Sobre o mea culpa do Papa Francisco no Canadá.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 27 de julho de 2022 | Tradução: Hélio Dias Viana – A Igreja Católica, fiel ao mandato do seu divino Mestre de “ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda criatura” (Mar.16,15), realiza desde a sua fundação uma vasta obra missionária com a qual não só trouxe a Fé ao mundo, mas também a civilização, santificando lugares, povos, instituições e costumes. Graças a este trabalho, a Igreja civilizou também os povos das Américas, que estavam imersos no paganismo e na barbárie.

A primeira missão jesuíta do Canadá entre os índios iroqueses, dirigida pelo padre Charles Lalemant (1587-1674), desembarcou em Québec em 1625. Em 1632 chegou uma nova missão, conduzida pelo padre Paul le Jeune (1591-1664). O padre Jean de Brébeuf (1593-1649) voltou em 1633 com dois outros sacerdotes. De choça em choça, começaram a instruir crianças e adultos no Catecismo. Mas alguns feiticeiros convenceram os índios de que a presença dos padres atraía secas, epidemias e outras calamidades. Assim, os jesuítas decidiram proteger os catecúmenos isolando-os em cidades cristãs. A primeira foi construída a quatro milhas de Québec. Constava de um forte, uma capela, casas,  um hospital e uma residência para os padres.

Ao mesmo tempo, alguns voluntários se ofereceram para converter os índios: Santa Maria da Encarnação Guyart Martin (1599-1672), uma irmã ursulina originária de Tours que com outras duas freiras havia fundado um internato em Québec para ensinar crianças indígenas; Dona Marie Madeleine de la Peltrie (1603-1671), viúva francesa que fundou com algumas Irmãs Hospitaleiras de Dieppe um hospital, também em Québec; membros da Sociedade de Nossa Senhora que com a ajuda do padre sulpiciano Jean Jacques Olier (1608-1657) e da Companhia do Santíssimo Sacramento fundaram em 1642 a Ville Marie de Montréal, a partir da qual nasceria a atual Montréal.

Mas os iroqueses se mostraram irredutivelmente hostis. Haviam mutilado atrozmente e coberto de brasas o padre Isaac Jogues (1607-1646) e seu coadjutor, padre René Goupil (1608-1642). Em março de 1649, os iroqueses martirizaram os padres Jean de Brébeuf e Gabriel Lalemant (1610-1649). Empalaram o padre Brébeuf com barras de ferro quente e lhe arrancaram pedaços de carne, que devoraram diante de seus olhos. Vendo que o mártir não parava de louvar a Deus, arrancaram-lhe os lábios e a língua e enfiaram tições acesos em sua garganta. O padre Lalemant foi torturado pouco depois com crueldade ainda maior. Mais tarde, um selvagem esmagou sua cabeça com um machado e arrancou-lhe o coração, bebendo seu sangue para assimilar sua força e coragem. Em dezembro, uma nova onda de ódio feroz produziu dois novos mártires, dos padres Charles Garnier (1605-1649) e Noël Chabanel (1613-1649). Os oito missionários jesuítas, conhecidos como Mártires do Canadá, foram beatificados por Bento XV em 1625 e canonizados por Pio XI em 1930.

Esses episódios fazem parte da memória histórica do Canadá e não podem ser esquecidos. Como jesuíta o Papa Francisco deveria estar familiarizado com esta epopeia, narrada entre outros por seu colega de Ordem padre Celestino Testore, em seu livro Os santos mártires do Canadá, publicado em 1941.

Mas, sobretudo, o Santo Padre deveria ter tratado com maior prudência o caso da suposta descoberta de valas comuns nas residências estudantis para índios do Canadá — rede de escolas fundada pelas autoridades e confiada principalmente à Igreja Católica, embora também em parte (30%) à anglicana canadense, com vista à integração do corpo discente na cultura nacional, de acordo com a Lei de Civilização Gradual aprovada pelo Parlamento em 1857. Nas últimas décadas, a Igreja Católica tem sido acusada de participar de um plano de extermínio cultural dos povos indígenas, cujos filhos teriam sido arrancados de suas famílias para serem doutrinados e, às vezes, submetidos a tratamentos abusivos para assimilá-los à cultura dominante. Em junho de 2008, com base em posturas indigenistas, as autoridades canadenses pediram perdão oficialmente aos indígenas e criaram uma Comissão de Verdade e Reconciliação para os internatos de índios.

Apesar dos 71 milhões de dólares recebidos, os investigadores da comissão trabalham há sete anos sem encontrar tempo para consultar os arquivos dos Oblatos de Maria Imaculada, a Ordem religiosa que no final do século XIX começou a administrar os internatos. Enquanto isso, graças às informações coletadas nesses arquivos, o historiador Henri Goulet, em sua Histoire des pensionnats indiens catholiques au Québec. Le rôle déterminant des pères oblats (Presses de l’Université de Montréal, 2016) [História dos pensionatos indígenas católicos em Québec. O papel determinante dos padre oblatos], mostrou que os Oblatos eram os únicos defensores da língua e do modo de vida tradicional dos índios do Canadá, ao contrário do governo e da igreja anglicana. Essa linha de pesquisa historiográfica é confirmada pelos trabalhos de um dos maiores estudiosos internacionais da história da religião no Canadá, o professor Luca Codignola Bo, da Universidade de Gênova.

Da acusação de genocídio cultural se passou para a de genocídio físico. Em maio de 2021, a antropóloga Sarah Beaulieu, depois de inspecionar com georadar o terreno adjacente ao internato de Kamloops, levantou a hipótese da existência de uma vala comum, sem ter realizado nenhuma escavação. As alegações da antropóloga, divulgadas pela grande mídia e endossadas pelo primeiro-ministro Trudeau, deram origem a teorias muito variadas, algumas das quais afirmam que centenas de crianças teriam sido mortas e enterradas clandestinamente em valas comuns ou túmulos irregulares em terrenos de escolas católicas no Canadá.

A notícia é totalmente infundada, pois nenhum corpo foi desenterrado, como documentou Vik van Brantegem no blog Korayzm.org em 22 de fevereiro. Em 1º de abril, o blog UCCR publicou uma entrevista detalhada com o historiador Jacques Rouillard, professor emérito de História da Universidade de Montréal, na qual ele nega categoricamente o genocídio cultural e físico dos indígenas canadenses e a existência de valas comuns nos internatos Ele está convencido de que por trás de todo o caso se oculta uma tentativa de obter indenizações milionárias. Em 11 de janeiro, o próprio professor Rouillard publicou um extenso artigo no site canadense Dorchester Review, no qual afirma que nas supostas valas comuns do internato de Kamloops não foram encontrados nenhum corpo de menor, enterros clandestinos ou qualquer outro enterro irregular. Atrás das escolas não há senão cemitérios, nos quais foram enterrados não apenas os alunos, mas também a população local e os próprios missionários. Com base na documentação apresentada por Rouillard, entre 1915 e 1964 morreram 51 crianças. Foi encontrada a documentação sobre a causa mortis de 35 delas, a maioria por doença e alguns por acidentes.

Um novo artigo publicado pelo professor Tom Flanagan e pelo juiz Brian Gesbrecht em 1º de março na Dorchester Review confirma não haver a menor indicação de que um único menor tenha sido assassinado nos 113 anos de história dos internatos católicos. De acordo com os dados fornecidos pela Comissão para a Verdade e Reconciliação, a taxa anual de mortalidade entre os alunos em internatos era uma média de quatro por mil, principalmente por tuberculose ou gripe.

Parece que as escavações foram finalmente autorizadas em Kamloops, mas, como diz o professor Rouillard, teria sido melhor tê-las feito no outono passado, para que se conhecesse a verdade, evitando assim que o Papa Francisco pedisse perdão por hipóteses não comprovadas. Um intelectual canadense o expressa com estas palavras: “Parece inacreditável que um estudo preliminar sobre uma suposta vala comum em um pomar tenha desencadeado uma avalanche de reivindicações com o aval das autoridades canadenses, as quais tenham sido reproduzidas pela mídia de todo o mundo. Não se trata de um conflito entre a história oficial e a história indígena transmitida oralmente, mas entre esta última e o senso comum. Até o momento não foram feitas exumações nem se encontraram restos. Uma acusação criminal requer provas verificáveis, especialmente se o autor do delito tiver morrido há muito tempo. Portanto, é importante que as escavações sejam feitas o quanto antes, para que a verdade prevaleça sobre a fantasia e as emoções. Se o que se quer é a reconciliação, não é preferível investigar e contar toda a verdade antes de inventar mitos sensacionalistas?»

Novos cenários na era do coronavírus – O coronavírus é um castigo divino? Considerações políticas, históricas e teológicas.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 16 de março de 2020 | Tradução: José Antonio Ureta – O tema da minha palestra é “Os novos cenários na Itália e na Europa com e após o coronavírus”.

Não falarei sobre esse tópico do ponto de vista médico ou científico, pois não tenho competência nesses campos.

Em vez disso, tratarei do assuntos sob outros três pontos de vista: do estudioso das ciências políticas  e sociais; do historiador; e do ponto de vista do filósofo da história.

