Apresentamos a seguir três artigos da recente polêmica, veiculada na imprensa italiana, entre Vittorio Messori, conhecido jornalista italiano, autor de livros-entrevistas com João Paulo II e Bento XVI e entusiasta de ambos, e o “teólogo” brasileiro neo-papista Leonardo Boff.
Com o Cardeal Gerhard Müller cada vez mais isolado em sua defesa intransigente do matrimônio católico em uma Cúria adormecida, não surpreenderia se Leonardo Boff fosse chamado à chefia do Santo Ofício, de onde poderia aplicar sua misericórdia francisquista convidando Messori, ou quem sabe o próprio bispo emérito de Roma, a sentar-se naquela famosa “cadeira em que sentou Giordano Bruno”, como ele sempre fez questão de repetir acerca dos episódios de outrora em que ele, coitadinho, foi injustamente perseguido. Tempos obscuros aqueles! Agora temos Francisco, o libertador!
Tradução de Gercione Lima – Fratres in Unum.com
As dúvidas sobre a virada do Papa Francisco
http://www.vittoriomessori.it/blog/2014/12/24/i-dubbi-sulla-svolta-di-papa-francesco/
Corriere della Sera, 24 de dezembro de 2014, Vittorio Messori
Uma imprevisibilidade que continua perturbando a tranquilidade do católico médio, habituado a não ter que pensar por conta própria no que diz respeito a fé e moral, e que sempre foi exortado a simplesmente “seguir o Papa”. Sim, mas qual Papa? Aquele de certas homilias matutinas em Santa Marta, dos sermões dos párocos à moda antiga, com bons conselhos e provérbios sábios, chegando mesmo a nos advertir para não cairmos nas armadilhas que nos arma o demônio? Ou aquele que telefona a Giacinto Marco Pannella, o qual está empenhado novamente em mais uma enésima greve de fome e deseja-lhe “bom trabalho”, quando por décadas, o “trabalho” do líder radical consistiu e consiste apenas em pregar que a verdadeira caridade está na luta pelo divórcio, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade para todos, a teoria de gênero e assim por diante? O Papa que no discurso destes dias à Cúria Romana, citou com convicção Pio XII (mas, na verdade, o próprio São Paulo), que define a Igreja “corpo místico de Cristo”? Ou aquele que na primeira entrevista a Eugenio Scalfari, ridicularizou aqueles que pensam que “Deus é católico”, como se a Igreja Una, Santa, Apostólica, Romana fosse um acessório opcional para vincular, de acordo com o gosto pessoal de cada um à Trindade divina? O Papa Argentino consciente por experiência direta do drama da América Latina que está prestes a se tornar um continente ex-católico devido à apostasia em massa desses povos para o protestantismo pentecostal? Ou o Papa que tomou um avião para abraçar e desejar bom sucesso a um querido amigo, um pastor protestante em uma das suas comunidades que está esvaziando a Igreja Católica precisamente com o proselitismo que ele duramente condenou entre os Católicos?
Poderíamos continuar, é claro, com esses aspectos que parecem – e talvez são de fato – contraditórios. Poderíamos, mas não seria certo para um crente. Estes sabem que não se pode olhar para um Pontífice como se olha para um presidente eleito da República ou como um rei, herdeiro aleatório de outro rei. Claro, no Conclave, esses instrumentos do Espírito Santo, de acordo com a fé, são os cardeais eleitores que compartilham dos limites, erros, talvez os pecados que marcam a humanidade inteira. Mas o chefe único e verdadeiro da Igreja é Cristo onipotente e onisciente, que sabe um pouco melhor do que nós o que é a melhor escolha no que diz respeito ao seu representante temporário na terra. Esta escolha pode parecer desconcertante para a visão limitada dos contemporâneos, mas, em seguida, na perspectiva histórica, revela as suas razões. Quem realmente conhece a história fica surpreso e pensativo ao descobrir que – na perspectiva da visão milenar, que é aquela Católica — todos os Papas, conscientes ou não, interpretaram o seu papel idoneamente, e que no final, pareceu ser o necessário. Precisamente por estar consciente disso é que eu escolhi, no que me diz respeito, apenas observar, ouvir, refletir sem me lançar em opiniões intempestivas ou até temerárias.
Parafraseando uma pergunta muito mencionada fora do seu contexto: “Quem sou eu para julgar?”. Eu, que – ao lado de muitos outros, excluindo apenas um — certamente não sou assistido pelo “carisma pontifício” da assistência prometida pelo Paráclito.
