O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (V): A gênese do Missal de Paulo VI nas aulas conciliares.

Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho –  um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.

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Uma Missa ecumênica?

Quando, a 5 de Novembro [ndr: na primeira sessão do Concílio], foram retomados os debates conciliares, um dos vinte e quatro oradores que tomaram a palavra foi Mons. Duschak[1], bispo titular de Abida e vigário apostólico de Calapan, nas Filipinas, mas alemão de nascimento, que defendeu a necessidade de uma “Missa ecumênica” decalcada na Última Ceia[2].

Missa Solene Coram Episcopo celebrada (versus populum) durante a Oitava Semana Litúrgica Nacional em Portland,1947.
Missa Solene Coram Episcopo celebrada (versus populum) durante a Oitava Semana Litúrgica Nacional em Portland, EUA, 1947.

Cristo celebrou a primeira Missa diante dos Apóstolos — voltado para o povo, seguindo o costume então vigente durante as ceias. Cristo  falou em voz alta, de maneira que todos, por assim dizer, ouvissem o Cânone desta primeira Missa. Cristo serviu-se da língua falada, para que todos O compreendessem sem qualquer dificuldade, a Ele e às palavras que disse. Nas palavras “fazei isto”, de acordo com o seu significado completo, parece estar contido o preceito de celebrar a Missa como uma ceia, de frente, ou pelo menos em voz alta, e numa língua que os comensais compreendam.”

Mons. Duschak convidava pois:

a uma colaboração entre os especialistas de todos os ritos e das Igrejas que conservam a fé na eucaristia; para se compor uma Missa que se possa chamar verdadeiramente ecumênica ou “Missa do mundo”, e com ela a tão desejada unidade, pelo menos na memória eucarística do Senhor. O povo de Deus gozaria assim da participação perfeita e íntima de que gozaram os Apostolos na Última Ceia.”[3]

À tarde, Mons. Duschak explicou a sua intervenção aos jornalistas, salientando que a sua ideia consistia em “introduzir uma Missa ecumênica, despojada, na medida do possível, das superestruturas históricas, baseadas na essência do Santo Sacrifício e firmemente radicada na Sagrada Escritura”[4]. O Prelado chegava ao ponto de pretender alterar as palavras tradicionais do Cânone: “Se os homens dos séculos passados puderam escolher e inventar os ritos da Missa, por que não pode o maior de todos os concílios  fazer a mesma coisa? Por que não havemos de decretar a elaboração de uma fórmula da Missa, adaptada ao homem moderno, para corresponder, com toda a reverência, aos desejos deste?”[5] Toda a Missa, insistia Duschak, devia ser celebrada em voz alta, em língua vernácula, e voltada para o povo. Estas propostas, que na altura pareceram radicais, seriam postas em prática ainda antes do encerramento do Concílio.

Mas as réplicas não faltaram. Ao Cardeal Döpfner, que tinha afirmado que era necessário introduzir as línguas vernáculas também porque os candidatos ao sacerdócio, formados nas escolas públicas, já não sabiam latim, respondeu Mons. Carli salientando que os referidos candidatos também não conheciam a filosofia e a teologia cristã e ninguém se lembrava de os ordenar antes de terem completado os seus estudos nestas matérias[6].

Estava-se em presença de um confronto entre a Cúria Romana e algumas conferências episcopais, sobretudo a francesa e a alemã, apoiadas por determinados bispos dos países do Terceiro Mundo, como Mons. D’Souza que, nas suas intervenções de 27 de Outubro e 7 de Novembro de 1962[7], solicitou que se atribuísse às conferências episcopais o direito de escolherem a língua em que queriam fazer o rito, mas também o direito “de adaptarem a liturgia dos Sacramentos”[8]; e Mons. Bekkers[9], que afirmou que apenas “o núcleo sacramental fundamental de todos os sacramentos” tinha de ser “universal”, “mas que, para uma celebração mais evoluída e mais ampla deste núcleo sacramental, seja concedida uma amplíssima liberdade, de cujos limites apenas a conferência de bispos de cada povo pode julgar adequada, contanto que os actos sejam aprovados pela Santa Sé”[10].

Para o partido anti-romano, o latim era o instrumento de que a Cúria se servia para exercer o seu poder. Enquanto o latim fosse a única língua da Igreja, Roma teria competência para controlar e verificar os ritos; se, porém, se introduzissem na liturgia centenas de línguas e costumes e línguas locais, a Cúria perderia automaticamente as suas prerrogativas e as conferências episcopais passariam a ser os juízes desta matéria. “Era precisamente neste ponto que insistia a maioria que começava a perfilar-se, e que pretendia que as conferências episcopais fossem autorizadas a tomar determinadas decisões importantes em matéria de usos litúrgicos”, sublinha Wiltgen[11].

