreveu, na areia, o vento apagou.

Capítulo I – Interpretações equivocadas do Vaticano II

1) – A conceituação de Magistério extraordinário papal e conciliar é hoje corrente e inquestionada entre os verdadeiros católicos. A noção de Magistério ordinário, entretanto, não é tão clara e difundida. Há a respeito dela graves e surpreendentes confusões, mesmo entre teólogos categorizados.

2) – Vem sendo admitida, por estudiosos do assunto, a possibilidade de um pronunciamento singular infalível do Magistério ordinário papal ou conciliar. — Não  poucos defendem a infalibilidade do Vaticano II. — Há quem repute que o Vaticano II é infalível ainda que Paulo VI tenha declarado que nele não houve nenhuma definição de caráter extraordinário. — Chega-se a dizer que um Concilio ecumênico seria infalível mesmo contra a vontade expressa do Sumo Pontífice e dos Bispos a ele presentes. — Outros ainda sustentam que os ensinamentos não infalíveis de um Concílio, como os do Papa, devem ser acolhidos, ao final das contas, como se fossem igualmente infalíveis.

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Magistério Ordinário, o grande desconhecido.

Por Arnaldo Xavier da Silveira

I – O Magistério ordinário pode ensinar por atos e gestos

O Magistério ordinário da Igreja, exercido pelo Papa e pelos Bispos, amparado pelas promessas de Nosso Senhor, efetiva-se não apenas por palavras escritas ou orais, mas também por atos e fatos,  de  natureza  extremamente  variada  e  rica.

1] Com o presente artigo dou início à publicação de alguns estudos sobre o Magistério ordinário da Igreja. Não é minha intenção cobrir a matéria de modo amplo e completo, como seria um tratado. Considero que o Magistério ordinário é hoje o grande desconhecido, a respeito do qual autores de renome têm defendido teses surpreendentes, que se afastam totalmente da regra da fé. No panorama geral dos debates teológicos de nossos dias, sobretudo nas vésperas do cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, espero que, pela intercessão de Nossa Senhora, estas notas contribuam para a elucidação de alguns aspectos importantes e pouco conhecidos da verdadeira doutrina da Ecclesia docens.

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O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Naul, O.S.B. – A Repercussão de um Ato Pontifício na Igreja.

Posts anteriores da série:
  1. Apresentação.
  2. O Concílio Vaticano I e o Ensinamento Ordinário do Soberano Pontífice
  3. Vários modos de apresentar a regra de Fé.
  4. Paridade entre o ensinamento da Santa Sé e o da Igreja.
  5. O ensinamento do Vaticano I.
    
  6. Diferença entre o Magistério Ordinário e o Juízo Solene
  7. Critério de Autoridade para os Atos do Magistério Ordinário

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A Repercussão de um Ato Pontifício na Igreja

As mesmas considerações levantam-se com relação ao segundo critério que sugerimos: a repercussão que se espera de um documento pontifício na Igreja como um todo [47].

A importância dessa repercussão não pode ser desconsiderada. A assistência do Espírito Santo prometida aos sucessores de São Pedro é, sem dúvida, um privilégio pessoal, no sentido de que seu sujeito é a própria pessoa que é a cabeça visível da Igreja. Mas o Papa não é seu beneficiário último: se seu ensinamento é salvaguardado contra qualquer deficiência, a fim de que ele possa “confirmar seus irmãos” e de que a fé da Igreja possa permanecer inabalável até o fim dos tempos. Um ensinamento dado pelo Santo Padre no exercício de seu múnus, mas a um grupo isolado de peregrinos, talvez não ressoe muito longe; mas será absolutamente diferente com um Ato Pontifício responsável por atrair a adesão de toda a Igreja [48]. Mesmo que não seja uma decisão ex cathedra, seria muito difícil, por conta da repercussão prevista, negar-lhe o benefício de uma assistência toda especial, sem a qual alguma hesitação ou dúvida poderia se incutir na fé de todos os fiéis [49].

Contudo, deve-se também aqui tomar cuidado de não confiar somente em indícios materiais. Uma Constituição Apostólica, uma Encíclica, uma Radiomensagem ao mundo, têm, certamente, uma destinação expressamente universal. Mas não é certo que elas devam ter qualquer repercussão mais ampla do que a das Cartas ou Alocuções endereçadas apenas a um grupo restrito não tanto como seu destinatário último, mas seu porta-voz ou amplificador a um círculo mais amplo.

Tal é, eminentemente, o caso das Cartas ou Alocuções endereçadas aos bispos. Ao agir como um Doutor ensinando Mestres, como Pastor instruindo os Pastores, o Papa está exercendo um magistério que é “virtualmente universal” [50]. É isso que dá importância capital às Encíclicas, acima de tudo àquelas que são endereçadas a episcopados inteiros.