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O “suicídio assistido” da Igreja e da sociedade.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 21 de agosto de 2019  | Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.com: Toda a atenção destes dias na Itália está concentrada na crise política. Mas há outra crise, mais grave e mais extensa, que constitui o âmago profundo da crise política: é a crise religiosa e moral do Ocidente. A crise política é visível, entra através de nossa mídia em nossas casas, e até mesmo um olho ou ouvido distraído a percebe. A crise religiosa e moral só a percebem aqueles que têm uma sensibilidade espiritual desenvolvida. Quem está imerso no materialismo da vida contemporânea possui uma capacidade refinada para captar o prazer dos sentidos, mas fica espiritualmente obnubilado, se não completamente cego. A crise religiosa e moral é uma crise que ocorre quando o homem perde de vista seu objetivo final e os critérios que devem orientar suas ações. A sociedade mergulha no agnosticismo, se dissolve e morre.

Na Itália, por exemplo, a crise do governo nos faz esquecer um compromisso importante. Está prevista para 24 de setembro uma audiência do Tribunal Constitucional a fim de julgar a legitimidade do artigo 580 do Código Penal, que pune o crime de instigar ou ajudar o suicídio. O supremo corpo jurídico do Estado italiano convidou o Parlamento a promulgar uma nova lei até essa data, caso contrário será o próprio Tribunal que definirá o roteiro. Mas a Corte já declarou que em alguns casos o suicídio pode ser admitido (e, portanto, “assistido” no nível médico e administrativo), porque “a proibição absoluta da ajuda ao suicídio acaba limitando a liberdade de autodeterminação do paciente na escolha de terapias, incluindo as destinadas a libertá-lo do sofrimento” (Portaria nº 207, de 16 de novembro de 2018). A autodeterminação do indivíduo é a regra suprema de uma sociedade que ignora a existência de uma lei moral inscrita no coração de cada homem, à qual os homens e as sociedades devem obedecer se quiserem evitar a autodestruição.

A crise política em curso parece excluir a possibilidade de que o Parlamento possa enfrentar a questão do suicídio até setembro e, portanto, é provável que o Tribunal Constitucional inflija um novo e sério golpe ao direito à vida, rumo a uma completa liberalização da eutanásia. Após o testamento biológico, um novo passo adiante será dado no caminho da cultura da morte que caracteriza a sociedade contemporânea.

O suicídio assistido é a ajuda médica, psicológica e burocrática aos que decidiram morrer. É um crime moral como a eutanásia. A lei natural e divina proíbe o suicídio porque o homem não é o dono de sua vida, como não o é da vida dos outros. O suicídio é um ato supremo de rebelião contra Deus porque, como ensina a filosofia tradicional, não pode haver ato de maior domínio do que querer destruir algo que não nos pertence (Victor Cathrein SJ, Philosophia moralis, Roma, Herder 1959, p. 344). No suicídio parece realizar-se o destino do homem moderno, incapaz de se elevar além do horizonte terrestre de sua própria existência, prisioneiro de sua própria imanência. O homem destrói a si mesmo quando rejeita o peso da própria existência, que todos são chamados a suportar.

O suicídio pode ser realizado não só pelos homens, mas também pelas nações, pelas civilizações, e intentado até mesmo pela Igreja, considerada na humanidade dos homens que a compõem. A Igreja vive há mais de cinquenta anos um processo suicida que Paulo VI definiu como “autodemolição” (discurso no Seminário Lombardo de Roma em 7 de dezembro de 1968). Essa autodemolição hoje poderia ser chamada de verdadeiro “suicídio assistido” da Igreja. Assistido porque induzido e favorecido por aqueles fortes poderes que sempre combateram a Igreja.

O documento preparatório do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, com o culto da Natureza substituindo o da Santíssima Trindade, a abolição do celibato eclesiástico e a negação do caráter sacramental e hierárquico do Corpo Místico de Cristo, é o último exemplo desse suicídio assistido causado pelos líderes da Igreja e encorajado por seus inimigos. O Instrumentum laboris sobre a Amazônia, disse o cardeal Walter Brandmüller, “acusa o sínodo dos bispos e, em última análise, o Papa de uma grave violação do ‘depositum fidei’, o que significa, como consequência, a autodestruição da Igreja”.

Os católicos minimalistas propõem como alternativa ao suicídio assistido a sedação profunda, através da qual a morte do paciente é alcançada indiretamente, mas de modo também inexorável. Nós não pertencemos a este grupo. Não somos capazes, por conta própria, de salvar os doentes, porque só há um médico que pode fazê-lo em qualquer momento: Aquele que fundou a Igreja, que A dirige e prometeu que Ela não perecerá. Este doutor de almas e corpos é Jesus Cristo (Mateus 8, 5-11). A Igreja e a sociedade Lhe pertencem e nenhum renascimento é possível fora do retorno à Sua lei. (Traduzido por Hélio Dias Viana)

O Instituto João Paulo II caiu. Mas com honra?

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 7 de agosto de 2019 | Tradução: Dies Irae – Na batalha histórica em curso dentro da Igreja, caiu uma torre: o Instituto João Paulo II. Para situar o acontecimento no seu contexto, é útil o artigo de George Weigel, com o significativo título Os vândalos saqueiam Roma… de novo. Segundo Weigel, depois do Concílio Vaticano II abriu-se uma «guerra de sucessão» entre «dois grupos de teólogos reformistas anteriormente aliados» reconhecidos em duas revistas, Concilium e Communio: a primeira ultra-progressista, a segunda moderada. O que estava em jogo era a batalha pelo «controle das faculdades nos departamentos de teologia de todo o mundo».


A eleição de João Paulo II, que nomeou Joseph Ratzinger Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, marcou a prevalência dos moderados sobre os extremistas. Estes últimos, a partir de 1978, viram-se «à margem do grande jogo da política eclesiástica – embora continuassem a manter um controle férreo sobre a maior parte dos cargos nas faculdades teológicas e em muitas publicações teológicas». João Paulo II – explica o escritor americano – não expurgou as universidades eclesiásticas de professores progressistas, mas promoveu a fundação de novos institutos como a Universidade da Santa Cruz, do Opus Dei (e, acrescentamos, a Regina Apostolorum, dos Legionários de Cristo ). O Papa Wojtyla estava, de facto, «confiante de que a boa moeda – a boa teologia – acabaria por expulsar a má moeda ética». O Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família foi o «instrumento-chave» desta operação cultural, sobretudo para aprofundar a recepção da parte de toda a Igreja da encíclica de João Paulo II Veritatis splendor (1993). Os progressistas, a quem Weigel chama homens «teimosos» e «implacáveis», esperavam o momento para acertar as contas. A ocasião chegou nas últimas semanas, quando o novo Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família, do qual é Grão-Chanceler o Arcebispo Vincenzo Paglia, realizou uma purga «de estilo estalinista» contra a herança teológica e pastoral de João Paulo II. O caso mais clamoroso foi a supressão, após 38 anos de vida, da cadeira de Moral Fundamental, leccionada por Mons. Livio Melina. A conclusão, que é também o incipit do artigo de Weigel, é que «um exercício de bruto vandalismo intelectual está em curso, em Roma, desde 23 de Julho: o que era originalmente conhecido como o Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família foi peremptória e sistematicamente privado dos seus professores mais ilustres, e os seus cursos centrais de Teologia Moral foram cancelados».

No entanto, na reconstrução do nosso amigo George Weigel há um vazio que tentamos preencher. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que os vinte e sete anos do pontificado de João Paulo II foram seguidos pelos oito anos de governo da Igreja de Bento XVI. Ao todo, trinta e cinco anos de domínio eclesiástico dos moderados. Como poderia acontecer que, apesar deste longo período de prevalência reformista, os jacobinos pudessem tomar o poder, exercendo, hoje, uma implacável repressão contra os seus adversários? Surge a dúvida de que isso se deve à intrínseca fraqueza da frente moderada. Fraqueza doutrinal, fundada na tentativa de justificar, a qualquer custo, um evento, como o Concílio Vaticano II, que tem pesadas responsabilidades, a começar pela ausente condenação do comunismo, num momento histórico em que isso constituía a mais grave ameaça para a Igreja e para o Ocidente. Fraqueza estratégica, porque quem está convencido de defender a verdade não pode tolerar que nas universidades e nos seminários eclesiásticos se continue a ensinar, por décadas, o erro, como aconteceu durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. A estratégia de promover a verdade, evitando condenar o erro, não compensa. Os factos não confirmaram esta estratégia, mas confirmaram a lei de Thomas Gresham (1519-1579), segundo a qual é a má moeda que expulsa a boa (bad money drives out good), e não o contrário.

A renúncia ao pontificado de Bento XVI, a 11 de Fevereiro de 2013, foi, além disso, a declaração do fracasso desta estratégia. A hermenêutica da continuidade revelou-se incapaz de contrariar o jacobinismo eclesiástico, que não é uma linha interpretativa de documentos teológicos, mas um projecto de conquista do poder através dos homens e dos factos. A eleição do Papa Francisco foi a inevitável consequência do fracasso histórico do reformismo moderado. Jorge Mario Bergoglio opõe o seu “magistério vivente” da Igreja a quem se refere ao “magistério vivente” do Vaticano II. Se um Concílio da Igreja tem sempre razão, como podemos culpar um Papa que se apresenta como a encarnação desse evento? O Papa Francisco, por sua vez, como todos os jacobinos, detesta, mais do que outra coisa, a ambiguidade e as contradições dos moderados, respeitando e temendo a coerência dos contra-revolucionários. E se hoje o Instituto João Paulo II é saqueado por vândalos, é precisamente porque não resistiu abertamente ao Papa Francisco quando era o momento.