A aliança progressista recebeu na aula o apoio de um numeroso grupo de bispos da América Latina, chefiados pelo Cardeal Silva Henriquez, arcebispo de Santiago do Chile; estes Padres, recorda ainda Wiltgen, manifestavam o seu reconhecimento pelas importantes ajudas financeiras que tinham recebido durante os últimos anos do Cardeal Frings de Colônia, através das Associações Misereor e Adveniat: “Um número significativo daqueles aproveitaram a ocasião do Concílio para fazer uma visita ao Cardeal Frings, e agradecer-lhe pessoalmente, vieram a encontrar-se envolvidos na aliança.”[12]

O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, Roberto de Mattei, Ed. Caminhos Romanos, 2012, p. 214-216.

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[1] Wilhelm Josef Duschak (1903-1997), alemão, da Sociedade do Verbo Divino, ordenado em 1930, bispo de Abida (1951) e vigário apostólico em Calapan (Filipinas) entre 1951 e 1973.

[2] AS, I/1, pp. 109-112.

[3] Ibid, pp. 111-112.

[4] WILTGEN, P. 37.

[5] Ibid, p. 38.

[6]  AS, I/2, PP. 398-399.

[7] AS I/2, pp. 497-499 e AS, I/2, pp. 317-319.

[8] AS I/2, p. 318. “Seria óptimo que o poder se alargasse a todo o rito e ao uso da língua falada. É isto que esperamos do Concílio porque é realmente necessário a sua actuação” (ibid.).

[9] Wilhelm Marinus Bekkers (1908-1966), holandês, ordenado em 1933, bispo coadjutor em 1956 e depois bispo de Bois-le-Duc até a morte. O seu funeral foi uma espécie de manifestação pública da corrente ultraprogressista holandesa (Actes et Acteurs, p. 372).

[10] AS I/1, pp. 313-314.

[11] WILTGEN, p. 42.

[12] Ibid., p. 53

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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Onde encontrar:

Em Portugal – Nas maiores livrarias do país. Em Lisboa, nas livrarias Fnac e Férin (próxima ao Chiado, centro histórico). Em Porto, pelos telefones 936364150 e 911984862.

No Brasil –– Nas livrarias Loyola, da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, e Lumen Christi, do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Pela internet, na Livraria Petrus e Editora Ecclesiae.

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O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (IV): Dissolvendo Roma. Com Roma.

Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega agora ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho —  um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.

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Ernesto Buonaiuti, modernista excomungado em 1925, foi companheiro de seminário de Angelo Roncalli, tendo, inclusive, a honra de ser seu "padrinho", ao ser convidado para acompanhar o futuro Papa João XXIII na concelebração durante sua ordenação sacerdotal.
Ernesto Buonaiuti foi companheiro de seminário de Angelo Roncalli, tendo, inclusive, a honra de ser seu “padrinho”, ao ser convidado pelo futuro Papa João XXIII para acompanhá-lo na concelebração durante sua ordenação sacerdotal. Mesmo excomungado por modernismo em 1925, Buonaiuti declarou-se até a morte um “filho da Igreja”.

Em face da condenação da Pascendi, a atitude dos modernistas foi análoga à dos jansenistas na sequência da condenação das proposições de Jansénio e da bula Unigenitus, de 1713: negaram reconhecer-se nas proposições condenadas, afirmando que o modernismo condenado na encíclica era uma quimera [1].

Um testemunho “de dentro” é o do ex-beneditino francês Albert Houtin, que relata que o plano do modernismo previa que os inovadores não saíssem da Igreja, nem sequer no caso de perderem a fé, mas nela permanecessem o mais tempo possível a fim de propagarem as suas ideias [2]. “Era neste sentido que em 1903 se concordava em dizer, e que ainda em 1911 se escrevia,  que um modernista a sério, fosse leigo ou sacerdote, não podia abandonar a Igreja ou a batina, porque se o fizesse deixaria de ser modernista no sentido mais elevado do termo [3]”; “A par da Delenda Carthago, pretendia-se praticar a Dissovenda [4]”.

Até hoje”, explicava, por sua vez, Ernesto Buonaiuti, “pretendeu-se reformar Roma sem Roma ou talvez até contra Roma. Ora, é necessário reformar Roma com Roma; fazer com que a reforma passe pelas mãos daqueles que têm de ser reformados. É este o método verdadeiro e infalível; mas é difícil. Hic opus, hic labor [5]”. O modernismo propunha-se, pois, transformar o catolicismo a partir de dentro, deixando intacto, nos limites do possível, o invólucro exterior da Igreja. Prossegue Buonaiuti: “O culto exterior permanecerá para sempre, tal como a hierarquia; mas a Igreja, enquanto mestra dos sacramentos e da respectiva ordem, modificará a hierarquia e o culto de acordo com os tempos: aquela tornar-se-á mais simples, mais liberal, e este tornar-se-á mais espiritual. Por sua via, a Igreja transformar-se-á num protestantismo, mas será um protestantismo ortodoxo e gradual, e já não um protestantismo violento, agressivo, revolucionário, insubordinado; será um protestantismo que não destruirá a continuidade apostólica do ministério eclesiástico, nem a própria essência do culto.”