Mas o Papa pode escolher outros intermediários: com extremo cuidado de tato e delicadeza, Pio XII considerou adequado confiar a audiências de técnicos, doutores da medicina ou parteiras, o que tinha de relembrar acerca de certas leis mais delicadas de moralidade conjugal. É indubitável que tais discursos intencionavam ter, e de fato tiveram, uma audiência muito mais ampla do que a de seus ouvintes imediatos [51].

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[47] O Soberano Pontífice é, por si mesmo, o mestre universal de toda a Igreja: ao contrário dos outros bispos, cada um dos quais é mestre em sua diocese apenas e da Igreja universal somente quando solidamente unidos em torno do Papa.

[48] Esse critério não deve ser confundido com o da aceitação pela Igreja, o qual os galicanos consideravam necessário para dar valor conclusivo aos pronunciamentos Pontifícios. Essa confusão entre causalidade eficiente e final (a razão por que, o propósito pelo qual, um juízo é infalível) parece não ter sido suficientemente apontada (Cf. L. Choupin, op. cit., p. 147. J. de Guibert, De Ecclesia, PP. 312-313, Nº 372, 5).

[49] Deve-se sustentar firmemente que uma solene decisão tomada pela autoridade suprema em uma matéria de tão grande importância para a vida da Igreja, escapa de toda possibilidade de erro naquilo que é seu conteúdo essencial; um erro seria incompatível com a assistência do Espírito Santo e com a promessa do Senhor: “Eis que Eu estarei convosco todos os dias”. F. Hurth, S.J. (“Contenuto e significato della Costitutioni apostolica sopra gli ordini sacri”) in Civilta Catolica, XCIX, (1948), p. 623.

[50] A expressão é do Pe. Congar em Bulletin de théologie R.S.P.T., XXXVII, 1953, p. 734.

[51] O Soberano Pontífice assim afirmou quando se dirigiu aos recém-casados: pretendia dirigir suas advertências aos lares, e os diversos ensinamentos dados separadamente a cada grupo de ouvintes formavam, em seu pensamento, um corpo unido de doutrina. O mesmo foi afirmado sobre o ensinamento dado aos padres de Roma, que eram válidos para todos os párocos de toda parte: Carta ao Cardeal Lercaro, em Osservatore Romano de 19 de novembro de 1954.

Apêndice:

  1. Discurso de Sua Santidade, o Papa Pio XII, sobre o apostolado das parteiras – 29 de outubro de 1951
  2. Discurso de Sua Santidade, o Papa Pio XII, às obstetrizes – 29 de outubro de 1951

O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Naul, O.S.B. – Critério de Autoridade para os Atos do Magistério Ordinário.

Posts anteriores da série:
  1. Apresentação.
  2. O Concílio Vaticano I e o Ensinamento Ordinário do Soberano Pontífice
  3. Vários modos de apresentar a regra de Fé.
  4. Paridade entre o ensinamento da Santa Sé e o da Igreja.
  5. O ensinamento do Vaticano I.
    
  6. Diferença entre o Magistério Ordinário e o Juízo Solene

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Critério de Autoridade para os Atos do Magistério Ordinário

Se o Magistério Ordinário é constituído de um complexo de expressões de autoridade desigual, seu uso como lugar teológico supõe a existência de critérios que nos permitam determinar o valor relativo de cada uma dessas expressões. Esses critérios podem aparentemente ser reduzidos a três: 1) a vontade do Soberano Pontífice em empenhar sua autoridade na enunciação da doutrina; 2) a repercussão, mais ou menos estendida, de seu ensinamento na Igreja; 3) a continuidade e coerência das várias afirmações.

A vontade do Soberano Pontífice

Na esfera de sua competência, a fé e a moral, que é também a da Igreja docente [33], a vontade do Soberano Pontífice é decisiva [34]. Como instrumento consciente de um desígnio superior, o Vigário de Cristo pode empenhar a autoridade da qual é depositário apenas na medida em que intenciona. Há casos em que o Papa evita aceitar um tal comprometimento, por vezes chegando mesmo ao ponto de declarar expressamente que não deseja se comprometer [35]. Nestes casos, as palavras e os escritos do Papa não serão então atos pontifícios, mas meramente atos privados que não pertencem ao Magistério da Igreja. Pode ser útil, por vezes, ter isso em mente.

No extremo oposto, a vontade do Soberano Pontífice pode ser suficientemente expressa para empenhar toda a autoridade nele revestida na enunciação de uma única proposição, que será então, por si mesma, um testemunho suficiente do fato de que uma doutrina pertence ao ensinamento da Igreja.  Como vimos, este é o caso do juízo solene.