A exortação Amoris laetitia, de 19 de Março de 2016, tinha o claro objectivo de destruir a Veritatis splendor e o ensinamento moral de João Paulo II, substituindo-o por um novo paradigma moral. Os professores do Instituto João Paulo II, em nome da Veritatis splendor, e da sua própria história pessoal, deveriam ter-se erguido como um só homem contra este atentado à moral católica, especialmente depois da recusa do Papa Francisco em receber os cardeais autores das dubia e após o rescrito de 5 de Julho de 2017, segundo o qual a interpretação autêntica do documento pontifício era a dos bispos argentinos. A intenção do Papa Francisco era, e é, clara para todos. No entanto, nenhum dos teólogos do Instituto assinou a Correctio filialis de haeresibus propagada, a 24 de Setembro de 2017, nem produziu nenhum documento em que a Amoris laetitia tenha sido exposta a severas críticas.

A 3 de Agosto, numa entrevista a La Verità, Mons. Livio Melina apresentou-se como vítima de um expurgo injusto, alegando ter sido surpreendido por ter querido interpretar a exortação Amoris laetitia à luz do Magistério da Igreja. O problema é que a Amoris laetitia não pode ser interpretada à luz do Magistério perene, porque propõe um novo paradigma moral irreconciliável com a Veritatis splendor. O Papa Francisco está convencido disso e nós estamos com ele. Talvez também Mons. Melina esteja convencido disso, mas nunca o disse publicamente. Este silêncio não impediu a sua decapitação. Por que surpreender-se? A história da Revolução Francesa não ensina alguma coisa?

A batalha exige homens que lutem com clareza a favor ou contra a Tradição da Igreja. Mas se acontece que um Papa se opõe à Tradição, devemos distanciar-nos respeitosamente disso, permanecendo firmes dentro da Igreja, da qual ele, não nós, parece querer separar-se. Um teólogo talentoso como Mons. Melina tem todas as ferramentas intelectuais para compreender como é possível resistir aos erros doutrinários e pastorais de um Papa sem nunca faltar ao amor e à devoção que devemos reservar à Cátedra de Pedro. A hora do minimalismo passou. Chegou a hora em que a Verdade e o erro se devem olhar na cara, sem compromisso. Esta é a única possibilidade que tem a Verdade para vencer. Precisamos de homens que lutem e, se necessário, caiam, mas com honra.

Roberto de Mattei

O princípio de legalidade se extingue na Igreja?

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 10 de julho de 2019 | Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.com  Se o Papa Francisco fosse acusado de um crime por algum juiz, em qualquer parte do mundo, ele deveria despojar-se de seu cargo de Sumo Pontífice da Igreja Católica e submeter-se ao julgamento de um tribunal. Esta é a consequência lógica e necessária da decisão clamorosa com a qual a Santa Sé privou da imunidade diplomática o Núncio Apostólico na França, Mons. Luigi Ventura, acusado de assédio sexual.

A Santa Sé poderia ter dispensado o núncio de seu cargo e, enquanto esperava a justiça francesa seguir seu curso, ter dado início a uma investigação canônica contra ele, mesmo como uma garantia de imparcialidade para com o acusado. Mas a decisão de entregar o representante pontifício a um tribunal secular derruba a instituição da imunidade diplomática – expressão por excelência da soberania da Igreja e de sua liberdade e independência –, essa mesma imunidade diplomática, aliás, invocada para proteger os crimes cometidos na Itália pelo esmoleiro do Papa, o cardeal Konrad Krajewski [aquele que reconectou ilegalmente a eletricidade de um imóvel romano ocupado por grupos esquerdistas alternativos que não pagavam as contas].

O sucedido se insere no quadro de uma preocupante extinção de todo princípio de legalidade dentro da Igreja. O direito é coessencial à Igreja, que tem uma dimensão carismática e uma dimensão jurídica, ligadas inseparavelmente entre si, como o são a alma e o corpo. No entanto, a dimensão jurídica da Igreja é ordenada ao seu fim sobrenatural e está a serviço da verdade. Se a Igreja perde de vista seu fim sobrenatural, torna-se uma mera estrutura de poder, na qual a força da função eclesiástica prevalece sobre o que é verdadeiro e justo.

Este conceito “funcionalista” da Igreja foi denunciado pelo cardeal Gerhard Ludwig Müller, em recente entrevista a Edward Pentin no National Catholic Reporter. O cardeal Müller afirmou que a chamada reforma da Cúria, que está sendo discutida nos últimos meses, corre o risco de transformar a Cúria em uma instituição na qual todo o poder fica concentrado na Secretaria do Estado, desacreditando o colégio cardinalício e as congregações competentes: “Eles estão convertendo a instituição da Cúria em uma simples burocracia, em simples funcionalismo e não em uma instituição eclesiástica”.

Uma manifestação desse funcionalismo é o uso instrumental do direito canônico para sancionar institutos religiosos e simples sacerdotes que não estão dispostos a se alinhar com o novo paradigma do Papa Francisco. No caso das comunidades religiosas, a intervenção repressiva geralmente ocorre através do comissariado, seguida de um decreto de supressão ou reforma completa da instituição, sem dar motivação adequada e muitas vezes expressa na chamada “forma específica”, ou seja, com aprovação pontifícia, sem possibilidade de recurso.

Este procedimento, cada vez mais difundido, certamente não ajuda a acalmar os espíritos numa situação eclesial sujeita a fortes tensões. Mesmo se admitirmos a existência de deficiências humanas em algumas comunidades religiosas, não seria melhor corrigi-las do que destruí-las? O que acontecerá aos jovens sacerdotes e seminaristas que decidiram dedicar suas vidas à Igreja e são privados de seu carisma de referência? Que misericórdia é exercida em relação a eles? O caso dos Franciscanos da Imaculada é emblemático neste sentido.

No caso dos simples sacerdotes, o equivalente à supressão é a sua exclusão do status jurídico clerical, isto é, a chamada redução ao estado laico. Cumpre não confundir o estado clerical – que se refere a uma condição jurídica – com a ordem sagrada, que indica uma condição sacramental e imprime um caráter indelével na alma do sacerdote. A perda do estado clerical é uma medida problemática, especialmente no que diz respeito aos bispos, sucessores dos apóstolos. Muitos bispos, ao longo da História, caíram em pecados graves, cismas e heresias. A Igreja muitas vezes os excomungou, mas quase nunca os reduziu ao estado laical, precisamente por causa da indelebilidade de sua consagração episcopal.

Hoje, pelo contrário, se procede com muita facilidade à redução ao estado laical, e frequentemente não através de um processo judicial, mas usando o processo penal administrativo introduzido pelo novo código de 1983. No processo administrativo há apenas uma instância de julgamento, os poderes discricionários dos juízes são muito amplos, e o réu, a quem às vezes nem sequer se concede advogado de defesa, é privado dos direitos que lhe são atribuídos pelo processo judicial ordinário. O prefeito da congregação competente também tem a possibilidade, como no caso da dissolução de um instituto, de solicitar uma aprovação papal na forma específica, o que torna impossível qualquer recurso.

A consequência é uma praxe justicialista da parte da instituição que, ao longo da história, mais dava garantias aos processados, esquecendo as palavras que Pio XII dirigiu aos juristas: “A função do direito, sua dignidade e o sentimento de equidade, natural ao homem, exigem que a ação punitiva, do começo ao fim, não se baseie na arbitrariedade e na paixão, mas em regras jurídicas claras e fixas […]. Se é impossível estabelecer a culpa com certeza moral, o princípio deve ser aplicado: ‘in dubio standum est pro reo’” (Discurso de 3 de outubro de 1953 aos participantes do Congresso Internacional de Direito Penal, em AAS 45 (1953), pp. 735-737).

Ao contrário da excomunhão, que sugere a ideia de verdade absoluta defendida pela Igreja, a redução ao estado laico é um castigo mais facilmente compreendido por pessoas mundanas, que concebem a Igreja como uma vulgar empresa que pode “demitir” seus empregados, mesmo sem justa causa. Essa concepção funcionalista da autoridade anula a dimensão penitencial dos castigos na Igreja. Ao impor a oração e a penitência aos culpados, a Igreja demonstrava ter em vista acima de tudo suas almas. Hoje, para agradar o mundo, que exige punições exemplares, não há interesse pelas almas dos réus, que são mandados para casa, sem que a Igreja cuide mais deles.