O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, Roberto de Mattei, Ed. Caminhos Romanos, 2012, p. 67.


[1] Buonaiuti aceita o paralelo e fala de “uma certa correspondência íntima que, num exame objetivo, faz aparecer estes dois movimentos como mais idealmente coligados do que poderia parecer à primeira vista” (E. Buonaiuti, Storia del cristianesimo, Dall’ Oglio, Milão, 1943, vol. III, p. 617).

[2] Cf. Albert Houstin (1867-1926), Historie du Modernisme catholique, in proprio, Paris, 1913, PP. 116-117.

[3] Ibid, p. 122

[4] Ibid, p. 116

[5] Cf. E. Buonaiuti, Il modernismo cattolico, Guanda, Modena, p 128.

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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Onde encontrar:

Em Portugal – Nas maiores livrarias do país. Em Lisboa, nas livrarias Fnac e Férin (próxima ao Chiado, centro histórico). Em Porto, pelos telefones 936364150 e 911984862.

No Brasil –– Nas livrarias Loyola, da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, e Lumen Christi, do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Pela internet, na Livraria Petrus e Editora Ecclesiae.

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O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (III): Os ‘vota’ dos Padres conciliares.

Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega agora ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho que é um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.

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Como os “cahiers de doléance” da Revolução Francesa.

Bispos no Vaticano II.
Bispos no Vaticano II.

No verão de 1959, chegaram a Roma, sob a forma de vota, as respostas dos bispos, dos superiores das ordens religiosas e das universidades católicas à solicitação de pareceres do Cardeal Tardini [então Secretário de Estado]. O apuramento do imenso material foi iniciado no mês de Setembro e ficou concluído em finais de Janeiro de 1960. As cerca de três mil cartas constituíram a matéria dos oito volumes de Acta et documenta concilio Vaticano II apparando” [1].

Uma análise atenta deste material permite hoje ao historiador — como permitiu então ao Papa, à Cúria e à Comissão Preparatória — obter um quadro dos desiderata do episcopado mundial nas vésperas do Concílio.

As solicitações dos futuros Padres conciliares, consideradas no seu conjunto, não exprimem o desejo de uma radical reviravolta, e ainda menos de uma “Revolução” no interior da Igreja [2]. Se é certo que as tendências anti-romanas de alguns episcopados afloram claramente em respostas como a do Cardeal Alfrink [3], arcebispo de Utrecht, de uma maneira geral os auspícios dos Padres são de uma “reforma” moderada, na linha da tradição. A maioria dos vota solicitava uma condenação dos males modernos, internos e externos à Igreja, sobretudo do comunismo, bem como novas definições doutrinais, nomeadamente a respeito da Bem-Aventurada Virgem Maria. Nos vota do episcopado britânico, por exemplo, está presente a denúncia dos males da sociedade contemporânea, mas não se encontram aí instâncias de uma reforma radical [4]; e mesmo entre bispos franceses, considerados dos mais progressistas, muitos pediam a condenação do marxismo ou do comunismo, e uma minoria consistente pedia a definição do dogma da mediação de Maria [5]. Quanto aos bispos belgas, Claude Soetens, que analisou os respectivos vota, sublinha ‹‹ o caráter assaz decepcionante ›› das propostas, ‹‹ que eram pouco susceptíveis de provocar uma verdadeira renovação eclesial ››, confirmando a impressão de quantos salientaram a diferença entre as respostas dos bispos à consulta de 1959 e as atitudes por eles posteriormente assumidas durante o Concílio [6].

Os bispos italianos, que eram os mais numerosos, queriam que o Concílio proclamasse o dogma da ‹‹ mediação universal da Bem-Aventurada Virgem Maria ›› [7]; o segundo dogma cuja definição pediam era o da Realeza de Cristo, para ser contraposto ao laicismo dominante [8]. Muitos pediam ainda ao Concílio a condenação de erros doutrinais: 91 queriam ver reiteradas a condenação do comunismo, 57 exprimiam-se contra o existencialismo ateu, 47 contra o relativismo moral, 31 contra o materialismo, 24 contra o modernismo [9]. ‹‹ Nas milhares de cartas chegadas a Roma e enviadas de todo o mundo, o comunismo era referido como o erro mais grave que o Concílio deveria condenar. Eram 286 bispos que a ele se referiam. Para além das numerosas referências ao socialismo, ao materialismo e ao ateísmo  ››, refere Giovanni Turbanti [10].