Além do último caso mencionado, em que sua autoridade é indivisível, a vontade do Papa de se comprometer, assim como o peso que ela confere a seus ensinamentos, são suscetíveis de vários graus. O Soberano Pontífice, “de acordo com seu julgamento prudente e a necessidade de seus filhos” [36], pode expor ou relembrar uma doutrina de maneira positiva, encerrando uma controvérsia com um exercício de autoridade. Pode também contentar-se em lançar uma advertência, um conselho, uma mera prevenção aos fiéis. Ele pode, e este é um dos modos no qual manifesta-se a conduta discreta da Igreja, meramente direcionar os espíritos em direção à solução de um problema que tem necessidade de precisão e amadurecimento antes de ser positivamente afirmado. Desta maneira, ele encorajará os que aplicam seus espíritos em promover uma solução e manterá silêncio ou uma discreta reticência para com os que mantêm a posição oposta.

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O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Naul, O.S.B. – Diferença entre o Magistério Ordinário e o Juízo Solene.

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  1. Apresentação.
  2. O Concílio Vaticano I e o Ensinamento Ordinário do Soberano Pontífice
  3. Vários modos de apresentar a regra de Fé.
  4. Paridade entre o ensinamento da Santa Sé e o da Igreja.
  5. O ensinamento do Vaticano I.

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Diferença entre o Magistério Ordinário e o Juízo Solene

É possível ver quais correções importantes um estudo atento do Vaticano I impõe às idéias exageradamente simplificadas que algumas pessoas formaram sobre a infalibilidade papal e, especialmente, sobre o Magistério Ordinário.

Por um lado, este estudo demonstra claramente a paridade que existe entre a Igreja Universal e a Igreja de Roma quanto à regra da fé, não apenas em juízos solenes, mas também no ensinamento ordinário [30].

Ao mesmo tempo, ele enfatiza a natureza especificamente distinta destes dois modos de apresentar a doutrina. A infalibilidade do Magistério Ordinário, seja o da Igreja Universal ou o da Sé de Roma, não é a de um juízo, nem a de um ato a ser considerado isoladamente, como se pudesse, por si mesmo, prover toda a luz necessária para ser visto claramente. É aquela da garantia concedida a uma doutrina pela convergência simultânea ou contínua de uma pluralidade de afirmações ou explicações, das quais nenhuma poderia trazer uma certeza positiva se fosse tomada por si mesma isoladamente. A certeza apenas pode ser esperada de todo o conjunto, mas todas as partes concorrem para formar tal conjunto. Conseqüentemente, nenhuma destas pode ser tratada com negligência, como sendo a mera opinião de algum doutor privado: tudo deve ser cuidadosamente recebido, como tantos testemunhos de valor inquestionável, embora desigual. Resta, agora, para nós, indicar o critério para avaliar este valor.

No caso do Magistério Universal, este conjunto completo é aquele do ensinamento concordante dos bispos em comunhão com Roma; no caso do Magistério Pontifício, é a continuidade do ensinamento dos sucessores de Pedro: em outras palavras, é a tradição da Igreja de Roma [31].

A. G. Martimort vê isso claramente:

“O erro de Bossuet consiste em rejeitar a infalibilidade do magistério extraordinário do Papa; mas ele prestou o grande serviço de afirmar claramente a infalibilidade do magistério ordinário e sua natureza particular, que deixa a cada ato em particular o risco de erro. Em suma, segundo o Bispo de Meaux, ocorre com a série de Pontífices Romanos considerada no tempo, aquilo que se passa com o Colégio Episcopal espalhado pelo mundo [32].

Continua…

[30] Esta paridade foi reconhecida por diversos autores, e.x.:, J.M.A. Vacant, Le magistère ordinaire de l’Eglise et sés organes, (Paris 1887) p. 98: “O Papa exerce pessoalmente seu Magistério infalível não apenas através de juízos solenes, mas também por um Magistério Ordinário que se estende perpetuamente a todas as verdades vinculantes para a Igreja toda”.

Cf. J. de Guibert, De Christi Ecclesia Roma, (1928) p. 314; M.M. Labourdette, O.P., “Les enseignements de l’enclyclique ‘Humani Generis’, R.T., L, (1950) p. 38.

[31] Mgr. Gasser (CL c. 404).

[32] A. G. Martimort, op. cit. p. 558.

O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Nau, O.S.B. – O ensinamento do Vaticano I.

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  2. O Concílio Vaticano I e o Ensinamento Ordinário do Soberano Pontífice
  3. Vários modos de apresentar a regra de Fé.
  4. Paridade entre o ensinamento da Santa Sé e o da Igreja.

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O Ensinamento do Vaticano I

Na realidade, a princípio, é possível se surpreender pela discrição apresentada pelo Concílio sobre a questão do Magistério Ordinário Pontifício.

Na constituição Dei Filius, onde se encontra o termo “Magistério Ordinário”, esta expressão é complementada pelo epíteto “e Universal”, que parece desaprovar a extensão da definição ao magistério do Soberano Pontífice atuando sozinho.

