Dom Marcel Lefebvre: 20 anos depois – O nosso dever de devoção.

Por Padre Guillaume de Tanoüarn

Artigo publicado em Monde & Vie n° 840 – março de 2011

Dom Lefebvre
Dom Lefebvre

Na Segunda-Feira Santa, 25 de março de 1991, na festa da Anunciação, Dom Lefebvre deixava este mundo. Tinha sido operado tarde demais de um tumor canceroso “do tamanho de três toranjas”… deixava para trás quatro bispos e a sua obra, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Deixava à Igreja universal uma questão, que pode ser entendida de múltiplas maneiras: o que fez das formas de sua Tradição? O que fez da sua liturgia? Da sua teologia? Da sua fé?

Ao ler o livro testemunho de Philippe Béguerie (ver abaixo), antigo espiritano (referência à Congregação dos Missionários do Espírito Santo), que deixou sua congregação em 1963, devido a um desentendimento com o Superior Geral – um certo Dom Marcel Lefebvre –, fica-se impressionado pelo respeito com o qual fala, 20 anos após a sua morte, deste homem que deveria ser seu inimigo e que foi – até certo ponto — seu adversário. Um respeito que sempre cercou a pessoa e a obra deste bispo em todos os momentos de seu longo episcopado. Não posso fazer melhor do que citar um de seus paroquianos muçulmanos, Ababacar Thiam, escrevendo, após tomar conhecimento de sua morte: “Monsenhor, o Bispo, o dacarense, o senegalês, o maior construtor, o homem de Deus, de fé, partiu”. Os que o criticam rudemente são os que não o conheceram. A sua obstinação sempre serena podia irritar. Mas a sua doçura desarmava. “Felizes os mansos, porque possuirão a terra”. É, antes de tudo, a doçura de Dom Lefebvre que permitiu o prodigioso resplendor de sua obra. Suas últimas palavras, repetidas no magnífico livro de Dom Tissier de Mallerais, parecem se dispor a cristalizar esta doçura num sorriso eterno: “Somos todos seus filhinhos”. Surpreendente para um homem que tem reputação de ter desafiado o Papa, de ter contestado as orientações tomadas pelo conjunto da Igreja! Este espírito de infância perante Deus seria o seu segredo mais íntimo, o mais bem guardado, razão última da audácia tranqüila com que desafiou os caminhos da sua época?

“O menos influenciável do mundo”

Isso posto, o traço mais aparente de Dom Lefebvre não foi a sua doçura, mas a sua força. O mundo podia desabar ao seu redor, tendo analisado uma situação, ele não alterava suas posições. Assim, foi durante o seu episcopado na África, quando havia decidido implantar um dispensário numa aldeia pagã a ser cristianizada. E assim continuou, quando de Ecône fazia tremer as sacristias da França, de Navarra e quiçá do mundo inteiro. De onde lhe veio tal estabilidade? Há necessariamente as predisposições da natureza, mas há a sua história pessoal, a história de sua santidade pessoal. Diz ter recebido os ensinamentos do Padre Le Floch, no Seminário francês de Roma, como “uma revelação”. Esta expressão é dele. Mas de que revelação se trata? Vejamos o contexto: “É ele, o Padre Le Floch, que nos ensinou o que eram os Papas no mundo e na Igreja, o que ensinaram durante um século e meio: o anti-liberalismo, o anti-modernismo, o anticomunismo, toda a doutrina da Igreja sobre esses assuntos, para tentar preservar a Igreja e o mundo desses flagelos que nos oprimem hoje. Isso foi para mim uma revelação”. Muito jovem, Dom Lefebvre formou o seu juízo se inspirando nos ensinamentos do Padre Le Floch, ele mesmo discípulo de São Pio X e leitor das encíclicas dos Papas, de Leão XIII a Pio XI.