No Relatório sintético, que enuncia os vota dos bispos por nações e foi elaborado pela Secretaria-Geral das Comissões Preparatórias, o comunismo também figura como o primeiro erro que o Concílio deveria condenar [11].

É interessante fazer uma analogia entre os vota dos Padres conciliares e os Cahiers de doléance redigidos em França com vista aos Estados Gerais de 1789. Antes da Revolução Francesa, nenhum destes cahiers se propunha subverter as bases do Ancien Régime, nomeadamente a monarquia e a Igreja. ‹‹ Nenhum Cahier foi redigido como se os Estados Gerais devessem ter como objectivo anular todo o poder pré-existente e criá-lo ou recriá-lo ex-novo  ››, sublinha o historiador Armando Saitta [12]. Aquilo que se pedia era uma moderada reforma das instituições e não a subversão das mesmas, como inesperadamente aconteceu quando os Estados Gerais se reuniram. Também no caso do Vaticano II, conclui o Padre O’Malley, ‹‹ em geral, as respostas vinham pedir um reforço do status quo, uma condenação dos males modernos, quer no interior, quer no exterior da Igreja, e outras definições doutrinais, em especial relacionadas à Virgem Maria›› [13].

O Concilio não atendeu às solicitações presentes nos vota dos Padres Conciliares, optando por secundar as reivindicações de uma minoria que conseguiu, desde o princípio, digirir a assembléia e orientar as suas decisões. Esta é a conclusão irrefutável da análise dos factos históricos.

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[1] Os votos foram coligidos em Acta et documenta Concilio Oecumenico Vaticano II apparando — Series I (Antepraeparatoria), cit.. Em 2594 futuros Padres Conciliares, responderam 1988, ou seja, 77% (cf. E. FOUILLOUX), ‹‹ La fase ante-preparatoria (1959-1960) ››, cit., pp. 112-113).

[2] Para uma análise global dos vota veja-se À la veille du Concile Vatican II, cit., bem como Le deuxième Concile du Vatican, pp. 101-177. Para os prelados italianos, cf. MAURO VELATI, ‹‹ I consila et vota dei vescovi italiani ››, in À la veille du Concile Vatican II, cit., pp. 83-97; ROBERTO MOROZZO DELLA ROCCA, ‹‹ I “voti” dei vescovi italiani per il Concilio ›› , in Le deuxième Concile du Vatican, pp. 119-137.

[3] AD, I-II, pp. 509-516. Bernard Jan Alfrink (1900-1987), holandês, ordenado em 1924, arcebispo de Utrecht a partir de 1955, feito cardeal em 1960, membro da Comissão Preparatória e do Conselho dos Presidentes, Cf. FABRIZIO DE SANTIS, Alfrink, il cardinale d’Olanda, Longanesi, Milão, 1969; TON H. M. VAN SCHAIK, Alfrink, Een biografie, Authos, Amesterdão, 1997. Sobre o papel de Alfrink no Concílio, cf. Actes et Acteurs, pp. 522-553.

[4] Cf. SOLANGE DAYRAS, ‹‹ Les voeux de l’episcopat britannique. Reflets d’une église minoritaire ›› , in Le deuxième Concile du Vatican, pp. 139-153.

[5] CFf. YVES-MARIE HILAIRE, ‹‹ Les voeux des évêques français après l’annonce du Concile ››, in Le deuxième Concile du Vatican, p. 102 (pp. 101-117).

[6] Cf. C. SOETENS, ‹‹ Les vota des évêques belges en vue du Concile ››, in À la veille du Concile Vatican II, cit., p. 49 (pp. 38-52).

[7] Cf. R. MOROZZO DELLA ROCCA, ‹‹ I vota dei vescovi italiani ›› , cit., p. 127.

[8] Cf. ibid.

[9] Cf. ibid., pp. 119-137.

[10] G. TURBANTI, ‹‹ Il problema do comunismo al Concilio Vaticano II ›› , in Vatican II in Moscow, p. 149 (pp. 147-187).

[11] Ibid., p. 150. Especialmente notórios são os votos das universidades católicas, como por exemplo a do Ateneu De Propaganda Fide de Roma, que apresenta um longo e aprofundado estudo do padre estigmatino Cornelio Fabro sobre as origens e a natureza do ateísmo contemporâneo. (Cf. De atheismo positivo seu constructivo ut irreligiositatis nostri temporis fundamenta, AD, I-I/1, pp. 452-463).

[12] ARMANDO SAITTA, Constituenti e Costituizioni della Francia rivoluzionaria e liberale (1789-1875), Giuffrè, Milão, 1975, p. 3.