A constituição Pastor Aeternus, que por si mesma definiu em termos fixos a infalibilidade pontifícia, utiliza expressões que rigorosamente limitam as circunstâncias em que se verificam as condições de um juízo solene:

  1. O Papa deve falar como pastor e mestre de toda a Igreja;
  2. Ele deve agir na plenitude de sua autoridade;
  3. Deve expressar claramente que tem intenção de impor como verdade revelada uma doutrina sobre fé ou moral [23]

Se estas condições não forem satisfeitas, o termo definição não pode ser usado, nem pode o juízo pontifício ser considerado como em si mesmo infalível ou irreformável.

Mas uma coisa é limitar as circunstâncias nas quais as condições de um juízo solene são verificadas; outra coisa é limitar a apenas o juízo solene os modos autênticos de apresentar a regra de fé pelo Soberano Pontífice; ainda outra, impor como objeto de fé tudo que é ensinado como revelado pelo Magistério ordinário e universal; outra ainda, limitar a obrigação de prestar sua fé a apenas esta espécie de ensinamento. [24]

Nenhuma das duas constituições do Vaticano I mencionadas acima estabelece quaisquer destes limites. Portanto, elas não podem ser consideradas como autoridade para excluir o magistério pontifício ordinário dos modos autênticos de apresentar a regra da fé.

Se esta discrição demonstrada pela constituição aprovada pelo Concílio do Vaticano de 1870 causa alguma surpresa, tal se deve apenas à ignorância ou esquecimento do que é o verdadeiro objetivo de um concílio ecumênico. Pois, como o Cardeal Franzelin explicou aos bispos:

“Nunca foi o objetivo dos santos Concílios, ao propor a definição de uma doutrina, expor a doutrina Católica em si mesma, na medida em que ela já era possuída pelos fiéis em completa tranqüilidade – o objetivo é sempre manifestar os erros que estão ameaçando alguma doutrina e excluí-los por uma declaração da verdade que é diretamente oposta a tais erros”.

O Concílio do Vaticano não fez exceção a esta regra. Ele definiu com precisão a infalibilidade do Papa ao emitir juízos solenes, que era na época objeto de ardentes controvérsias. Não lhe competia recordar, e não o fez, ao menos por algum texto oficial, a tradição que reconhecia o caráter de regra de fé do ensinamento ordinário da Santa Sé, uma tradição que então era “possuída em tranqüilidade”. Esta parece ser a explicação para o relativo silêncio do Vaticano I sobre o Magistério ordinário pontifício. O apelo à tradição romana como uma regra de fé, suficiente em si mesma [26], feito por um ou outro dos rapporteurs, os próprios dizeres do capítulo IV onde o ensinamento da Santa Sé é colocado no mesmo plano que os decretos dos Concílios; isso é suficiente para nos garantir esta verdade [27].

Mas nós temos uma referência muito mais explícita a este ponto; Mons. d’Avanzo, respondendo a vários membros da oposição em nome da Deputação da Fé (i.e., em nome da Comissão Conciliar) inicia suas considerações apelando a certas atitudes essenciais com relação ao ensinamento da Igreja admitido por todos:

“Na Igreja, a infalibilidade ocorre de maneira dupla: primeiramente, através do Magistério Ordinário… É porque, assim como o Espírito Santo, que é o Espírito da Verdade, permanece na Igreja sempre, assim também a Igreja sempre ensina as verdades de fé com a assistência do Espírito Santo. Ela ensina todas as verdades, sejam as já definidas, sejam as explicitamente contidas no depósito da revelação embora não definidas, sejam as que são objeto de uma fé implícita: estas verdades a Igreja ensina no dia-a-dia, principalmente, através do Papa, mas também através dos bispos em comunhão com ele. Neste ensinamento ordinário todos – tanto o Papa como os bispos – são infalíveis com a mesma infalibilidade que a Igreja possui. Elas diferem apenas neste aspecto: os bispos não são por si mesmos infalíveis, mas precisam estar em comunhão com o Papa que os confirma em seus ensinamentos: mas o Papa por si mesmo não tem necessidade de nada, exceto da assistência do Espírito Santo que lhe fora prometida. Assim, o Papa ensina, e não é ensinado; confirma, e não é confirmado.

Que parte nisso tudo têm os fiéis? O mesmo Espírito Santo que assiste ao Papa e aos bispos em seus ensinamentos através do carisma da infalibilidade, dá também aos fiéis que são ensinados a graça da fé, através da qual eles crêem no Magistério da Igreja”. [28]

Pode ocorrer, entretanto, que surjam dúvidas, que pontos sejam contestados ou verdades sejam desviadas de seu significado. “É então que surge o caso para uma definição dogmática”, em conseqüência do que Mons. d’Avanzo explica e prossegue indicando aos Padres conciliares em detalhes que não precisamos nos deter. Após o bispo de Calvi, Mons. d’Avanzo, será suficiente recordar que o objetivo desta definição é simplesmente encerrar, através de um juízo conclusivo e infalível, os casos disputados deixados em aberto pelo caminho único do Magistério Ordinário. [29]

Continua…

[23] CL c. 399-401

[24] Cf. R.T., (1962) pp. 343-345

[25] CL c. 1611-1612; a tradução é tomada do Pe. de Lubac, Catholicisme, PP. 240-241, que previamente apresentara os textos conciliares como reações de defesa.