Tendo seguido eu mesmo as conferências espirituais de Dom Lefebvre durante seis anos, posso testemunhar que ele não conhecia a obra de Charles Maurras, do que lhe acusam seus adversários. As citações de Maurras, em epígrafe de certos capítulos de sua obra “Ils l’ont découronné” são de Dom Tissier Mallerais (Charles Maurras tinha sido padrinho de casamento de seus pais). Este ponto — Maurras ou não Maurras — é importante. Se Dom Lefebvre não tivesse sido mais que um maurrassiano, cheio de doutrinas políticas, seria possível tratar esse bispo de ideólogo que mistura alegremente política e religião, o que não deixam de fazer os que, como Philippe Levillain, em seu recente Rome n’est plus dans Rome [ndr: “Roma não está mais em Roma”], escrevem a história esperada. Mas ninguém era menos político que Dom Lefebvre. Quem se recorda da sua protuberância por ocasião de seu Jubileu sacerdotal: “Não faço política, faço a boa política, o que não é a mesma coisa”. Não, não é a mesma coisa. Homem da Igreja, engajado nas realidades terrestres, testemunha da colonização e descolonização na África, Dom Lefebvre se pronuncia sobre política e quer “uma boa política” porque sabe que, segundo a palavra de Pio XII, “da forma de um Estado depende a salvação das almas”. Mas ele não é nem por um segundo o militante de uma causa política qualquer. A sua única preocupação é o caminhar da Igreja neste século e é o ensinamento dos Papas sobre “o direito natural e cristão”, como dizia Jean Ousset, o patrono desta Cidade católica cuja defesa tomou ao risco de sua própria reputação, a partir de 1956. Neste espírito, escreverá um prefácio a “Pour qu’il règne”[“Para que ele reine”], a obra maior do mesmo Jean Ousset em 1960, sem dúvida, entre outras coisas, para efetivamente mostrar que a controvérsia nascida então há quatro anos não o havia impressionado, nem feito alterar um só iota.

“Eu vos compreendi”

Philippe Bèguerie conta uma cena ocorrida na 2ª sessão do Concílio. Os bispos espiritanos – eram 12 — pediram para vê-lo e repreenderam suas posições já anti-conciliares. Respondeu-lhes com um sorriso: “Eu vos compreendi. (sic). Mas cada um deve agir segundo a sua consciência, não é?”. E os despediu, sem outra cortesia, sempre sorrindo. Quando descobri esta cena, disse a mim mesmo: é ele, já, “o homem menos influenciável que já existiu”, como nota Dom Tissier no início da sua Biografia. O menos influenciável? Porque ele é convicto desta “revelação”: o ensinamento dos Papas sobre o direito natural e cristão.

Dom Lefebvre não era teólogo de profissão. Freqüentemente foi acusado — do lado dos sedevacantistas, assim como dos conciliares — das tomadas de posição que podiam parecer vacilantes ou insuficientemente aprofundadas. Em sua condenação de toda prática de diálogo inter-religioso, era, sem dúvida, unilateral, como revelam certos episódios de sua carreira em Dacar: a recusa de um serviço religioso para as vítimas católicas e muçulmanas de um acidente aéreo, por exemplo.

Mas os seus adversários tinham, por sua vez, duas carências que lhes impediam de compreender esse homem e apreciar suas razões e seus justos valores. Por um lado, para a maioria, não tinham, na prática, a sua experiência missionária. Falavam da missão como hoje se fala da nova evangelização: de maneira encantadora. Dom Lefebvre — é um traço de seu caráter — tinha decidido, de imediato, responder às campanhas orquestradas contra ele com atos. Tal é o sentido de sua saída impetuosa do capítulo geral dos espiritanos, no qual acabara de ser colocado em minoria. Ele não se defende. Nem se incomoda em passar uma boa impressão. É que algumas semanas mais tarde, funda um convento em Friburgo, na Suíça, e lança as bases de uma nova fraternidade sacerdotal. É esse gosto pela ação e esse sentido de organização que vão dar uma importância excepcional ao seu protesto, tornando-o incontornável.

Por que as sagrações ilegais?

Tendo assistido os vai-e-vens que cercaram a sagração dos quatro bispos em 30 de junho, recordo-me que havia dito a mim mesmo: as razões especulativas das sagrações são pouco claras. Roma concordou com um bispo. Por que querer quatro? Dom Lefebvre preferiu fazer essas sagrações sem o acordo de Roma por três razões. Primeiramente: não deixar calar a reprimenda que lançou, a partir do escândalo da primeira reunião de Assis: sem esse grito de indignação popular, perderia todo espaço de ação e deveria aceitar as condições de Roma. Em segundo lugar: ao instinto, o acolhimento dos “Romanos” lhe pareceu muito frio a fim de que uma “colaboração duradoura” pudesse ser vislumbrada. Novamente a prática! E em terceiro lugar: pretendia preservar a atmosfera espiritual própria de sua comunidade, que temia ver se diluir no estado de espírito dominante. Creio que, do ponto de vista prático, essas sagrações foram um grande momento da história da Igreja. Deram nascimento às comunidades Ecclesia Dei, sem, com isso, enfraquecer a Fraternidade São Pio X. E elas causaram um choque elétrico que permitiu uma verdadeira conscientização, como reconheceu um certo Cardeal Ratzinger, por ocasião de uma conferência em Santiago do Chile, no mês de julho de 1988. O pragmatismo de Dom Lefebvre é um elemento capital de seu itinerário espiritual. É reencontrado nos momentos mais críticos da sua vida.