E para aqueles que querem julgar, será que não diz nada a aprovação plena, e várias vezes repetida – verbalmente e por escrito – da atividade de Francisco por parte do “Papa Emérito”, apesar de serem tão diferentes em estilo, formação, e até mesmo programa de governo?
Terrível é a responsabilidade de quem hoje é chamado a responder à pergunta: “Como anunciar o Evangelho aos contemporâneos? Como mostrar que Cristo não é um fantasma desaparecido e remoto, mas o rosto humano do Deus criador e salvador que todos podem e querem para dar sentido à vida e à morte?”. Há muitas respostas, muitas vezes conflitantes.
Para aquele pouco que conta, depois de décadas de experiência eclesial, também eu teria as minhas respostas. Eu, por exemplo diria que a condicional é obrigatória porque nada e ninguém me assegura ter vislumbrado a via adequada. Não correria talvez a o risco de ser como o cego do Evangelho, aquele que quer guiar outros cegos, acabando todos no mesmo abismo? Assim, certas escolhas pastorais do “Bispo de Roma”, como ele prefere ser chamado, convencem-me; mas outras me deixam perplexo, pois me parecem pouco oportunas, talvez suspeitas de um populismo capaz de obter um interesse tão vasto como superficial e efêmero. Eu teria que observar algumas coisas sobre as prioridades e conteúdos, na esperança de um apostolado mais fecundo. Eu teria pensado no condicional, repito, como exige uma perspectiva de fé, onde qualquer pessoa, mesmo um leigo (como estabelece o código canônico), pode expressar seus pensamentos, desde que de modo pacato e motivado sobre as táticas de evangelização. Mas deixando ao homem que saiu vestido de branco do Conclave a estratégia geral e, acima de tudo, a custódia do “depósito da fé”.
Em qualquer caso, não esquecendo de que foi o próprio Francisco que lembrou em seu duro discurso à Cúria: é fácil, disse ele, criticar os sacerdotes, mas quantos estão orando por eles? Querendo também recordar que ele, na Terra, é o “primeiro” entre os sacerdotes. E, assim, pedindo, a quem critica, aquelas orações que o mundo zomba, mas que guiam em segredo o destino da Igreja e do mundo inteiro.
Apoio ao Papa Francisco contra um nostálgico escritor
Um pouco por todas as partes surge forte oposição ao Papa Francisco, ao seu modo pastoral, aberto, ecumênico e claramente posicionado ao lado dos pobres e sofredores deste mundo. Isso ocorre dentro da Cúria Romana, com cardeais e outros prelados, e em geral em certos grupos mais conservadores do catolicismo italiano e também brasileiro. Pressionado por esses grupos, o conhecido convertido e escritor Vittorio Messori publicou, exatamente na noite de Natal, um artigo critico sobre o modo do Papa exercer seu ministério. No meu modo de ver, não podemos deixar agredida uma fonte de esperança e de alegria que o Papa Francisco, bispo de Roma e Pastor universal, trouxe para uma Igreja altamente desmoralizada e para o mundo sem condução de líderes com envergadura moral e de liderança confiável. Aqui vai a minha resposta ao escritor, na esperança de que o diário Corriere della Sera a possa publicar. Brevemente o artigo aparecerá em português, pois o escrevi diretamente em italiano:
Eu li com um pouco de tristeza o artigo crítico de Vittorio Messori no Corriere della Sera, exatamente no dia menos adequado: a feliz noite de véspera de Natal, festa de alegria e de luz. Ele tentou estragar essa alegria para o bom pastor de Roma e do mundo, o Papa Francisco. Mas em vão, pois não sabe o significado da misericórdia e da espiritualidade deste Papa, virtude que seguramente não demonstra Messori. Por trás de palavras de compaixão e compreensão traz um veneno. E o faz em nome de tantos outros que se escondem por trás dele e não têm coragem de aparecer em público.
Eu quero propor uma outra leitura do papa Francisco, como um contraponto à de Messori, um convertido que, na minha opinião, ainda precisa completar sua conversão com a recepção do Espírito Santo, para não dizer mais as coisas que escreveu.
Messori demonstra três insuficiências: duas de natureza teológica e uma outra que diz respeito à compreensão da Igreja do Terceiro Mundo.