[26] CL c. 404, a-b, ibid.c-d.

[27] Constituição Pastor Aeternus, Dezinger, (1832).

[28] Mansi, Sacrorum conciliorum nova et amplíssima collectio, t. III, c. 764 ab. Cf. R.T., (1962) p. 355.

[29] Mansi, LII, 764 CD-765

O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Nau, O.S.B. – Paridade entre o ensinamento da Santa Sé e o da Igreja.

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  3. Vários modos de apresentar a regra de Fé.

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Paridade entre o ensinamento da Santa Sé e o da Igreja

Esta equivalência entre os modos ordinário e extraordinário de ensinar permanece a mesma até quando o ponto em questão não for mais o Magistério da Igreja Universal, [visado diretamente pelo texto conciliar], mas o do Soberano Pontífice, atuando sozinho? Devemos nos deter um pouco mais neste ponto, que é o objeto exato de nossa investigação.

Acerca do Juízo Solene

É bem conhecido que até a realização do Primeiro Concílio do Vaticano, a infalibilidade do juízo solene pronunciado pelo Papa, sem a concomitância de um Concílio,foi o objeto de longas e árduas controvérsias. Os adeptos da posição galicana de bom grado admitiam a infalibilidade da Sé de Roma (a sedes), isto é, a série dos Papas, mas não a de algum Papa particular nesta série (sedens). Eles formulavam uma distinção entre sedes, a cátedra do Papado, em oposição à sedens, aquele Papa particular atualmente sentado nela. Por este modo de pensar, um juízo isolado comunicado pelo Soberano Pontífice não era irreformável e, deste modo, seguro contra todo erro, ao menos e até que fosse aceito pela Igreja [18].

A Constituição Pastor Aeternus, ao definir a infalibilidade pessoal do Papa, colocou fim a estes desvios. Ela deixou claro que as definições ou juízos solenes pronunciados ex cathedra (falando oficialmente de seu trono) pelo Soberano Pontífice gozavam da mesma infalibilidade daqueles pronunciados por um Concílio [19] : acrescentava que eles eram tais “ex sese, non autem ex consensu Ecclesiae – por si mesmos, e não em virtude de aprovação dada pela Igreja”.

No ensinamento Ordinário

Por uma estranha inversão, enquanto a infalibilidade do Papa em um juízo solene, tão longamente disputada, fora definitivamente colocada além de qualquer controvérsia, é o Magistério Ordinário da Igreja Romana que parece ter sido perdido de vista.

Tudo isso ocorreu – como não é inaudito em outros lugares na história da doutrina [20] – como se o próprio fulgor da definição do Vaticano I tivesse lançado às sombras a verdade até então universalmente reconhecida; como se a definição da infalibilidade dos juízos solenes doravante fizesse deles  o único método pelo qual o Soberano Pontífice proporia a regra da Fé [21].

Se assim fosse, a equivalência entre a autoridade doutrinal do Papa e a da Igreja seria verificada apenas no Magistério Solene daquele. Apenas um estudo dos documentos do Concílio poderá nos dizer até onde tal interpretação tem fundamento.

Continua…

[18] Podem ser consultados os seguintes: V. Martin, Les origines du gallicanisme, (Paris 1939) e A. G. Martimort, op. Cit. P. 556 e passim.

[19] “Ea infallibilitate pollere, qua… Ecclesiam suam in definienda doctrina de fide vel moribus instructam esse voluit.” Constituição Pastor Aeternus, c Iv. CL c. 487 b. Cf. descrição de Mons. Gasser: “quum de infallibilitate Summi Pontificis in definiendis veritatibus idem omnino dicendum sit quod de infallibilitate definientis Ecclesiae.” CL., c. 415d. (goza daquela infalibilidade com que…quis munir a sua Igreja quando ela define alguma doutrina sobre a fé e a moral; “o que deve ser dito sobre a infaliblidade do Sumo Pontífice ao definir verdade é em tudo idêntico ao que deve ser dito sobre a infalibilidade da Igreja ao definir”)

[20] Cf. H. de Lubac, op. cit., p. 239. Por exemplo, o sacramento enquanto sinal foi temporariamente deixado na obscuridade e apenas sua causalidade era enfatizada, após a condenação da visão protestante que negava o último aspecto e asseverava que os sacramentos eram meramente sinais, não tendo efeito real.