Em artigo publicado pelo Corriere della Sera em 11 de abril de 2019, Bento XVI acusou o “garantismo” como uma das causas do colapso moral da Igreja. Nos anos seguintes à Revolução da Sorbonne, em Maio de 1968, dizia ele, mesmo na Igreja, “os direitos do acusado deviam ser garantidos, a ponto de excluir uma condenação”. O problema, na realidade, não era o de uma garantia excessiva para o acusado, mas de excesso de tolerância para seus crimes, alguns dos quais, como a homossexualidade, deixaram de ser considerados como tais desde os anos do Concílio Vaticano II, que antecedeu aquela Revolução. Foi nos anos do Concílio e do pós-Concílio que uma cultura relativista – na qual a homossexualidade foi considerada moralmente irrelevante e pacificamente tolerada – entrou nos seminários, faculdades e universidades católicas. Bento XVI, que pediu “tolerância zero” contra a pedofilia, nunca invocou a “tolerância zero” contra a homossexualidade, curvando-se, como seu sucessor, às leis do mundo.

Nas últimas semanas foram feitas novas revelações do arcebispo Dom Carlo Maria Viganò a respeito de crimes graves contra a moralidade, cometidos pelo arcebispo Dom Edgar Peña Parra, escolhido pelo Papa Francisco como Substituto na Secretaria de Estado. Por que as autoridades eclesiásticas, que há anos estavam inteiradas dessas acusações, nunca iniciaram investigações, como não as iniciaram pelos crimes cometidos no pré-seminário Pio X, que forma os coroinhas para as cerimônias papais na Basílica de São Pedro? As autoridades têm o dever de iniciar uma investigação: um dever inalienável, depois que as palavras do corajoso arcebispo ressoaram em todo o mundo.

Outra pergunta aguarda resposta. O cardeal George Pell está, desde março passado, em confinamento solitário na penitenciária de segurança máxima de Melbourne, aguardando um novo julgamento, após ter sido condenado em primeira instância. Por que as autoridades eclesiásticas o privam de um processo canônico que estabeleça sua culpa ou inocência não diante do mundo, mas da Igreja? É escandaloso que o Cardeal Pell esteja na prisão e a Igreja esteja em silêncio, aguardando o julgamento do mundo e recusando-se a emitir seu próprio julgamento, possivelmente em contraste com o do mundo.

Do quê a Igreja tem medo? Jesus não veio para vencer o mundo? O direito, que deveria ser um instrumento da verdade, tornou-se um instrumento de poder por parte daqueles que hoje governam a Igreja. Mas uma Igreja na qual o princípio da legalidade se extingue é uma Igreja sem Verdade e uma Igreja sem Verdade deixa de ser Igreja.

Papa Francisco, filósofo da inclusão.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 05 de junho de 2019 | Tradução: Hélio Dias Viana, FratresInUnum.com –  No dia 2 de junho, a tradicional parada militar na Itália para celebrar a festa da República transcorreu sob o signo da “inclusão”. O tema da inclusão, que caracterizou o evento, “representa bem os valores esculpidos em nossa Carta constitucional, a qual estabelece que nenhum cidadão pode se sentir abandonado, mas deve ser garantido no exercício efetivo de seus direitos”, declarou o Presidente da República Sergio Mattarella [democrata-cristão de esquerda].

No mesmo dia, em Blaj, na Romênia, o Papa Francisco fez um mea culpa em nome da Igreja pelas discriminações sofridas pelas comunidades ciganas: “Em nome da Igreja, peço perdão, ao Senhor e a vós, por todas as vezes que, ao longo da história, vos discriminamos, maltratamos ou consideramos de forma errada, com o olhar de Caim em vez do de Abel, e não fomos capazes de vos reconhecer, apreciar e defender na vossa peculiaridade”. Ao longo da História não há traços de perseguições ou maus tratos da Igreja em relação aos ciganos, mas com essas palavras o Papa Francisco quis reafirmar aquele princípio de “inclusão” do qual ele é hoje o teórico por excelência e ao qual a União Europeia submete a sua política. A insistência com a qual o Papa Francisco retorna a temas como inclusão, não discriminação, acolhida, cultura do encontro pode parecer a alguns como uma expressão de amor ao próximo que, para usar uma metáfora do próprio Papa Bergoglio, faz parte do “documento de identidade do cristão”.

Quem assim pensa, no entanto, comete um erro de perspectiva análogo ao dos católicos progressistas do final do século XX, para os quais a preocupação de Marx para com o proletariado nasceu de seu amor pela justiça social. Esses católicos propunham cindir o marxismo, rejeitando sua filosofia materialista, mas aceitando sua análise econômica e social. Eles não entenderam que o marxismo constitui um bloco inseparável e que a sociologia marxista é uma consequência direta de seu materialismo dialético. Marx não era um filantropo debruçado sobre a miséria do proletariado para aliviar seu sofrimento, mas um filósofo militante que usava tais instrumentos como ferramenta para realizar seu objetivo revolucionário.

De maneira similar, a atenção do Papa Francisco para com os subúrbios e os menos favorecidos não nasce de um espírito evangélico nem de uma filantropia laica, mas de uma opção filosófica mais do que política e que pode ser resumida em termos de um igualitarismo cosmológico. Francisco usa um neologismo em sua encíclica Laudato sì: o termo castelhano “inequidad” [na versão portuguesa foi traduzido por “desigualdade”], que basicamente significa qualquer forma de desigualdade social injusta. “O que queremos é a luta contra as desigualdades, este é o maior mal que existe no mundo”, declarou ele a Eugenio Scalfari no Repubblica em 11 de novembro de 2016. Na mesma entrevista, o papa Bergoglio adotou o conceito de “hibridização” proposto por Scalfari [nós, brasileiros, diríamos “miscigenação”]. E Scalfari, em editorial no mesmo jornal de 17 de setembro de 2017, afirma que, segundo o Papa Francisco, “na sociedade global em que vivemos, povos inteiros migrarão para este ou aquele país e criarão, com o passar do tempo, um tipo de ‘hibridização’ cada vez mais integrado. Ele o considera um fato positivo, onde indivíduos, famílias e comunidades se tornam cada vez mais integrados, os vários grupos étnicos tendem a desaparecer e uma grande parte da nossa Terra será habitada por uma população com novos traços físicos e espirituais. Levará séculos ou até milênios para que tal fenômeno aconteça, mas – de acordo com as palavras do Papa – essa é a tendência. Não é por acaso que ele prega o Deus Único, isto é, um por todos. Eu não sou crente, mas reconheço uma lógica nas palavras do Papa Francisco: um povo único e um Deus único. Até agora, não houve líder religioso que tenha pregado essa verdade ao mundo”.

O termo “mestiçagem”, como os de inclusão e acolhida, retornam amiúde na linguagem pastoral do papa Bergoglio. Em 14 de fevereiro de 2019, por ocasião de seu discurso no Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), em Roma, Francisco se encontrou com uma representação de povos indígenas e, chamando essas comunidades de “um grito vivo a favor da esperança”, pediu uma “mestiçagem cultural” entre os “povos chamados civilizados” e as populações nativas, que “sabem o que significa ouvir a terra, ver a terra, tocar a terra”. A “mestiçagem cultural”, explicou, é o caminho a seguir trabalhando “para tutelar quantos vivem nas áreas rurais e mais pobres do planeta, mas mais ricas na sabedoria de conviver com a natureza”.

Em 19 de janeiro de 2018, em Puerto Maldonado, no coração da Amazônia peruana, o Papa Francisco, encontrando os indígenas, disse-lhes: “O tesouro que encerra esta região” não pode ser entendido, compreendido, sem “vossa sabedoria” e “vossos conhecimentos”. Para se compreender melhor essa referência à “sabedoria” e ao “conhecimento” dos nativos, precisamos recorrer ao trabalho de um autor caro ao Papa Francisco, o ex-franciscano Leonardo Boff. A Amazônia – explica Boff – tem “um valor paradigmático universal”, porque representa a antítese do modelo de desenvolvimento moderno “carregado de pecados capitais e antiecológicos”; mas também “é o lugar de ensaio de uma alternativa possível, em consonância com o ritmo daquela natureza luxuriante, respeitando e valorizando a sabedoria ecológica dos povos originários que há séculos ali vivem” (Ecologia: Grito da Terra e Grito dos Pobres, Rio de Janeiro-RJ: Sextante, 2004, p. 145). Para Boff, “precisamos passar do paradigma moderno para o paradigma pós-moderno, global, ‘holístico’, que propõe ‘um novo diálogo com o universo’, ‘uma nova forma de diálogo com a totalidade dos seres e suas relações’” (ibid., p. 23).

A Amazônia não é apenas um território físico, mas um modelo cosmológico em que a natureza é vista como um todo vivo que tem em si uma alma, um princípio de atividade interna e espontânea. Com essa natureza prenhe de divindades, os povos indígenas da América Latina mantêm uma relação que o Ocidente perdeu. A sabedoria dos nativos deve ser recuperada, pedindo perdão pela discriminação cometida contra eles, sem esperar que peçam perdão pelo canibalismo e pelos sacrifícios humanos que seus ancestrais praticaram. As pontes que precisam substituir os muros são unidirecionais. Este é o pano de fundo cultural do Sínodo que será aberto no Vaticano em 6 de outubro. A inclusão é um conceito filosófico, e não social: significa afirmar uma realidade híbrida, indistinta, “miscigenada”, na qual tudo se funde e se confunde, como a teoria do gênero, que é a teoria da inclusão por excelência. As pessoas LGBT, como os migrantes ou os nativos da América do Sul, devem ser bem-vindos e respeitados não como pessoas, mas pelas culturas e rumos que veiculam. Esta cosmologia lembra o deus sive natura de Spinoza, que pleiteia a identidade de Deus com a substância infinita da qual todos os seres derivam. Deus deve ser incluído na natureza e a natureza deve ser incluída em Deus, que não é uma causa transcendente, mas imanente do mundo, com a qual Ele coincide. Não há diferença qualitativa entre Deus e a natureza, assim como não há diferença qualitativa entre diferentes sociedades, religiões ou culturas, nem entre o bem e o mal que, segundo Spinoza, são “correlativos” (Ética, IV, prop. 68).

