Quo Primum.

Nova Constituição Apostólica contra a Missa de sempre? E agora?

Há rumores de que, após a morte do Papa Bento XVI, o Cardeal Arthur Roche, prefeito do Discatério para o Culto Divino e a Disciplina dos sacramentos teria dito ao Papa Francisco: “Podemos, agora, assinar o documento”.

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Os primeiros vazamentos indicam que haveria não apenas maior repressão do rito romano tradicional – o qual não poderia mais ser celebrado exclusivamente em nenhuma igreja e nunca aos domingos, com total proibição do ritual romano e do pontifical tradicionais –, mas também os sacerdotes que celebram segundo o Vetus Ordo seriam obrigados a celebrar a Missa Nova.

Prevê-se que tais medidas possam impactar os institutos em que o uso do rito tradicional é permitido. Exatamente por isso, alguns grupos já começaram a argumentar em seu favor a partir do seu direito particular.

Trata-se de uma medida milimetricamente calculada pelos progressistas que se apoderaram do Vaticano, com Papa Francisco à cabeça, para promover uma espécie de “excomunhão branca”, um chega-pra-lá nos grupos tradicionais, para que os revolucionários tenham completa hegemonia na destruição do catolicismo de sempre.

Obviamente, os grandes favorecidos por tais previsões seriam os grupos tradicionalistas autônomos, os quais têm, naturalmente, crescido bastante nos últimos tempos desse pontificado tenebroso. Quem perde, lamentavelmente, é a Igreja como um todo, que ficaria ainda mais exposta ao debandar das paróquias uma parte qualitativamente significativa dos seus fiéis.

A nossa posição, a se concretizar o rumor, será a da simples desobediência a essas normativas totalmente descabidas. Quando promulgou o Missal, S. Pio V restaurou o Rito Romano em sua mais original fidelidade, com todo o desenvolvimento orgânico que ele “sofreu” ao longo dos séculos. Na Bula que o inicia, o Santo Papa escreve:

“Da mesma forma decretamos e declaramos que os Prelados, Administradores, Cônegos, Capelães e todos os outros Padres seculares, designados com qualquer denominação, ou Regulares, de qualquer Ordem, não sejam obrigados a celebrar a Missa de outro modo que o por Nós ordenado; nem sejam coagidos e forçados, por quem quer que seja, a modificar o presente Missal, e a presente Bula não poderá jamais, em tempo algum, ser revogada nem modificada, mas permanecerá sempre firme e válida, em toda a sua força” (Bula Quo Primum Tempore, art. 9).

A nossa resposta, portanto, é a da resistência filial, em total fidelidade à tradição, sem abandonarmos jamais a estrutura da Igreja, entregando-a aos vândalos, mas, ao contrário, marcando devidamente a nossa persistente e clara adesão à Missa de Sempre. Posição, de fato, que é a mais incômoda para os inimigos da Igreja e a mais sacrificada para nós, contando, exatamente por isso, com a marca distintiva dos verdadeiros discípulos de Nosso Senhor: a marca da Santa Cruz!

Francisco: “Número de grupos restauradores é impressionante”.

As múmias progressistas, embalsamadas desde os anos 60, não podem conceber que os jovens querem a Tradição e não as suas vãs ideologias.

papa-francesco-bergoglio-copVaticano, 14 jun. 22 / 03:57 pm (ACI).- O papa Francisco disse que há um “restauracionismo que chegou para amordaçar o Concílio’’. “O número de grupos ‘restauradores’ – por exemplo, existem muitos nos Estados Unidos – é impressionante” disse o papa em entrevista aos editores de revistas jesuítas da Europa. A entrevista, feita em 19 de maio, foi publicada hoje (14),

“Um bispo argentino me disse que lhe havia sido pedido para administrar uma diocese que havia caído nas mãos desses ‘restauradores’. Eles nunca haviam aceitado o Concílio. Há ideias, comportamentos que nascem de um ‘restauracionismo’ que basicamente não aceitou o Concílio”, disse o papa, também ele jesuíta.

Na entrevista, foi perguntado ao papa sobre o “caminho sinodal que alguns pensam ser herético”. O Caminho Sinodal Alemão começou em dezembro de 2019 e reúne bispos e leigos da Alemanha para abordar o exercício do “poder” na Igreja, a moral sexual, o sacerdócio e o papel da mulher na Igreja. Um documento aprovado pelo Caminho Sinodal Alemão propõe a mudança da dutrina moral da igreja sobre sexo, especialmente sobre homossexualismo, o fim do celibato sacerdotal e a ordenação de mulheres.

“O problema surge quando o caminho sinodal provém das elites intelectuais, teológicas, e é muito influenciado por pressões externas. Há algumas dioceses onde o caminho sinodal está sendo feito com os fiéis, com o povo, lentamente”, disse o papa.

Francisco também disse que falou ao bispo de Limburg  e presidente da Conferência Episcopal Alemã, dom Georg Bätzing, que “na Alemanha há uma Igreja evangélica muito boa. Não precisamos de duas”.

Foto da semana.

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As vestimentas sagradas tomaram forma no Oriente e no Ocidente entre os séculos V e VII. A Igreja entendia que, para o serviço divino, não se podia usar aquelas do trabalho ou militares, pois o sacerdote é um ministro que exerce a função de medidor entre o divino e o humano, dando continuidade à obra de Jesus Cristo.