[13] J. W. O’MALLEY, s.j., Introdução a Vatican II. Did anything happen?, cit., p. 4

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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Onde encontrar:

Em Portugal – Nas maiores livrarias do país. Em Lisboa, nas livrarias Fnac e Férin (próxima ao Chiado, centro histórico). Em Porto, pelos telefones 936364150 e 911984862.

No Brasil –– Nas livrarias Loyola, da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, e Lumen Christi, do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Pela internet, na Livraria Petrus e Editora Ecclesiae.

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Fratres in Unum entrevista o Professor Roberto de Mattei.

Nesta semana, a obra O Concílio Vaticano II: uma história nunca escrita, de autoria do Professor Roberto de Mattei, foi apresentada em Portugal. Por esta ocasião, o autor gentilmente aceitou trocar algumas palavras com o Fratres in Unum.

De Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, do qual é o diretor. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação da Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiano para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Primeiramente, Professor Roberto de Mattei, muito obrigado por atender ao nosso convite. A sua obra tem causado grande agitação nos meios eclesiais — entre o acolhimento entusiasmado de uns e a recepção nada amistosa de outros. Afinal, o que há de tão especial em seu trabalho que o caracterize como “uma história nunca escrita”?

Professor Roberto de Mattei.
Professor Roberto de Mattei.

O Concílio Vaticano II foi considerado, por 50 anos, como um monólito histórico-teológico que era aceito em bloco, resultando com que muitos o tenham rejeitado em bloco. A minha abordagem é a de distinguir os documentos do Concílio do evento histórico, procurando, no âmbito histórico, a verdade dos fatos. Isso significa que o Concílio Vaticano II deve ser encarado não só na esfera teológica, mas, sobretudo, na histórica, como evento.

Alguns me acusam de usar o mesmo método da Escola de Bolonha, enquanto há uma diferença substancial. A escola progressista de Bolonha transforma a história em um locus theologicus, atribuindo ao historiador o papel do teólogo. Eu, pelo contrário, afirmo a distinção dos papéis. O teólogo exerce a sua reflexão sobre os textos; o historiador, sem desprezar os textos, reserva a sua atenção sobretudo à sua gênese, às suas consequências, ao contexto em que elas se situam. Os dois níveis, o histórico e o hermenêutico, não podem ser confundidos, a menos que você acredite que a história coincida com a sua interpretação. É só após a reconstrução histórica, e não antes, que intervém o teólogo ou o Pastor, para formular os seus juízos. Se, então, os fatos históricos colocam problemas teológicos, o historiador não pode ignorá-los e deve trazê-los à luz, remetendo-se sempre à doutrina da Igreja.

Como o senhor avalia a recepção do livro por parte dos clérigos, em especial dos bispos? Alguma apreciação do Papa ou de seus colaboradores mais próximos? É possível entrever alguma abertura das autoridades eclesiásticas a uma discussão sobre esse tema, até hoje considerado tabu? 

Roberto de Mattei e o Cardeal Burke.
Cardeal Burke e Roberto de Mattei

Tenho recebido expressões de aprovação e elogios por parte de bispos e cardeais, não só italianos. Entre estes, o Cardeal Raymond Leo Burke e Dom Athanasius Schneider. Na Itália, o meu livro foi apresentado com sucesso em muitas dioceses e, em alguns casos, os apresentadores foram os próprios bispos, como Dom Luigi Negri, bispo de Montefeltro-San Marino, e Dom Simone Giusti, bispo de Livorno. Ademais, é de conhecimento que o Cardeal Brandmüller organizou, em 2012, uma série de debates “a portas fechadas” sobre o Concílio Vaticano II com estudiosos de diferentes tendências. Fui convidado para estas discussões, tendo a oportunidade de apresentar a minha tese e de criticar as de outros estudiosos presentes. Tudo se desenvolveu sempre em um clima de sereno e profícuo aprofundamento cultural.

Nas últimas décadas, percebe-se claramente uma polarização entre os historiadores do Vaticano II. De um lado, as idéias da Escola de Bolonha, que prevalecem atualmente no panorama eclesial; de outro, uma corrente mais recente, cujo expoente de maior destaque é o Arcebispo Agostino Marchetto. O senhor poderia expor, em linhas gerais, as teses defendidas por cada uma destas correntes? Como a sua obra se enquadra nesse contexto?