A doutrina da inclusão não é a da encíclica Aeterni Patris de Leão XIII ou da Pascendi de São Pio X, mas se opõe a esses documentos. Poucos, no entanto, se atrevem a dizê-lo abertamente. Quanto tempo durará este silêncio ambíguo, confortável para muitos, mas sobretudo para aqueles que o utilizam para alcançar fins alheios à finalidade sobrenatural da Igreja? (Traduzido por Hélio Dias Viana)

A condenação do cardeal Pell, a Igreja e o mundo.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 27 de fevereiro de 2019 | Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.com: A condenação do Cardeal Pell – que caiu como um raio após o encerramento da reunião de cúpula no Vaticano – recorda uma verdade que há cinquenta anos muitos querem esquecer: não há compromisso possível entre a Igreja e o mundo, porque o mundo odeia a Igreja e quer a sua destruição. A sentença também demonstra o fracasso da estratégia deste pontificado, que renunciou ao exercício da soberania da Igreja, confiando na benevolência do mundo.

Cardeal George Pell.
Cardeal George Pell.

A soberania da Igreja é expressa acima de tudo em sua lei canônica. A Igreja Católica enquanto sociedade visível é dotada de um direito, inclusive penal, que é o direito que Ela possui de punir os fiéis que cometeram violações à sua lei. O delito é uma violação externa da ordem jurídica da Igreja, distinto do pecado, que é uma violação da ordem moral.

Portanto, a Igreja, “por direito próprio e exclusivo”, tem o poder de julgar a violação das leis eclesiásticas e de sancionar crimes com penas canônicas (cânon 1402 §2). Entre os muitos crimes canônicos enumerados no Código, há a apostasia, a heresia e o cisma (cânon 1364), a communicatio in sacris [ou seja, a concelebração de sacramentos com hereges], a profanação das coisas sagradas (cânon 1376), além de uma série de violações graves do sexto mandamento (cânon 1395).

A distinção entre pecados e delitos não parece ser clara para o Papa Francisco, que proclama “tolerância zero” contra os crimes civis, como a pedofilia, mas invoca o “perdão” e a misericórdia para os “pecados da juventude”, como a homossexualidade, esquecendo a presença desse crime nas leis da Igreja.

Segundo as leis e o sentimento comum de grande parte dos países ocidentais, a pedofilia e o estupro são considerados um crime infame, mas não por causa da imoralidade do ato em si, mas pela violação que esses crimes implicam, respectivamente, dos direitos das crianças e das mulheres. Seguindo o exemplo dos Estados modernos, as autoridades eclesiásticas parecem ter desclassificado alguns pecados de atentados contra a moral em delitos contra a pessoa.

Nessa mesma linha de pensamento, o pecado não consistiria em violar a lei natural, mas em impedir com violência um indivíduo de seguir seus próprios instintos e tendências. Hoje, as autoridades do Vaticano tratam crimes como a sodomia como se fossem simples pecados particulares, limitando-se, nos casos ocorridos, a pedidos de expiação penitencial, sem aplicar as sanções penais exigidas pelos crimes.

Os únicos delitos reconhecidos como tais pela atual prática canônica são aqueles sancionados pelos Estados laicos, mas ainda no tocante a esse tipo de crimes, como o de pedofilia, as autoridades eclesiásticas se conformam hoje com as sentenças de culpa e de inocência dos processos nos tribunais estatais, renunciando a investigar e processar por conta própria, exceto quando tal se torna necessário para não perder a “credibilidade”, como aconteceu no “caso McCarrick”. Mas também a redução ao estado laical do cardeal Theodore McCarrick, como sublinhou Sandro Magister em recente artigo, é fruto de um processo não judicial, mas apenas administrativo (“Settimo Cielo”, 15 de fevereiro de 2019).

A Igreja, pelo contrário, tem o dever de abrir um processo criminal regular contra os acusados de abuso sexual, sem violar seus direitos fundamentais. De fato, não há apenas os direitos daqueles que afirmam serem vítimas, mas também os daqueles que são acusados ​​pelas vítimas.

Eles devem ser julgados de acordo com as normas do Direito Canônico, possivelmente antes do Estado, para se apurar a veracidade dos fatos. Uma vez que essa verdade tenha sido estabelecida, se eles forem considerados culpados, deverão ser submetidos às sanções corretas, mas se forem reconhecidos como inocentes, também deverão ser defendidos contra as autoridades civis dos Estados.

A Igreja, que é dotada de um direito penal e de tribunais, deve ter a coragem de desafiar o julgamento dos tribunais do mundo, na certeza de que não é o mundo que julga a Igreja, mas a Igreja que julga o mundo.

A crise moral da Igreja não se resolve com as chamadas melhores práticas – indicações práticas dadas pela Organização Mundial de Saúde, um corpo laico que promove a educação sexual e gostaria de incluir a contracepção e o aborto em todos os programas nacionais de planejamento familiar –, nem instituindo novas comissões ou forças-tarefa de “especialistas”, mas com uma visão sobrenatural, que infelizmente está totalmente ausente do discurso do Papa Francisco, que concluiu a cúpula do Vaticano em 24 de fevereiro passado.

As consequências são de que se ouve falar de uma maior sinodalidade das igrejas locais, “abertas” às contribuições do mundo secularizado, e da abolição do segredo pontifício em nome da “transparência”. A “cultura do segredo” é aquela denunciada por Frédéric Martel em seu recente panfleto tendente a “normalizar” a sodomia dentro da Igreja. Mas que segredo existe de mais impenetrável do que o segredo imposto aos sacerdotes pelo sacramento da confissão? Esta parece ser a próxima pedra que os inimigos da Igreja querem remover, para cuja obtenção o julgamento do Tribunal de Victoria [Austrália] parece ter preparado o caminho.

Na Austrália, no território de Canberra, adotou-se uma lei que torna processável o padre que não denunciar casos de abuso infantil, mesmo que tome conhecimento deles durante a confissão.

A lei – que aplica as recomendações da Royal Commission, uma comissão encarregada pelo governo australiano de ocupar-se dos abusos sexuais contra menores – foi aprovada em junho passado pela Assembleia Legislativa do território da capital australiana e estende a denúncia obrigatória de abusos contra menores também à Igreja e às suas atividades, incluindo o confessionário. Entre essas recomendações havia precisamente a ideia de tornar crime a não denúncia por um padre de perseguições e violências contra menores das quais ele tome conhecimento no exercício do Sacramento da Confissão (Acistampa, 29 de junho de 2017).

Enquanto isso, as Nações Unidas pediram à Itália para estabelecer uma “comissão independente e imparcial de inquérito para examinar todos os casos de abuso sexual de crianças por membros religiosos da Igreja Católica”, e “tornar obrigatória para todos, mesmo para os funcionários religiosos da Igreja Católica, a denúncia de qualquer caso de suposta violência contra menores às autoridades competentes do Estado”.

O pedido foi feito pelo Comitê da ONU para os Direitos da Infância e da Adolescência, com sede em Genebra. Por fim, solicitou-se a revisão das Concordatas nacionais (como o Tratado de Latrão com a Itália) na parte em que elas dispensam a hierarquia da obrigação de delatar. Na Itália, de acordo com a Nova Concordata de 1984, “a República italiana assegura que a autoridade judicial comunicará à autoridade eclesiástica competente pelo território do processo penal promovido contra os eclesiásticos” (Protocolo Adicional nº 2b).

Este princípio deve agora ser revertido, porque a ONU pede ao Vaticano para prestar total cooperação às autoridades civis que julgam os abusos nos vários países, fornecendo, por exemplo, todas as informações recolhidas pela Congregação para a Doutrina da Fé.

A questão da obrigatoriedade da denúncia às autoridades civis, sobre a qual o padre Lombardi afirmou que “é certo que se trata de uma questão abordada nesta reunião” (cúpula de 21 de fevereiro, n.d.r.), abre caminho para o pedido de violação do sacramento da confissão e do segredo pontifício. Outrora o Estado era o “braço secular” da Igreja, agora a Igreja se tornaria quase um “braço secular” do Estado.

Mas uma lei civil que quisesse impor a violação do sigilo confessional para alguns crimes, como a pedofilia, seria uma lei injusta, diante da qual os sacerdotes deveriam opor o seu “non possumus”, até o martírio. É este testemunho, e não outros, que tornaria a Igreja credível diante de Deus e do mundo. Contudo, cumpre reverter a relação que a Igreja tem há mais de cinquenta anos com o mundo secularizado e anticristão.