Messori ficou escandalizado com a “imprevisibilidade” deste pastor porque “continua perturbando a tranquilidade do católico médio”. É necessário perguntar-se sobre a qualidade de fé deste “católico médio” que tem dificuldade em aceitar um pastor que tem cheiro de ovelha e que anuncia a “alegria do Evangelho”. São geralmente “católicos culturais” habituados à figura faraônica de um Papa com todos os símbolos de poder dos imperadores romanos pagãos. Agora aparece um Papa “franciscano” que ama os pobres, que não “veste Prada”, que faz uma dura crítica ao sistema que produz a miséria em grande parte do mundo, que abre a Igreja não só aos católicos, mas a todos aqueles que carregam o nome de “homens e mulheres”, sem julgá-los, mas acolhendo-os no espírito da “revolução da ternura”, como ele pediu aos bispos da América Latina que se reuniram no ano passado no Rio.
Há uma grande lacuna no pensamento de Messori. Estas são as duas deficiências teologais: a quase ausência do Espírito Santo. Eu diria mais, ele incorre no erro teológico do cristomonismo, isto é, somente Cristo conta. Não há realmente um lugar para o Espírito Santo. Tudo na Igreja se resolve só com Cristo, algo que o Jesus dos Evangelhos exatamente não quer. Por que digo isso? Porque o que ele deplora é a “imprevisibilidade” da ação pastoral deste Papa. Ou melhor, esta é a característica do Espírito, sua imprevisibilidade, como diz São João: “O espirito sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; “(3.8). A sua natureza é a irrupção repentina com os seus dons e carismas. Francisco de Roma seguindo os passos de São Francisco de Assis se deixa conduzir pelo Espírito.
Messori é refém de uma visão linear própria de seu ““amado Joseph Ratzinger” e de tantos outros papas anteriores. Infelizmente, foi esta visão linear que fez da Igreja uma fortaleza incapaz de compreender a complexidade do mundo moderno, isolada em meio a outras igrejas e caminhos espirituais, sem dialogar e sem aprender com os outros que também são iluminados pelo Espírito. Significa blasfemar contra o Espírito Santo pensar que os outros pensam só de modo errado. Por isso é extremamente importante uma Igreja aberta como o quer Francisco de Roma. Para perceber as irrupções do Espírito na história. Não é sem motivo que alguns teólogos o chamam a “ fantasia de Deus”, por causa de sua criatividade e novidade na sociedade, no mundo, na história dos povos, nos indivíduos, nas igrejas e até mesmo na Igreja Católica.
É um dom do Espírito Santo que este Papa venha de fora do velho cristianismo europeu. Não aparece como um teólogo sutil, mas como um pastor que realiza o que Jesus pediu a Pedro: “confirma seus irmãos na fé” (Lc 22:31). Traz consigo a experiência das igrejas do Terceiro Mundo, especialmente, as da América Latina.
Esta é uma outra falha de Messori: não ter a dimensão do fato de que hoje o cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo, como enfatizou muitas vezes o teólogo alemão Johan Baptist Metz. Na Europa vivem apenas 25% dos católicos; o resto dos 72,56% vive no Terceiro Mundo (na América Latina 48,75%). Por que não poderia vir desta maioria um que o Espírito fez bispo de Roma e Papa universal? Por que não aceitar as inovações que derivam dessas igrejas, que já não são igrejas-imagens das velhas igrejas europeias, mas igrejas-emergentes com seus próprios mártires, confessores e teólogos?
Talvez no futuro, a sede do Primado não será mais Roma e a Cúria, com todas as suas contradições, denunciados pelo Papa Francisco na reunião de Cardeais e prelados da Cúria com palavras só ouvidas da boca de Lutero e com menos força em meu livro condenado por card. J. Ratzinger “Igreja: Carisma e Poder” (1984), mas sim lá onde vive a maioria dos católicos: na América, África ou Ásia. Seria um sinal próprio da verdadeira catolicidade da Igreja no processo de globalização do fenômeno humano.
Eu esperava uma maior inteligência e abertura por parte de Vittorio Messori com os seus méritos de católico, fiel a uma espécie de Igreja e renomado escritor. Este Papa Francisco trouxe esperança e alegria para tantos católicos e outros cristãos. Não percamos este dom do Espírito em função de uma mentalidade bastante negativa sobre ele.