[21] É fácil compreender como sucedeu esta mudança de perspectiva: Desde 1870, os manuais de teologia tomaram as formulae, nas quais suas declarações de doutrina foram estruturadas, da redação efetiva do texto do Concílio. Nenhum destes versou em seu próprio direito [in recto] sobre o ensinamento [ordinário] do Papa [sozinho], que, conseqüentemente, pouco a pouco, escapou dos olhos e todo o ensinamento pontifício pareceu ser reduzido somente a definições solenes ex cathedra. Uma vez que a atenção  estava inteiramente direcionada a eles, tornou-se habitual considerar as intervenções doutrinais da Santa Sé somente do ponto de vista do juízo solene,  aquele de um juízo que deve em si mesmo trazer à doutrina todas as garantias necessárias de certeza. Visto apenas desta maneira, a verdadeira natureza da Magistério Ordinário não seria compreendida, mas foi assim, de fato, como mais de um autor olhou para isso. Este ainda é o ponto de vista de L. Choupin, como é evidenciado simplesmente pelo título de seu livro, The Value of the Doctrinal and Disciplinary Decisions of the Holy See, (Paris, 1913); embora este tenha sido recentemente apresentado como o “melhor trabalho sobre esta difícil matéria”. (A. de Soras, Revue de l’Action Populaire LXX, (1953), p. 893, n.2).

[22] Deve ser notado que esta equivalência não pode, em nenhum caso, ser considerada como existente entre membros adequadamente distintos um do outro. A Igreja universal é apenas tal contanto que ela inclua sua cabeça visível. Uma condição é exigida para a ecumenicidade (catolicidade, universalidade) de um Concílio: a presença do Papa ou de seus delegados, ou ao menos a aprovação do Soberano Pontífice. O mesmo se dá quanto ao Magistério Ordinário, onde o Papa em relação aos bispos (como S. Teodoro Estudita disse sobre São Pedro – epist. II ad Michaelem imperatorem) tem o papel de “corifeu do coro”. (O líder do coro do teatro grego, que fala em nome de todos os membros daquele coro). A equivalência pode, por isso, ser estabelecida apenas entre todo o coro do episcopado, consensio totius magisterii ecclesiae unitae cum capite suo: CL c. 404, e o ensinamento de Pedro sozinho, considerado separadamente da Igreja como pedra de toque da ortodoxia. Cf. Holstein, loc. cit.

[Tratamos aqui da autoridade do magistério ordinário pontifício referindo-nos somente ao Concílio do Vaticano. Para as afirmações dos Soberanos Pontífices, permitimo-nos remeter o nosso estudo: Une Source doctrinale, les Encycliques, Paris, 1952]



O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Nau, O.S.B. – Vários modos de apresentar a regra de Fé.

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Vários modos de apresentar a regra de Fé

Não há necessidade de fundamentar nosso caso nessa única citação de Santo Irineu, que tem, de fato, sido objeto de numerosos comentários doutos [11], particularmente nos últimos anos; nem trazer à baila testemunhas ao longo das épocas para o pensamento da Igreja no que tange a função de seu Magistério. Nós preferiríamos retornar diretamente ao Concílio do Vaticano para questionar como aqueles sucessores dos Apóstolos procuravam renovar a apresentação do depósito revelado da verdade.

Ao definir a regra de fé, a Constituição Dei Filius (O Filho de Deus) aproveitou a oportunidade para tornar definitivo o procedimento duplo para a apresentação doutrinal, à qual os fiéis estão obrigados a responder crendo na verdade a eles apresentada em nome de Deus.

Deve-se, pois, crer com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra divina escrita ou transmitida pela Tradição, bem como tudo o que a Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos propõe a crer como revelado por Deus. [12]

O depósito revelado pode ser apresentado de duas maneiras. Ele pode consistir em um juízo solene cercado pelas garantias necessárias para protegê-lo contra qualquer equívoco, que em si mesmo pronuncia conclusiva e infalivelmente sobre o objeto da Fé.

Mas este método de apresentação, às vezes chamado o Magistério extraordinário, é apenas uma ocorrência excepcional. Ele é mais comumente usado para responder a um erro, colocar fim a uma controvérsia [13] ou, quando a intenção é evitar antecipadamente toda dúvida possível, solenemente pronunciar que uma verdade já admitida torna-se agora um dogma de fé.

A maioria das verdades que se deve crer é proposta pelo Magistério Ordinário [14] da Igreja.

Este não consiste em uma proposição isolada, pronunciando-se irrevogavelmente sobre a Fé e contendo suas próprias garantias de verdade, mas em um conjunto de atos que podem concorrer ao comunicar um ensinamento.

É o procedimento normal pelo qual a Tradição, no sentido pleno do termo [15], é transmitida; foi praticamente o único procedimento conhecido nos primeiros séculos, e também é o que mais geralmente alcança todo o conjunto de cristãos.