A corrente hermenêutica hoje dominante é a Escola de Bolonha, que teve seu iniciador no prof. Giuseppe Alberigo e hoje é representada principalmente pelo prof. Alberto Melloni. Esta escola contrapõe aos documentos do Vaticano II o seu “espírito”, e vê no evento conciliar um Pentecostes para a Igreja “traído” por Paulo VI e seus sucessores. A sua expressão é uma História do Concílio Vaticano II, em cinco volumes, publicada em vários idiomas, em um trabalho de vários autores de diferentes nacionalidades. Contra a escola de Bolonha, em 2005, vem a campo Dom Agostino Marchetto, com o volume Il Concilio ecumenico Vaticano II. Contrappunto per la sua storia (Libreria Editrice Vaticana, 2005), que foi seguido, neste ano, por um outro estudo: Il Concilio Ecumenico Vaticano II. Per la sua corretta ermeneutica (Libreria Editrice Vaticana, 2012). Dom Marchetto não escreveu uma história alternativa à de Bolonha, mas se limitou a examinar criticamente alguns estudos de autores que ele considera “descontinuístas”, tanto do lado progressista como tradicional (e eu sou um deles), em nome de “hermenêutica da continuidade”. Porém, contra a história tendenciosa de Alberigo e seus seguidores não basta afirmar que os documentos do Concílio devem ser lidos em continuidade e não em ruptura com a Tradição. Quando, em 1619, Paolo Sarpi escreveu uma história heterodoxa do Concílio de Trento, não lhe foram contrapostas as fórmulas dogmáticas de Trento, mas uma história diversa, a célebre Storia del Concilio di Trento, escrita por ordem do Papa Inocêncio X pelo Cardeal Pietro Sforza Pallavicino (1656-1657): a história se combate efetivamente com a história, não com hermenêutica.

Com o meu livro, espero ter aberto o caminho para “reescrever”, de maneira objetiva, o que aconteceu, não só nos três anos em que se desenvolveu o Concílio Vaticano II, de 11 de outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965, mas nos anos que o precederam e que imediatamente lhe seguiram, a época do chamado “pós-concílio”.

Alguns, inclusive Cardeais, sustentam que a Missa de Paulo VI não seria, propriamente, a Missa do Concílio. O que o senhor pensa a respeito?

João XXIII nunca partilhou da ideia de uma reforma litúrgica que era defendida, em vez, por uma minoria de teólogos e liturgistas progressistas. Pouco antes de abrir o Concílio, em 22 de fevereiro de 1962, o Papa Roncalli publicou uma Constituição Apostólica, a Veterum Sapientia, na qual confirmava a liturgia tradicional e enfatizava a importância do uso do latim, “língua viva da Igreja”, recomendando que as mais importantes disciplinas eclesiásticas deveriam ser ensinadas em língua latina (n. 5) e que os aspirantes ao sacerdócio, antes de empreender os seus estudos eclesiásticos, deveriam ser “instruídos na língua latina com sumo cuidado e com método racional, por mestres extremamente capazes, por um conveniente período de tempo” (n. 3).

Por sua obra, De Mattei recebeu o prêmio 'Acqui Storia', o mais prestigioso reconhecimento da Europa dedicado à História.
Por sua obra, De Mattei recebeu o prêmio ‘Acqui Storia’, o mais prestigioso reconhecimento da Europa dedicado à História.

O Vaticano II, embora admitindo uma certa introdução do vernáculo, insistiu sobre o papel do latim, estabelecendo, em seu n. 36 da Constituição Sacrosanctum Concilium, de 4 de dezembro de 1963: “Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular”. O Concílio solicitou também aos seminaristas “adquirir o conhecimento da língua latina, com que possam compreender e utilizar as fontes de numerosas ciências e os documentos da Igreja”. Embora estabelecendo limites, os padres conciliares propuseram, no entanto, a possibilidade de um uso mais amplo do vernáculo. O artigo 54 da Sacrosanctum Concilium, com efeito, acrescenta: “Se algures parecer oportuno um uso mais amplo do vernáculo na missa, observe-se o que fica determinado no art. 40 desta Constituição”. O artigo 40 dá orientações quanto ao papel das Conferências Episcopais e da Sé Apostólica sobre tal matéria tão delicada. O Concílio, embora recomendando o uso do latim, abriu, portanto, uma brecha.

Por que o Novus Ordo de Paulo VI, que entrou em vigor em todo o mundo em 03 de abril de 1969, foi apresentado como uma conseqüência do Concílio Vaticano II, que não havia previsto nenhuma reforma litúrgica? Trata-se, a meu ver, de uma aplicação, por Paulo VI, do “princípio de pastoralidade” do Vaticano II, segundo o qual o “aggiornamento” não deveria tocar a doutrina, mas o modo de expressá-la. A dimensão pastoral, por si acidental e secundária em relação à doutrina, tornou-se, de fato, prioritária, operando uma profunda revolução na linguagem e na mentalidade. Segundo o Padre John O’Malley, o Vaticano II foi, sobretudo, um “evento lingüístico”. A novidade lingüística segundo os progressistas era, na realidade, doutrinal, porque para eles o modo com que se fala e se age é doutrina que se faz praxe. A reforma litúrgica apresentou, portanto, uma nova lex orandi que comportava uma nova lex credendi. Sob este aspecto, a reforma litúrgica se mostra como uma coerente realização, na prática, do princípio de pastoralidade do Vaticano II.