Um pasquim LGBT contra a Igreja.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 14 de fevereiro de 2019 | Tradução: Dies Irae – Um pasquim LGBT contra a Igreja. O título é Sodoma [No Armário do Vaticano, em Portugal] e o autor Frédéric Martel, um conhecido activista LGBT francês. O livro, no entanto, nasceu em Itália, durante uma conversa entre o autor e o editor Carlo Feltrinelli, filho de Gian Giacomo, o editor-terrorista que morreu a 14 de Março de 1972, enquanto colocava uma bomba numa treliça da Enel[1] em Segrate[2]Sodoma será apresentado nos próximos dias em oito idiomas e em vinte países.

O lançamento oficial ocorrerá no dia 21 de Fevereiro, coincidindo com a abertura da cimeira do Vaticano dedicada ao abuso sexual de menores. É, portanto, uma poderosa operação mediática que tem como alvo a Igreja Católica. O autor do livro, Frédéric Martel, apresentado pela imprensa com os títulos, de vez em quando diferentes, de sociólogo, investigador, historiador, alcançou uma certa popularidade com o seu mais recente ensaio, traduzido em várias línguas, Global Gay, dedicado à marcha triunfante de hoje do movimento gay em todo o mundo.

Envolvido directamente em inúmeras associações activas na difusão da agenda LGBT, Martel trabalha há anos na linha da frente no processo de promoção e “normalização” da homossexualidade. A “militância” LGBT do autor deSodoma levou-o a ser um dos principais promotores da lei n.º 99-944 de 15 de Novembro de 1999 (Dupacte civil de solidarité et du concubinage), o chamado PACS, que introduziu as uniões civis em França. Nos anos seguintes, o activista LGBT continuou a contribuir para a causa homossexual, dedicando numerosos artigos a favor da introdução do pseudo-casamento homossexual em França até à sua completa legalização, ocorrida a 18 de Maio de 2013.
Martel aborda agora a sodomia na Igreja, alegando ter realizado um inquérito sobre o tema, com duração de 4 anos, entrevistando cerca de 1500 pessoas no Vaticano e em vários países do mundo. Na realidade, o que falta no livro é precisamente a documentação. Nada sabemos, depois da sua leitura, para além do que já se sabia sobre a difusão da homossexualidade na Igreja.

Este gravíssimo problema, trazido à luz pelo testemunho do Arcebispo Carlo Maria Viganò, foi analisado cientificamente e documentado por dois estudiosos polacos, o P. Dario Oko e o P. Andrzej Kobyliński, autores de estudos que foram ignorados pela imprensa internacional. Mas Martel não procura a verdade, tem uma tese ideológica para provar e nas suas páginas não demonstra, mas sugere, insinua, calunia, denigre.

Monsenhor Battista Ricca, definido por Sandro Magister como «o prelado do lobby gay», abriu-lhe as portas do Vaticano. «Explica-me minuciosamente como passar o controlo dos gendarmes e, depois, dos guardas suíços. Encontrarei frequentemente este prelado de olhos líquidos, um atirador próximo de Francisco que conheceu a glória e a desgraça. Como veremos, é a ele que devo ter podido estar alojado numa das residências do Vaticano». O autor conta que se instalou em Roma uma semana por mês, «permanecendo regularmente dentro do Vaticano graças à hospitalidade de outros prelados que muitas vezes revelaram ser “da paróquia”[3]; “cerca de quarenta cardeais e centenas de bispos, monsenhores, padres e núncios (os embaixadores do Papa) aceitaram encontrar-se comigo. Entre estes, supostos homossexuais, presentes todos os dias no Vaticano, fizeram-me penetrar no seu mundo de insiders».

Entre os seus informadores está o P. Antonio Spadaro, «um jesuíta considerado como uma das eminências cinzentas do papa, com quem eu falava regularmente na sede da revista La Civiltà Cattolica, da qual é o director»Foi ele quem lhe explicou que «o cardeal Burke está à frente da oposição ao Papa». O cardeal Raymond Leo Burke, a quem Martel dedica um capítulo do seu livro, representa logicamente um dos seus alvos. A sua culpa? A de condenar categoricamente a homossexualidade.

A tese de Martel é que por trás de cada “homofóbico” esconde-se, na verdade, um homossexual, mas como nada desse tipo pode ser demonstrado contra o cardeal americano, o activista francês contenta-se com uma descrição minuciosa e caricatural do normalíssimo apartamento cardinalício. «O cardeal – escreve – evoca irresistivelmente, no seu modo de vestir e na sua forma de ser, uma drag-queen[4]». No entanto, admite Martel, «Burke é um dos poucos a ter a coragem das suas opiniões», como também o Arcebispo Viganò, que lhe aparece «como testemunha fiável e a sua carta irrefutável»; «parece-me, no entanto – acrescenta –, que o gesto de Viganò seja mais irracional e solitário do que se acreditava: um acto desesperado, uma vingança pessoal que é, antes de mais, fruto de uma profunda ferida interna».

De que coisa são culpados os clérigos homossexuais? Não de terem violado a lei moral, mas de serem hipócritas e não terem dado testemunho público do seu vício. «Que fique claro que para mim um padre ou um cardeal não deveria ter vergonha de ser homossexual; acho, pelo contrário, que deveria ser um possível status social entre tantos outros». Os homens da Igreja deveriam dizer: somos homossexuais e gabamo-nos disso; e a Igreja deveria dizer: errei ao condenar a homossexualidade.

Esta é a razão pela qual Martel é um defensor da “reforma” do Papa Francisco: «A renúncia de Bento XVI e a vontade de reforma do Papa Francisco contribuem para a liberdade de expressão». «Este papa latino é o primeiro a ter usado a palavra “gay” – e não apenas o termo “homossexual” – e pode ser considerado, comparando-o com os seus predecessores, como o mais “gay-friendly” entre os papas modernosTeve palavras mágicas e contorcidas sobre a homossexualidade: «Quem sou eu para julgar?». E pode-se também pensar que este Papa não tem sequer as tendências ou inclinações que foram atribuídas a quatro dos seus recentes predecessores. No entanto, Francisco é, hoje, o objecto de uma campanha violenta devido ao seu alegado liberalismo em questões de moralidade sexual, levada a cabo por cardeais conservadores que são muito homofóbicos – e, em grande parte, secretamente homofílicos».

«O que não tolera Francisco não é tanto a homofilia difundida, quanto a vertiginosa hipocrisia daqueles que apoiam uma moralidade austera apesar de terem um parceiro, das aventuras e, às vezes, até dos acompanhantes. Por esta razão, flagela incessantemente os falsos devotos, os fanáticos, os fariseus. Esta duplicidade, esta esquizofrenia, têm sido frequentemente denunciadas por Francisco nas suas homilias matinais em Santa Marta. A sua fórmula merece ser colocada em primeiro plano neste livro: «Por trás da rigidez, há sempre algo oculto; em muitos casos, uma vida dupla».

Martel, tal como o Papa Francisco, está convencido de que por trás de cada “homofóbico” existe um “homófilo”, um homem atraído, ou obcecado, pela homossexualidade, quer a pratique ou não. «Poder-se-ia também dizer que há uma regra não escrita que é quase sempre verdadeira em Sodoma: quanto mais um prelado é homofóbico, maior é a probabilidade de que ele mesmo seja homossexual». «Quanto mais um prelado é veemente contra os gays, mais forte é a sua obsessão homofóbica, mais é provável que ele não seja sincero e que a sua veemência nos esconda algo».

O propósito do livro? Derrubar a Bastilha da moral católica. «Cinquenta anos depois de Stonewall, a revolução gay dos Estados Unidos, o Vaticano é o último bastião a libertar! Muitos católicos já intuíram a mentira antes mesmo de lerem a descrição de Sodoma».

Os passos a seguir são: apoiar e encorajar a “reforma” bergogliana; desqualificar os homens da Igreja fiéis à Tradição; impedir que na Igreja se discuta a praga da homossexualidade, especialmente na próxima cimeira. Deve-se notar, no entanto, que o apoio LGBT ao Papa Francisco certamente não o ajudará na situação das graves dificuldades em que se encontra; os cardeais e os bispos demonizados no livro, sairão mais fortes depois deste ataque tão mal conduzido; e se os presidentes das Conferências Episcopais mundiais não lidarem com a questão da homossexualidade, aquele de 21 a 24 de Fevereiro será um encontro fracassado. Mas o que pode ser considerado um fiasco a partir deste momento é o pasquim de Frédéric Martel.

Roberto de Mattei  

A “Arca da fraternidade” e a caridade cristã.

Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 7 de fevereiro de 2019 | Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.comO logotipo da viagem do Papa Francisco aos Emirados Árabes Unidos mostra uma pomba com um ramo de oliveira. É uma imagem, explicou o Papa, “que nos traz à memória a narração do dilúvio primordial, presente em várias tradições religiosas. Segundo a narração bíblica, para preservar a humanidade da destruição, Deus pede a Noé para entrar na arca com a sua família. Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a arca de fraternidade”.

Segundo essa leitura, a Arca de Noé é uma arca da fraternidade na qual convivem homens de diferentes religiões, porque o próprio Deus queria o pluralismo religioso. Com efeito, acrescentou o Papa: “O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos”.