O Magistério Ordinário, assim como o juízo solene, igualmente demanda crença na doutrina proposta. Portanto, ambos carregam segurança contra o erro. Se faltasse esta certeza, com efeito, ninguém estaria obrigado a lhe dar seu assentimento leal, isto é, a aderir a ele na autoridade da verdade suprema [16]. Considerados do ponto de vista de obrigar a crença, esses dois métodos de exposição são apresentados pelo Concílio como equivalentes, ao menos na obrigação moral de crer. Ninguém pode, de fato, suspender a crença no que lhe é revelado de maneira certa: mas não é apenas aquilo que é definido como tal que é revelado certamente, mas tudo que é manifestadamente ensinado como tal pelo Magistério Ordinário da Igreja. A nota teológica de heresia tem de ser aplicada não apenas ao que contradiz uma verdade revelada, mas também ao que conflita com uma verdade claramente proposta pelo Magistério Ordinário [17].

Continua…

[11] Além do artigo de Bostein (vide nota 9) c.f.: R. Jacquin, “Le témoignage de Saint Irenée sur l’Eglise de Rome”, in L’Anne Theologique IX, (1948) pp. 95; C. Mohrmann, “About Irenaeus Adv. Haer.” 3, 3, I, em Vigiliae christianae III, (1949) pp. 57; R. Jacquin, “Comment comprendre ‘ab his qui sunt undique’ dans le texte St. Irénée sur l’Eglise de Rome.” Revue Sr. XXIV. (1950) pp. 72; F. Sagnard, O.P., “Irénée de Lyon, Contre les Hérésies, Livre III,” Sources chrétiennes, 34, (Paris-Lyon, 1952).

[12] CL. c. 252 bc. Latin text — nesta tradução, usada a versão portuguesa publicada pela Associação Cultural Montfort em http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=concilios&artigo=vaticano1&lang=bra.

[13] Non pro veritate cognoscenda erant necessariae synodi generales, sed ad errores reprimendos” CL, c 397 Be; isto é: “Sínodos gerais (assembléias eclesiásticas) não são necessários para conhecer a verdade, mas para reprimir erros”.

“Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que estando contidas, pelo menos implicitamente, no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia”. (Papa Pio XI, Mortalium Animos, 6 de janeiro de 1928).

Pe. H. de Lubac, Catholicisme, (Paris, 1938) p. 241, descreve o caráter do Magistério Extraordinário como “ocasional, fragmentário e normalmente mais negativo que positivo”.

[14] “Esse modo de expor a doutrina (visto em si mesmo) é aquele encontrado na profissão e pregação eclesiástica normal e permanente”. J.B. Franzelin, relatório ao Concílio do Vaticano sobre o esboço da constituição dogmática”, CL c. 1611.

[15] Cf. M.L. Guérard des Lauriers, op. cit. 1, p. 298.

[16] Cf. ibid. t. II p. 151, nota 661;

[17] Segundo H. Dezinger, Enchiridion Symbolorum, (1921) prefácio p. 7; e B.H. Merkelbach, in Angelicum, T. VII, (1930) p. 526. Cf. também: Código de Direito Canônico, cânones 1323 e 1325.

O Concílio Vaticano I e o Ensinamento Ordinário do Soberano Pontífice – O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Nau, O.S.B.

Damos continuidade à série de posts com a tradução da obra de Dom Paul Nau, OSB, da abadia de Solesmes, originalmente intitulada “Um ensaio sobre a Autoridade dos Ensinamentos do Soberano Pontífice”, e reimpressa pela Angelus Press (1998) sob o título “O Magistério Ordinário da Igreja Católica”.

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O Concílio Vaticano I e o Ensinamento Ordinário do Soberano Pontífice

Antes de examinar a mente do Concílio acerca do Magistério Ordinário do Papa, talvez seja útil restaurar esta doutrina em seu duplo contexto, através de uma nova leitura dos decretos conciliares relacionados ao Magistério da Igreja e às várias maneiras nas quais ele é expresso.

O papel do Magistério da Igreja

O primeiro pormenor a ser observado nos decretos do Concílio diz respeito à exata função do Magistério da Igreja. A recente proclamação do dogma da Assunção de Nossa Senhora nos mostrou que equívocos ainda se mostravam possíveis sobre este ponto, mesmo entre católicos. Muitas mentes foram surpreendidas por esta nova definição como se ela tivesse sido a primeira revelação de uma doutrina, até então estranha à Fé, que se manteve desconhecida por aproximadamente 20 séculos.

Entretanto, o Concílio do Vaticano teve muito cuidado em lembrar as bases precisas para a assistência carismática (i.e., a assistência divina manifestando-se por um dom excepcional visível aos outros fiéis) prometida por Cristo ao sucessor de São Pedro:

Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de São Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos. [3]

Nenhuma nova revelação pode, de fato, ser esperada após a morte dos Apóstolos, que eram as testemunhas imediatas de Cristo e os primeiros a receber o depósito revelado como um todo. A doutrina que eles receberam do Mestre continuarão, por si mesma, alimentando a fé divina dos fiéis até o fim dos tempos [4]. O único cuidado do fiel deve ser o de conhecer exatamente o que os Apóstolos acreditavam, de modo que ele, também, possa aderir a essa doutrina [5].