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Tréplica de Vittorio Messori, Corriere della Sera, 05 de janeiro de 2015
Leonardo Boff, líder da Teologia da libertação ao estilo brasileiro, aquela com uma referência mais explícita ao marxismo, depois dos confrontos como o então cardeal Joseph Ratzinger e depois das advertências de João Paulo II, declarou que a Igreja era inabitável e irreformável. Assim, ele abandonou o hábito franciscano e foi morar com um companheira. Mas a implosão do comunismo veio como uma surpresa e, como aconteceu com outros tantos, ele mudou do vermelho para o verde, passou para o ambientalismo mais dogmático, com aspectos de culto panteísta à mãe Terra. Continua, no entanto, celebrando sacramentos, com liturgias eucarísticas e batismais elaboradas por ele mesmo (onde não falta, como comenta-se, semelhanças à new age) com o conhecimento do episcopado brasileiro. Em uma entrevista que apareceu há um ano no Vatican Insider, ele afirmou não apenas ter um bom relacionamento com o Papa Francisco desde seus tempos na Argentina como arcebispo, mas de colaborar com ele em questões ambientalistas, tendo em vista a encíclica “verde” anunciada pelo Bispo de Roma e, ao que parece, sugerida por ele próprio.
Dizemos isto porque, neste firme admirador de Jorge Bergoglio, parece haver muito pouco da ternura, do acolhimento, do respeito pelos outros e da indulgente misericórdia pregada com tanta paixão pelo Papa Francisco. Seus comentários, publicados ontem por este jornal, sobre o meu artigo de 24 de dezembro, não têm nada das boas maneiras que Bergoglio exige no trato com todos, mesmo com os adversários. O ex-padre Leonardo me atribui “grandes lacunas no pensamento,” escassa inteligência, ignorância, chamando-me até mesmo de mal convertido, que ao atingir uma “respeitável idade, deveria finalmente completar o processo de conversão”. Ele chega ao ponto de me lançar na cara algo que para ele deve soar como uma pesada acusação, mas que pra mim é um grande elogio, ao me chamar de “cristomonista”. Eu não sei bem o que isso significa, mas pelo que dá pra intuir não me desagrada, pelo contrário, me deixa muito lisonjeado.
No entanto, nenhuma surpresa: ao escrever coisas que não agradam a todos, eu sei bem como reagem na prática esses edificantes intelectuais (muitas vezes religiosos) que, de fato, do diálogo gostariam de fazer uma espécie de religião. Mas não, não é isso que chama a atenção. O que me deixa amargurado é que Boff parece não ter lido direito tudo o que eu escrevi: talvez seja por causa do imperfeito conhecimento da língua italiana, talvez a pressa, talvez o preconceito ideológico, o fato é que a reação dele, tão veemente quanto confusa, pouco ou nada tem a ver com o que eu realmente disse. O exemplo mais marcante é a acusação de eu ter quase ignorado o Espírito Santo. Na verdade, a referência ao Paráclito é o elemento central do meu discurso, onde eu recordo que nada compreenderemos do Papado se não nos referirmos à ação livre e inescrutável do Espírito. Deixe-me dizer que no desconcertante debate suscitado por meu artigo, muitos outros críticos julgaram irrelevante centralizar-se no verdadeiro conteúdo: ao ler com os óculos da ideologia, atacaram um texto existente apenas em seus prévios esquemas, talvez mais políticos do que religiosos.
Mas, voltando a Leonardo Boff, acontece que em um desses sites mais frequentados pelos católicos, La Nuova Bussola Quotidiana, saiu a análise de um teólogo profissional justamente sobre o artigo publicado ontem pelo Corriere, depois de ter circulado por muitos dias na rede. O teólogo é Monsenhor Antonio Livi, que há muitos anos é professor na Universidade dos Papas, a Lateranense, conhecido internacionalmente por seus estudos, pela originalidade de seu pensamento e por suas iniciativas acadêmicas e editoriais. Este estudioso, muito respeitado no Vaticano, não hesitou em denunciar que “as críticas violentas e insanas contra Messori por parte de um ex-religioso que se apresenta como teólogo, representam a suma de todos os disparates dos ideólogos da teologia da libertação”. Esse especialista de autoridade reforça: “Boff se arroga o direito exclusivo de interpretar o que o Espírito quer da Igreja e atribui a si a infalibilidade que ele nega ao Magistério”. O ex-franciscano – diz ainda Monsenhor Livi – parece ignorar que um verdadeiro teólogo nunca toma como verdade divina suas arbitrárias conjecturas” . E assim por diante.
Em suma, todos os críticos devem ser levados a sério, mas nem todos devem ser tomados ao pé da letra. Creio que esse último caso é o do eco-teólogo brasileiro.