Essa interpretação parece deturpar a doutrina do Evangelho. Com efeito, a Arca, que por ordem divina Noé construiu antes do Dilúvio para seu refúgio, de seus familiares e de todas as espécies animais (Gn 6, 13-22), é apresentada por São Paulo como um refúgio de salvação para os crentes e um sinal de perdição para o mundo (Hebreus 11, 7).

Portanto, a Tradição Católica sempre viu na Arca de Noé o símbolo da Igreja, fora da qual não há salvação (cf. Santo Ambrósio, De Noe et Arca, 6. 9, in Migne, Patrologia Latina, vol. 14 , col. 368-374, e Hugo von Hurter, De arca Noe Ecclesiae typo Patrum sententiae, em Sanctorum Patrum opuscula selecta, III, Innsbruck 1868, pp. 217-233). É por isso que a Igreja tem a missão de preservar e difundir a fé católica.

Nosso Senhor disse aos Apóstolos: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado, será salvo, mas quem não crer será condenado” (Mc 16, 16). E o Apóstolo dos Gentios reafirma: “Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Ef 4, 5).

É o dogma da fé proclamado pelo IV Concílio de Latrão sob Inocêncio III: “Só há uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual não há salvação“.

O princípio “nulla salus extra Ecclesiam” não exclui da salvação aqueles que estão fora da Igreja devido a um erro invencível, mas estão orientados a Ela ao menos por um desejo implícito. No entanto, eles são privados da garantia da salvação e dos meios ordinários para alcançá-la.

Esta verdade da fé foi confirmada, entre outros, por Gregório XVI (Mirari Vos, de 15 de agosto de 1832); Pio IX (Singulari quidem, de 17 de março de 1856, aos bispos da Áustria); Leão XIII (Satis cognitum, de 29 de junho de 1896). Na Encíclica Mortalium animos, de 6 de janeiro de 1928, Pio XI explica, por sua vez, que no campo da fé não se pode chegar à unidade fraterna da mesma maneira que no campo político.

Subordinar a verdade da fé à fraternidade significa professar o indiferentismo religioso, condenado de maneira constante pelo Magistério universal da Igreja.

A “Fraternidade”, juntamente com a “Liberdade” e a “Igualdade”, é um dos princípios fundadores da Revolução Francesa. O trinômio revolucionário se reduz a um sistema de relações privado de qualquer princípio transcendente ao qual se referir, pelo que, considerado cada um dos três valores supremos como um absoluto, eles entram necessariamente em conflito um com os outros.

Carente de um fim superior, a fraternidade, em vez de ser um fator de coesão da sociedade, se torna a fonte de sua desintegração. Com efeito, se em nome da fraternidade os homens se virem forçados a uma convivência destituída de um objetivo que dê consistência ao affectio societatis, a “Arca” se torna uma prisão, e, por um impulso centrífugo, a fraternidade imposta no grito estará fadada a se dissolver na fragmentação e no caos.

A simples afirmação da convivência fraterna não é capaz de justificar o sacrifício, que é a mais alta expressão do amor ao próximo; e isto porque sacrifício significa renunciar a um bem real em nome de bens superiores; mas a fraternidade não propõe nenhum bem superior que seja digno de sacrifício, além da convivência, que não é um valor em si, mas apenas um fato, sem um sentido positivo ou negativo. O mito da fraternidade oculta de fato o mais profundo egoísmo social e representa a antítese da caridade cristã, o único fundamento verdadeiro das relações sociais entre os homens.

A Fraternidade também constitui um dogma da maçonaria, que em sua ideologia e seus rituais propõe uma paródia da doutrina e da liturgia cristã. Não foi por acaso que a Grande Loja da Espanha agradeceu ao Papa Francisco por sua Mensagem natalina de 2018 com o seguinte tweet: “Todos los masones del mundo se unen a la petición del Papa por  ‘la fraternidad entre personas de diversas religiones’” (Todos os maçons do mundo se unem ao pedido do papa de ‘fraternidade entre pessoas de diferentes religiões) (https://twitter.com/GranLogiaEspana/status/1082192984161038336).

 “Na sua mensagem de Natal do balcão central do Vaticano – continuam os maçons espanhóis – o Papa Francisco pediu o triunfo da fraternidade universal entre todos os seres humanos. Fraternidade entre pessoas de todas as nações e culturas. Fraternidade entre pessoas de ideias diferentes, mas capazes de se respeitarem e de ouvir o outro. Fraternidade entre pessoas de diferentes religiões. (…) As palavras do Papa demonstram o distanciamento atual da Igreja do conteúdo da Humanum genus (1884), a última grande condenação católica da maçonaria”.

Na realidade, a maçonaria continua a ser condenada pela Igreja, mesmo que os homens da Igreja, nos mais altos escalões, pareçam abraçar suas ideias. Mas o ensinamento do Divino Mestre continua a ressoar nos corações fiéis: ali o amor ao próximo só pode ser fundado no amor de Deus. E sem referência ao verdadeiro Deus, que só pode ser amado sobrenaturalmente dentro da Arca de Salvação da Igreja, a fraternidade é apenas uma palavra vazia que esconde o ódio a Deus e ao próximo.

Ousai, Monsenhor!

Um apelo da Fundação Lepanto.

VINTE E CINCO ANOS DEPOIS…

Por Fundação Lepanto | Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.com: Há vinte e cinco anos, em 8 de fevereiro de 1994, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução convidando os Estados europeus a promover e proteger legalmente a homossexualidade. No Angelus de 20 de Fevereiro de 1994, o Papa João Paulo II se dirigiu a opinião pública mundial, afirmando que “o que não é moralmente permissível é a aprovação legal da prática homossexual. (…) Com a resolução do Parlamento Europeu, quis-se legitimar uma desordem moral. O Parlamento conferiu indevidamente um valor institucional a comportamentos desviados, em desconformidade com o plano de Deus”.

Em maio daquele ano, o Centro Cultural Lepanto lançou em Estrasburgo, entre os deputados, um manifesto intitulado “Europa, em Estrasburgo representada ou traída”, no qual dirigiu um protesto indignado contra a promoção de um vício condenado pelos cristãos e pela  consciência ocidental e pediu a todos os Bispos europeus “para juntar as suas vozes à do Supremo Pastor, para multiplicar em suas próprias dioceses, para denunciar publicamente a culpa moral que tem manchado a assembleia europeia e colocar em alerta o seu rebanho sobre os crescentes ataques das forças anticristãs no mundo”.

Hoje, um após outro, os grandes Estados europeus, incluindo os de tradição católica mais antiga, elevaram a sodomia a direito legal, reconhecendo, em várias formas, o chamado “casamento gay” e introduzindo o crime de “homofobia”. Pastores da Igreja, que deveriam ter formado uma barragem de oposição à homossexualização da sociedade promovida pela classe política e pelas oligarquias financeiras e da mídia, ficam em silêncio. Mesmo nos níveis mais altos da Igreja, a prática da homossexualidade e da chamada cultura “gay-friendly”, que justifica e encoraja o vício homossexual, espalhou-se como um câncer.

Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Astana, no Cazaquistão, disse em uma mensagem datada de 28 de julho de 2018, que “estamos testemunhando um cenário incrível, em que alguns padres e até mesmo bispos e cardeais, sem corar, já oferecem grãos de incenso ao ídolo da homossexualidade ou à ideologia de gênero, com o aplauso dos poderosos deste mundo, isto é, com o aplauso de políticos, gigantes da mídia social e poderosas organizações internacionais”.

O arcebispo Carlo Maria Viganò, em seu depoimento histórico de 22 de agosto de 2018, denunciou – utilizando nomes e circunstâncias necessárias – a existência de uma “horda homossexual que subverte a doutrina católica em relação à homossexualidade” e a presença de “redes de homossexuais, que agora são comuns em muitas dioceses, seminários, Ordens religiosas, etc.”  que “agem às escondidas, em sigilo, e se encontram com o poder de tentáculos de polvo, a estrangular as vítimas inocentes e as vocações sacerdotais, que acabam estrangulando a Igreja inteira”.

Essas vozes corajosas permanecem isoladas até hoje. O clima de indiferença e encobrimento que reina dentro da Igreja tem profundas raízes morais e doutrinárias que datam do Concílio Vaticano II, quando as hierarquias eclesiásticas aceitaram o processo de secularização como um fenômeno irreversível. Mas quando a Igreja se submete ao secularismo, o Reino de Cristo torna-se conformado a este mundo e é reduzido a uma mera estrutura de poder. O espírito militante se dissipa e a Igreja, ao invés de converter o mundo à lei do Evangelho, entrega o Evangelho às exigências do mundo.

Quanto tempo para ouvir ressoando mais uma vez as palavras de fogo de um novo São Pedro Damião ou São Bernardino de Siena, em vez da frase do Papa Francisco – “Se uma pessoa é gay e está buscando o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?” Se é verdade que o significado dessa declaração foi distorcido pela mídia, tal abuso deveria ter sido combatido por meio de documentos claros e solenes condenando a sodomia, como o fez São Pio V com as duas constituições Cum Primumd, de 1º de abril de 1566, e Horrendum Illud Scelus, de 30 de agosto de 1568. Em vez disso, a Exortação Apostólica pós-sinodal do Papa Francisco Amoris Laetitia, de 8 de abril de 2016, não só calou sobre essa grave desordem moral, mas relativizou os preceitos da lei natural, abrindo o caminho para a aprovação da coabitação e do adultério.