Mas para que a doutrina dos Apóstolos possa ser abraçada pela fé, ela deve ser apresentada aos fiéis no decorrer dos séculos. Ao contrário do protestantismo, que olha apenas para a letra dos escritos apostólicos, o católico olha para os ensinamentos dos sucessores dos Apóstolos, e especialmente dos sucessores de Pedro, para a preservação e apresentação do depósito da Fé [6].

No cumprimento de seu múnus “de preservar inviolado (sancte custodirent) o depósito da Fé”, os membros da hierarquia docente não se contentarão em enterrá-lo, como fez o guardião do talento na parábola do Evangelho. Pelo contrário, eles o “transmitirão” à Igreja, e através dela o “transmitirão” às gerações seguintes e a seus sucessores”. [7]

Quando estes, por sua vez, se levantarem para transmití-lo, eles apenas acrescentarão uma nova ligação à corrente ininterrupta que em todos os tempos vincula a fé da Igreja aos primeiros discípulos de Cristo.

Assim, também, quando eles “fielmente expõem a doutrina” (fideliter exponerent), não é uma questão de mera proposição em termos estabelecidos, mas de uma exposição que compreenderá explicações e desenvolvimentos necessários, a fim de defender a formulação do dogma contra qualquer deformação e de fazê-lo explícito sem nunca trair a verdade revelada.

Embora muitos séculos de influência protestante tenham gradualmente obscurecido esta visão, ela é uma para as quais as mais veneráveis tradições podem ser reivindicadas. Em um célebre capítulo do Contra Haereses [8], Santo Irineu procura um critério que nos permita distinguir das doutrinas heréticas aquela doutrina que deve reter a fé do verdadeiro fiel, pois ela traz a ele, sem qualquer diferença, o genuíno ensinamento dos Apóstolos. A regra de fé, responde ele, é o ensinamento presente daqueles bispos que estão ligados, sem qualquer ruptura, aos discípulos imediatos de Cristo, pela sucessão legítima das sedes episcopais fundadas pelos Apóstolos. O charisma da transmissão fiel da verdade revelada está vinculado a esta sucessão legítima.

Estender, se fosse necessário, tal investigação a todas as sedes que reivindicam uma origem apostólica, observa Irineu, o santo bispo de Lion, seria algo prolongado e que muitos considerariam impossível; mas, pela graça de Deus, a investigação pode ser consideravelmente simplificada. A mesma garantia da verdade pode ainda ser encontrada se a investigação for direcionada a apenas uma sede, aquela sede que ostenta ter sido governada pelos sucessores dos Príncipes dos Apóstolos. Graças a seu potentiorem principalitem (literalmente: seu principado mais poderoso), a Igreja de Roma pode, por si mesma, representar a fé de toda a Igreja.

Esta função da Igreja Romana como representante da Igreja inteira por conta de sua maior importância é algo que mesmo os próprios galicanos reconheceriam. “É o privilégio da Igreja Romana, que nenhuma outra igreja individual possui, de ser capaz de representar a Igreja Universal”, disse Pierre d’Ailly [10].

Continua…

[3] CL. c. 486 c (D. 1836)

[4] As declarações doutrinais enunciam a verdade que é e que sempre foi: elas não criam a verdade (F. Hurth, S.J., Periodica, (1948), p. 38).

[5] Cf. J. Bainvel, artigo sobre os “Apóstolos”, DTC, I c. 658; S. Tomás de Aquino, Summa Theologica: Ia, II ae, Q. 94, A.3; Q;106m, A.4; IIa II ae, Q. 1, A.7; Q. 175, A.6. Relato de Mons. Gasser ao Concílio Vaticano, 2 de julho de 1870, CL, c. 369; Y. Congar, Vraie et fausse reforma dans l’Eglise, (Paris, 1950), p. 75.

[6] Cf. J. Danielou, “Résponse à Oscar Cullman”, Dieu vivant, 24, pp. 105 et sq.

[7] Cf. M. L. Guerard des Lauriers, Dimensions de la foi, T.I. (Paris, 1950), p. 298

[8] Livro III, 3,2, de Contra Haereses — Contra as Heresias, escrito por Santo Irineu, nascido aproximadamente em 130, bispo de Lion.

[9] Sobre o significado a ser dado a esta expressão, ver H. Holstein, Propter potentiorem principalitem (St. Irineu) em RSR, XXXVI, (1949), pp. 122, etc.

[10] Citado por A. G. Martimort, Le Gallicanismo de Bossuet, (Paris, 1953), p. 29.

Posts anteriores da série:

Apresentação: O Magistério Ordinário da Igreja Católica, por Dom Paul Nau, O.S.B.