Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho – um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.
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Uma Missa ecumênica?
Quando, a 5 de Novembro [ndr: na primeira sessão do Concílio], foram retomados os debates conciliares, um dos vinte e quatro oradores que tomaram a palavra foi Mons. Duschak[1], bispo titular de Abida e vigário apostólico de Calapan, nas Filipinas, mas alemão de nascimento, que defendeu a necessidade de uma “Missa ecumênica” decalcada na Última Ceia[2].

“Cristo celebrou a primeira Missa diante dos Apóstolos — voltado para o povo, seguindo o costume então vigente durante as ceias. Cristo falou em voz alta, de maneira que todos, por assim dizer, ouvissem o Cânone desta primeira Missa. Cristo serviu-se da língua falada, para que todos O compreendessem sem qualquer dificuldade, a Ele e às palavras que disse. Nas palavras “fazei isto”, de acordo com o seu significado completo, parece estar contido o preceito de celebrar a Missa como uma ceia, de frente, ou pelo menos em voz alta, e numa língua que os comensais compreendam.”
Mons. Duschak convidava pois:
“a uma colaboração entre os especialistas de todos os ritos e das Igrejas que conservam a fé na eucaristia; para se compor uma Missa que se possa chamar verdadeiramente ecumênica ou “Missa do mundo”, e com ela a tão desejada unidade, pelo menos na memória eucarística do Senhor. O povo de Deus gozaria assim da participação perfeita e íntima de que gozaram os Apostolos na Última Ceia.”[3]
À tarde, Mons. Duschak explicou a sua intervenção aos jornalistas, salientando que a sua ideia consistia em “introduzir uma Missa ecumênica, despojada, na medida do possível, das superestruturas históricas, baseadas na essência do Santo Sacrifício e firmemente radicada na Sagrada Escritura”[4]. O Prelado chegava ao ponto de pretender alterar as palavras tradicionais do Cânone: “Se os homens dos séculos passados puderam escolher e inventar os ritos da Missa, por que não pode o maior de todos os concílios fazer a mesma coisa? Por que não havemos de decretar a elaboração de uma fórmula da Missa, adaptada ao homem moderno, para corresponder, com toda a reverência, aos desejos deste?”[5] Toda a Missa, insistia Duschak, devia ser celebrada em voz alta, em língua vernácula, e voltada para o povo. Estas propostas, que na altura pareceram radicais, seriam postas em prática ainda antes do encerramento do Concílio.
Mas as réplicas não faltaram. Ao Cardeal Döpfner, que tinha afirmado que era necessário introduzir as línguas vernáculas também porque os candidatos ao sacerdócio, formados nas escolas públicas, já não sabiam latim, respondeu Mons. Carli salientando que os referidos candidatos também não conheciam a filosofia e a teologia cristã e ninguém se lembrava de os ordenar antes de terem completado os seus estudos nestas matérias[6].
Estava-se em presença de um confronto entre a Cúria Romana e algumas conferências episcopais, sobretudo a francesa e a alemã, apoiadas por determinados bispos dos países do Terceiro Mundo, como Mons. D’Souza que, nas suas intervenções de 27 de Outubro e 7 de Novembro de 1962[7], solicitou que se atribuísse às conferências episcopais o direito de escolherem a língua em que queriam fazer o rito, mas também o direito “de adaptarem a liturgia dos Sacramentos”[8]; e Mons. Bekkers[9], que afirmou que apenas “o núcleo sacramental fundamental de todos os sacramentos” tinha de ser “universal”, “mas que, para uma celebração mais evoluída e mais ampla deste núcleo sacramental, seja concedida uma amplíssima liberdade, de cujos limites apenas a conferência de bispos de cada povo pode julgar adequada, contanto que os actos sejam aprovados pela Santa Sé”[10].
Para o partido anti-romano, o latim era o instrumento de que a Cúria se servia para exercer o seu poder. Enquanto o latim fosse a única língua da Igreja, Roma teria competência para controlar e verificar os ritos; se, porém, se introduzissem na liturgia centenas de línguas e costumes e línguas locais, a Cúria perderia automaticamente as suas prerrogativas e as conferências episcopais passariam a ser os juízes desta matéria. “Era precisamente neste ponto que insistia a maioria que começava a perfilar-se, e que pretendia que as conferências episcopais fossem autorizadas a tomar determinadas decisões importantes em matéria de usos litúrgicos”, sublinha Wiltgen[11].
A aliança progressista recebeu na aula o apoio de um numeroso grupo de bispos da América Latina, chefiados pelo Cardeal Silva Henriquez, arcebispo de Santiago do Chile; estes Padres, recorda ainda Wiltgen, manifestavam o seu reconhecimento pelas importantes ajudas financeiras que tinham recebido durante os últimos anos do Cardeal Frings de Colônia, através das Associações Misereor e Adveniat: “Um número significativo daqueles aproveitaram a ocasião do Concílio para fazer uma visita ao Cardeal Frings, e agradecer-lhe pessoalmente, vieram a encontrar-se envolvidos na aliança.”[12]
O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, Roberto de Mattei, Ed. Caminhos Romanos, 2012, p. 214-216.
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[1] Wilhelm Josef Duschak (1903-1997), alemão, da Sociedade do Verbo Divino, ordenado em 1930, bispo de Abida (1951) e vigário apostólico em Calapan (Filipinas) entre 1951 e 1973.
[2] AS, I/1, pp. 109-112.
[3] Ibid, pp. 111-112.
[4] WILTGEN, P. 37.
[5] Ibid, p. 38.
[6] AS, I/2, PP. 398-399.
[7] AS I/2, pp. 497-499 e AS, I/2, pp. 317-319.
[8] AS I/2, p. 318. “Seria óptimo que o poder se alargasse a todo o rito e ao uso da língua falada. É isto que esperamos do Concílio porque é realmente necessário a sua actuação” (ibid.).
[9] Wilhelm Marinus Bekkers (1908-1966), holandês, ordenado em 1933, bispo coadjutor em 1956 e depois bispo de Bois-le-Duc até a morte. O seu funeral foi uma espécie de manifestação pública da corrente ultraprogressista holandesa (Actes et Acteurs, p. 372).
[10] AS I/1, pp. 313-314.
[11] WILTGEN, p. 42.
[12] Ibid., p. 53
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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.
Onde encontrar:
Em Portugal – Nas maiores livrarias do país. Em Lisboa, nas livrarias Fnac e Férin (próxima ao Chiado, centro histórico). Em Porto, pelos telefones 936364150 e 911984862.
No Brasil –– Nas livrarias Loyola, da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, e Lumen Christi, do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Pela internet, na Livraria Petrus e Editora Ecclesiae.
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Artigos da série:
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O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (IV): Dissolvendo Roma. Com Roma.
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O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (III): Os ‘vota’ dos Padres conciliares.
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