Mas há uma segunda carência nos que quiseram se proclamar juízes dele: não conheciam — ou não queriam mais conhecer — a teologia romana à qual se reporta constantemente Dom Lefebvre e na qual foi formado pelo Padre Le Floch. Ainda, é desta teologia romana que ele recebeu sua segurança, convicto de que a fé católica em si se encontra expressa nessa teologia.

É através desse prisma que ele discerne muito rapidamente o perigo da colegialidade. Vê, de fato, que ela não é uma ameaça para a autoridade do Papa (como alguns deixavam desconfiar), mas para a autoridade de cada bispo em sua diocese. Muitas vezes havia repetido: “A crise da Igreja é uma crise da autoridade na Igreja”.

Um triplo prisma

É através deste prisma que se põe em causa a liberdade religiosa, não somente do ponto de vista das relações entre Igreja e Estado, mas porque esta liberdade mina a própria autoridade da fé: “Sendo aprovado o esquema sobre a liberdade religiosa, todo o vigor e todo o valor do magistério da Igreja são atacados mortalmente de maneira radical”. O Padre Congar, em seu privadíssimo Jornal do Concílio, lhe dá razão sobre esse ponto, confessando que o documento sobre a liberdade religiosa “fará a Igreja perder dois ou três séculos” (sic).

Neste contexto de destruição da Autoridade da verdade, podem o ecumenismo e o diálogo inter-religioso ser outra coisa senão manifestações de indiferentismo?

Aí estão as três as grandes intuições de Dom Lefebvre, como publicou em Rivarol de outubro de 1968 sob o título “Por uma verdadeira renovação da Igreja”. Seus confrades espiritanos, os bispos franceses, o próprio Papa não compreendem esta obstinação “misteriosa”, “mais católica que o Papa”, “inconcebível”.

Mas Dom Lefebvre não mudará nunca e até o seu último suspiro designará dessa forma o mal e a morte na Igreja. A História em maiúsculo está apenas começando a lhe dar razão. João Paulo II, refletindo sobre a primazia da verdade sobre a liberdade na encíclica Veritatis Splendor, confirmou (involuntariamente?) o terrível diagnóstico que fez de Dom Lefebvre o bispo de ferro. Resta ainda tirar todas as conseqüências: há muito trabalho por se fazer! E os anos passam, esterilizantes para a Igreja.

Padre G. de Tanoüarn

Duas novas “biografias”

Philippe Levillain, historiador midiático, acaba de lançar “Rome n’est plus dans Rome, Mgr Lefebvre et son église” [Roma não está mais em Roma, Dom Lefebvre e sua igreja] (Ed. Perrin), que não só é uma ação infeliz, mas antes e acima de tudo um péssimo trabalho. Exemplo aleatório: o Padre Laguérie acompanha Mons. Ducaud-Bourget desde 1972 em Laennec e abençoa a capela e reza as missas desde 1973. Em nota, ficamos sabendo que ele foi ordenado padre em 1979 (p. 285). Hipótese plausível: o escritor-fantasma de Levillain, encarregado por ela para as correções, não ousou assinalar os erros grosseiros do seu empregador… Esse tipo de obra é uma mancha na carreira de um historiador.

Sob o título “Vers Ecône” [Em direção a Ecône], da editora DDB, Philippe Bèguerie, antigo espiritano, adversário de sempre para Dom Lefebvre, publica um apaixonante dossiê e documentos inéditos sobre Dom Lefebvre anteriores a Ecône. Não nos deixa ignorar suas posições tomadas, mas nos oferece uma nova ilustração da constância do bispo de ferro.

GT

Um comentário sobre “Dom Marcel Lefebvre: 20 anos depois – O nosso dever de devoção.

  1. Pois é, Padre. É uma pena que o nascimento do IBP representou vários passos atrás do que realmente desejaria esse grande bispo de ferro para a sua FSSPX. Deixaram-se influenciar mediante certas promessas apresentadas pelas autoridades romanas em crise (também) de autoridade.

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