Que personagens lusófonos tiveram atuação de destaque no Concílio? Qual o seu grau de influência durante o evento conciliar? 

O episcopado português, como em geral os episcopados latinos, distinguiu-se no Concílio pelo seu apego à Tradição da Igreja. Mas deve-se recordar especialmente os protagonistas da resistência ao progressismo, reunidos no Coetus Internationalis Patrum. Dentre eles, destaco as figuras de Dom Geraldo de Proença Sigaud, Dom Antônio de Castro Mayer e Professor Plínio Corrêa de Oliveira, particularmente em relação ao pedido de condenação do comunismo que foi ilegalmente deixado de lado pelas comissões conciliares.

O senhor faria uma analogia entre a situação de calamidade surgida após o Vaticano II e algum outro período da história da Igreja? Com os olhos voltados ao passado, é possível antever uma solução futura para a crise pela qual passamos?

A história nunca é “nova”. Bento XVI comparou o nosso tempo ao da decadência e queda do Império Romano do Ocidente. Esta época foi caracterizada não só pelas invasões bárbaras, mas também por uma trágica crise dentro da Igreja, que foi o arianismo. A leitura da obra do Beato Newman sobre Os arianos do século IV me parece esclarecedora para compreender a época atual.

Saindo da esfera do historiador para um questionamento ao fiel Roberto de Mattei: como o senhor vê o surgimento de tantos jovens interessados na Missa Tradicional e a difusão desta após o motu proprio Summorum Pontificum?

Eu acredito que há ao menos duas razões de caráter natural que explicam esse fenômeno tão animador: a primeira é a mudança de clima psicológico que se deu na Igreja com o pontificado de Bento XVI e, em especial, com o seu Motu Proprio Summorum Pontificum de 2007. A segunda é o papel da internet, que permitiu que tanto se expressassem e se unissem, principalmente os jovens, que de outra forma teriam permanecido isolados e sem voz. Mas há, claro, uma razão mais profunda, de ordem sobrenatural: a indubitável existência de novas graças que superabundam a Igreja discente, em um período histórico em que abunda, infelizmente, a deserção dos Pastores.

Por fim, Professor, haverá uma apresentação de seu livro no Brasil?

Seria uma enorme satisfação uma apresentação do meu livro no Brasil e eu ficaria contente em participar, mas me parece que ainda não está na agenda.

Depois de Lisboa, um convite aos amigos da cidade do Porto.

Alguns excertos da obra:

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Onde encontrar:

Em Portugal – Nas maiores livrarias do país. Em Lisboa, nas livrarias Fnac e Férin (próxima ao Chiado, centro histórico). Em Porto, pelos telefones 936364150 e 911984862.

No Brasil –– Nas livrarias Loyola, da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, e Lumen Christi, do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Pela internet, na Livraria Petrus e Editora Ecclesiae.

O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (II): Entre modernismo e antimodernismo, o “Terceiro Partido”.

Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega agora ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho que é um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.

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A expressão “Terceiro Partido” foi cunhada pelo historiador francês Émile Appolis em estudos sobre as correntes religiosas do século XVIII [1]. Segundo Appolis, o jansenismo, condenado pela Igreja, produziu um “Terceiro Partido”, constituído por eclesiásticos de diversas categorias que ofereceram aos jansenistas a possibilidade de prosperarem no interior da Igreja. Tais eclesiásticos não se apresentavam, evidentemente, como jansenistas, e até condenavam o jansenismo, mas não o combatiam, defendendo a tese de que ele acabaria por se dissolver discretamente se os antijansenistas pusessem fim às suas campanhas de oposição. Assim, surgiu nas fileiras católicas, a par dos jansenistas e dos sequazes da autoridade romana, uma terceira força, tambéma ela oposta a quantos eram fiéis a Roma, que acusava de serem exagerados, intransigentes e inimigos da caridade. Aplicando esta polarização, houve outros historiadores que referiram a existência, neste período, de uma corrente de “centro”, localizada entre a direita ortodoxa dos jesuítas e a “esquerda” galicana e jansenista [2]. Por muito inadequadas que estas categorias sejam, não há dúvida de que o distanciamento do pólo da ortodoxia integral tinha conhecido matizes diversos, que permitiam falar da existência de uma “terceira força”, situada entre a verdade integral e o erro declarado.