E é por isso que agora lhe fazemos um apelo, Monsenhor.

SERVIR A IGREJA

O termo “Monsenhor” evoca certa dignidade, não um poder ou uma função burocrática. Cada um dos bispos, como Sucessores dos Apóstolos, é reconhecido com o título de “Monsenhor”, mas os simples sacerdotes também podem receber esse título. A palavra “dignidade” parece ter perdido seu significado hoje, apesar do fato de que houve uma declaração inteira do Vaticano II dedicada a ela. Dignidade significa a consciência de um papel e missão dados por Deus. O respeito pela dignidade de uma pessoa é a fonte do sentimento de honra. Sua dignidade, Monsenhor, deriva da honra que o senhor tem de servir a Igreja, sem buscar seus próprios interesses ou a aprovação dos poderosos. A dignidade de Monsenhor o senhor a recebeu da Igreja, e não dos homens da Igreja, e é à Igreja que o senhor deve prestar contas. A Igreja é a sociedade divina fundada por Jesus Cristo, sempre perfeita e sempre vitoriosa, tanto no tempo como na eternidade. Os homens da Igreja podem servir a Igreja ou traí-la. Servir a Igreja significa colocar os interesses d’Ela, que são os de Jesus Cristo, à frente dos interesses pessoais. Trair a Igreja significa colocar os interesses de uma família, de um instituto religioso ou de uma autoridade eclesiástica como pessoa privada por cima da Verdade da Igreja, que é a Verdade de Jesus Cristo, o único Caminho, a Verdade e a Vida. (João 14:6).

Estaríamos insultando sua inteligência, Monsenhor, se não supusermos sua ciência da crise na Igreja. Certos cardeais eminentes manifestaram em diversas ocasiões seu desconforto e preocupação com o que está acontecendo na Igreja. O mesmo mal-estar é demonstrado pelo homem comum, profundamente desorientado pelos novos paradigmas religiosos e morais. Diante desse mal-estar, Monsenhor, muitas vezes o senhor ergueu os braços, procurando acalmar seu interlocutor, usando palavras como: “Não há nada que possamos fazer além de ficar em silêncio e orar. O Papa não é imortal. Vamos esperar pelo próximo conclave.” É tudo o que podemos fazer – o senhor nos diz. Nós não podemos falar; nós não podemos agir. O senhor adotou o silêncio como regra suprema do seu comportamento. Não estará influindo nessa atitude o servilismo, o egoísmo de quem procura acima de tudo viver calmamente ou o oportunismo daqueles que conseguem adaptar-se com sucesso a todas as situações? Afirmá-lo seria fazer um julgamento sobre suas intenções, e um julgamento sobre intenções não pode ser feito por homens; somente Deus pode fazê-lo no Dia do Juízo, quando cada um de nós permanecerá sozinho diante d’Ele para ouvir Seus lábios pronunciarem a sentença inapelável que nos enviará para a felicidade eterna ou para a eterna condenação.

Nós, que vivemos na Terra, só podemos julgar fatos e palavras, tais como eles aparecem objetivamente. E as palavras com que o senhor explica o seu comportamento, Monsenhor, parecem por vezes mais nobres do que seus verdadeiros sentimentos: “Devemos seguir o Papa, mesmo quando ele nos desagrada, porque ele é a rocha sobre a qual Cristo fundou a Sua Igreja”, ou “devemos evitar um cisma a qualquer custo, porque este seria o desastre mais sério para a Igreja”.

Palavras nobres, porque afirmam verdades. É verdade que o Papa é o fundamento da Igreja e que a Igreja não pode temer nada pior do que um cisma. Mas o que gostaríamos que Monsenhor refletisse é que o caminho do silêncio absoluto que o senhor quer seguir trará maiores danos ao papado e apressará um cisma na Igreja.

É verdade que o Papa é o fundamento da Igreja, mas antes do que nele, a Igreja é fundada em Jesus Cristo. Jesus Cristo é o fundamento primário e divino da Igreja, enquanto Pedro é o fundamento secundário e humano – mesmo que seja verdade que ele é divinamente auxiliado. A assistência divina não exclui a possibilidade de erro ou a possibilidade de pecado. Na história da Igreja não faltaram papas que pecaram ou erraram, sem que isso prejudicasse a instituição do papado. Dizer que “é preciso sempre seguir o Papa e nunca afastar-se dele” enquanto se recusa a corrigi-lo respeitosamente em casos excepcionais, significa atribuir à Igreja todos os erros que ao longo dos séculos têm sido feitos pelos homens da Igreja. A ausência dessa distinção entre a Igreja e os homens da Igreja permite que os inimigos da Igreja a ataquem, e que muitos falsos amigos da Igreja se recusem a servi-la verdadeiramente.

Igualmente carregada de consequências é a afirmação de que romper o silêncio, dizer a verdade e denunciar – se necessário – a infidelidade do próprio Supremo Pastor levaria a um cisma. A palavra “cisma” significa divisão, e nunca neste momento de sua história a Igreja apareceu tão dividida e fragmentada internamente. Dentro de cada nação, dentro de cada diocese, mesmo dentro de cada paróquia, é impossível chegar a um acordo sobre uma maneira comum de viver segundo o Evangelho, porque cada um experimenta e vive um cristianismo de modo diferente – tanto litúrgica quanto dogmaticamente –, construindo cada um sua própria religião, de tal maneira que a única coisa que permanece em comum é o nome “católico”, mas a essência do catolicismo não está mais presente. Quais são as razões para essa fragmentação? A estrela que ilumina o caminho desapareceu, e os fiéis fazem o seu percurso na escuridão da noite, seguindo opiniões pessoais e sentimentos sem uma só voz que os lembre de quais são a doutrina e a práxis imutáveis da Igreja. O cisma está sendo causado pela escuridão, que é filha do silêncio. Só vozes claras, vozes cristalinas, vozes totalmente fiéis à tradição, são capazes de dissipar as sombras e permitir que bons católicos superem as divisões provocadas por este pontificado, e para evitar à Igreja novas humilhações além daquelas que já lhe foram infligidas pelo Papa Francisco. Existe apenas uma maneira de salvar a Igreja do cisma: Proclamem a Verdade. Permanecendo em silêncio, apenas aprofundaremos o cisma.

UM APELO URGENTE

Monsenhor, o senhor que goza de certa dignidade, que exerce uma autoridade moral, que recebeu uma herança, do quê tem medo? O mundo pode atacá-lo com difamações e injúrias. Seus superiores podem privá-lo de sua autoridade e dignidade externa. Mas é ao Senhor que deve prestar contas, como deverá cada um de nós no Dia do Juízo, quando tudo será pesado e julgado segundo a medida. Não nos pergunte o que o senhor deve fazer concretamente. Se o senhor tiver a coragem de falar, o Espírito Santo não deixará de sugerir à sua consciência momentos, caminhos e tons para vir a público, a fim de ser “a luz do mundo, a cidade situada em uma colina, uma lâmpada colocada num candelabro” (Mateus 5: 13-16).

O que nós lhe pedimos, Monsenhor, é que assuma uma atitude crítica filial, de resistência respeitosa, de devota separação moral daqueles responsáveis pela autodestruição da Igreja. Ouse encorajar abertamente os que defendem internamente a Igreja e professam de público a Verdade inteira da Fé Católica. Ouse procurar outros que se juntem ao senhor e a nós para emitir o brado de guerra e amor levantado por São Luís de Grignion de Montfort em sua “Oração Abrasada” com as palavras proféticas: “Fogo! Fogo! Fogo! Fogo na Casa de Deus! Fogo nas almas! Fogo até mesmo no Santuário!”.

Línguas de fogo como aquelas do dia de Pentecostes, assim como flashes de fogo como aqueles do Inferno, parecem se abater sobre a terra. Um fogo destruidor, um fogo purificador; um fogo restaurador, destinado a abarcar o mundo todo, a consumi-lo e transformá-lo. Que se acenda dentro de nós o fogo divino antes que o faça o fogo da ira de Deus, que reduzirá nossa sociedade a cinzas, como aconteceu com Sodoma e Gomorra. E esta é a razão pela qual, vinte e cinco anos depois da infeliz resolução do Parlamento Europeu, vos faço agora este apelo, pelo bem das almas, a honra da Igreja e a salvação da sociedade.

Monsenhor, por favor, aceite este apelo, que é também uma invocação à Santíssima Virgem e aos Anjos para que intervenham o quanto antes a fim de salvar a Igreja e o mundo inteiro.

Monsenhor, assuma com coragem essa causa santa em 2019, e nos encontrará batalhando ao seu lado nessa boa luta!

Roberto de Mattei – Presidente da Fundação Lepanto

Escrito aos pés da Manjedoura, neste primeiro sábado de janeiro de 2019, Vigília da Epifania do Senhor.