[…] Após a morte de Pio X, começou a delinear-se, a partir de 1920, uma terceira força que, distanciando-se embora do modernismo, garantia de facto a sua continuação, mesmo depois da sua condenação [3]. Este “Terceiro Partido” impôs-se graças ao apoio do Cardeal Pietro Gasparri [4], secretário de Estado de Bento XV e, depois, de Pio XI até 1930, altura em que foi substituído por Eugenio Pacelli. O desaparecimento do antimodernismo, substituído pela política eclesiástica do “Terceiro Partido”, favoreceu, nos anos 30, o surgimento de correntes e tendências que, de uma maneira ou de outra, absorveram a herança do modernismo: o “movimento bíblico”, o “movimento litúrgico”, o “movimento filosófico-teológico” — que encontrou a sua expressão mais acabada na “nouvelle théologie” –, bem como o “movimento ecuménico”, no qual vieram a confluir os outros movimentos.

O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, Roberto de Mattei, Ed. Caminhos Romanos, 2012, pp. 39-40.

Notas:

[1] Cf. Émile Appolis, “Entre jansénistes et constitutionnaires: un tiers parti”, in Annales, 2 (1951), pp. 154-171; e posteriormente Entre jansénistes et zelanti. Le Tiers Parti catholique au XVIIIeme siécle, A. e J. Picard, Paris, 1962. Veja-se igualmente Antonio de Castro Mayer, “Il Giansenismo e la Terza Forza”, tr. it. Cristianitá, 1 (1973), pp. 3-4 e 2 (1973), pp.3-4.

[2] Cf. Lucien Cayssens, “Le jansénisme. Considerátions historiques préliminaires à sa notion”, in Nuove ricerche storiche sul giansenismo, Gregoriana, Roma, 1959, pp. 28-29. Veja-se igualmente R. de Mattei, Idealità e dottrine della Amicizie, Biblioteca Romana, Roma, 1981, pp. 15-22.

[3] Cf. R. de Mattei, Modernismo e antimodernismo nell’epoca di Pio X, cit., pp. 68-71.

[4] Pietro Gasparri (1852-1934), ordenado em 1877 e arcebispo de Cesareia (1898), foi feito cardeal em 1907 e nomeado secretário de Estado pelo Papa Bento XV, no Outono de 1914, cargo no qual foi confirmado por Pio XI.

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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Onde encontrar:  Livraria Petrus – R$ 89,00.

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Artigos da série:

O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (I): Apresentação.

Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega agora ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho que é um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.

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Um Concílio “pastoral” ou “doutrinal”?

A fórmula do Concílio à luz da Tradição — ou, se se preferir, da “hermenêutica da continuidade” — propõe indubitavelmente aos fiéis uma indicação autorizada, com vista ao esclarecimento do problema da adequada recepção dos textos conciliares; mas deixa em aberto um problema de fundo: dado que a correcta interpretação é a da continuidade, resta explicar porque foi que, na sequência do Concílio Vaticano II, aconteceu aquilo que nunca tinha acontecido depois de qualquer dos concílios da história, a saber, o facto de duas (ou mais) hermenêuticas contrárias se terem confrontado e terem, para usar a expressão do Papa, lutado entre si. Assim, pois, se a época pós-conciliar deve ser interpretada como uma época de “crise”, podemos perguntar-nos se uma errada recepção dos textos terá uma incidência tal sobre os factos históricos, que constitua razão suficiente e proporcionada para a vastidão e a profundidade da mesma crise.

Por outro lado, a existência de uma pluralidade de hermenêuticas atesta a presença de certa ambiguidade ou ambivalência nos documentos. Quando se torna necessário recorrer a um critério hermenêutico exterior ao documento para interpretar o próprio documento, é evidente que este não é suficientemente claro, que precisa de ser interpretado e que, na medida em que é susceptível de interpretação, pode ser objecto de crítica, histórica e teológica.

O desenvolvimento mais lógico deste princípio hermenêutico é o que foi proposto por um eminente especialista em eclesiologia, Mons. Brunero Gherardini. De acordo com este teólogo romano, o Vaticano II, enquanto concílio que se auto-qualificou como “pastoral”, esteve privado de um carácter doutrinal “definitório”; contudo, do facto de o Vaticano II não poder ter a pretensão de ser qualificado como dogmático, sendo antes caracterizado pelo seu carácter pastoral, não se pode naturalmente deduzir que esteja privado de doutrina própria. O Concílio Vaticano II teve indubitavelmente ensinamentos específicos, que não estão privados de autoridade, mas, como escreve Gherardini, “as suas doutrinas, quando não reconduzíveis a definições anteriores, não são, nem infalíveis nem irreformáveis, e, portanto, também não são vinculativas; quem as negar não será, por esse facto, formalmente herege. Assim, pois, quem as impusesse como infalíveis e irreformáveis iria contra o próprio Concílio” .

O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, Roberto de Mattei, Ed. Caminhos Romanos, 2012, pp. 14-15

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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Onde encontrar:  Livraria Petrus – R$ 89,00.