O esplendor dos paramentos é para a glória e honra do Senhor e não do sacerdote que os veste, como ensinam os orientais.

Ao zombar da renda, demonstra-se uma dupla ignorância: teológica e ecumênica. Além disso, expõe-se agora, uma vez mais, o ministério petrino ao desprezo e ao ridículo. Mesmo através do corpo, o sacerdote deve transmitir uma coisa: ele foi feito digno de estar na presença do Senhor.

Quando estamos diante de outros mais importantes que nós, não prestamos atenção em como nos apresentamos? Não faremos isso para o serviço de Deus? As vestes especiais que o sacerdote usa significam que ele é uma nova criatura, chamado a realizar uma ação sublime e divina, que exige que o conjunto de virtudes simbolizadas pelas vestimentas individuais seja usado, esperamos, com fórmulas curtas de oração, presentes no Missal Romano de 1962.

Até os ortodoxos fazem isso. A sagrada liturgia não é feita de símbolos? Então, a renda é também um símbolo.

Padre Nicola Bux

Direito, não favor.

Por Padre Jerônimo Brow, FratresInUnum.com, 10 de abril de 2022: Nem sempre o profeta tem consciência de que é um profeta, ou, num campo menos “comprometedor”, nem sempre as pessoas têm plena consciência do significado do que estão dizendo.

Assim um avô, uma tia, um amigo podem nos dizer algo que para nós é praticamente uma resposta de Deus, enquanto para eles foi apenas um comentário, uma observação.

Quando Dom Lefebvre sagrou os quatro bispos em 1988, dentre outras coisas, ele falou sobre a Tradição reencontrar seu lugar em Roma.

Dom Fellay sendo ordenado por Dom Lefebvre.

Aqui, o Bispo foi absolutamente certeiro: não se trata de ter uma permissão maior ou menor para celebrar a missa tradicional, mas de que a própria Tradição reencontre seu lugar em Roma.

Nós todos presenciamos um momento em que a dita Missa de S. Pio V parecia ter voltado do exílio. Nesse tempo, muitos consideraram que Dom Lefebvre errara ao não se submeter às medidas que lhe foram impostas e que a Fraternidade S. Pio X teria quase obrigação de se retratar e “voltar” para a Igreja, uma vez que até figuras jurídicas já eram aplicadas a certos grupos ditos tradicionais, até mesmo com a “garantia” de se ter um Bispo.

Sim, durante algum tempo a Missa tradicional reencontrou seu lugar na própria Basílica Vaticana, mas a Tradição não reconquistou seus direitos em Roma.

Em muitos casos, o direito de os padres rezarem e os fiéis assistirem a Missa tradicional foi considerado um favor, uma misericórdia, uma compaixão.

Lamentavelmente, a Tradição não reencontrou seus direitos em Roma, e a crise sempre crescente, que passa pelas absurdas restrições impostas ao Rito Tradicional (não só à Missa), chegando ao culto da Pachamama, que parece não ser ainda o vértice negativo para o qual as autoridades despencam, tornam absolutamente ineficazes qualquer acordo com tais autoridades.

Porque os acordos para a celebração da Missa tradicional e um ou outro uso litúrgico é comprado pelo absoluto silêncio e, muitas vezes, com a própria participação nos grandes erros atuais.

Dom Lefebvre e Dom Mayer não queriam acordos para si ou para suas obras, queriam o bem da Santa Igreja. E esse bem jamais poderia acontecer sem que todas as autoridades da Igreja retomassem à Doutrina e à Moral autenticamente católicas, não apenas em suas declarações, mas, igualmente, em suas ações.

É por isso que muitos acordos com as autoridades hoje são completos desacordos com os fiéis que não podem entender como que da noite para o dia o que era mau ficou bom. Como que, sem nenhuma correção, o que antes era combatido agora é tudo como o amigo mais fiel. Ainda que se manipule até mesmo a memória de Dom Mayer ou Dom Lefebvre, no fundo se sabe que se está mentindo, que se é desonesto e covarde.

Os acordos hoje servem apenas para destruir o que resta de Tradição em certos meios, inserir o modernismo, o relativismo, criar falsos escrúpulos e escandalizar os fiéis.

“E o mundo gemeu ao acordar e ver-se ariano”.

Vós estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Chegará o tempo em que aquele que vos matar, julgará prestar culto a Deus.

Por Padre Antônio Mariano – FratresInUnum.com, 11 de dezembro de 2021: Os institutos religiosos e similares chamados tradicionais foram entregues ao Cardeal Braz de Aviz. Ao lobo foi entregue o cuidado das ovelhas.

A primeira coisa que se precisa ter em mente é que Francisco deseja, e está usando todos os meios para, destruir não a chamada “Missa Tradicional”, mas a Igreja Católica tal como a compreendemos.

Recordo-me de no meu tempo de Seminário, tínhamos a Missa em latim, com um Missal dado pessoalmente pelo Papa Paulo VI ao nosso Bispo. Nas primeiras páginas do Missal estava escrito à mão pelo nosso Bispo: “Presente Pessoal do Papa Paulo VI” e logo abaixo escrito em latim uma frase de S. Jerônimo: “E o mundo gemeu ao acordar e ver-se ariano”. Demorei alguns anos para compreender o que aquele velho missionário redentorista queria dizer com aquela frase.

O problema é que naquela época eu me contentava com migalhas de catolicismo verdadeiro. Como um cão debaixo da mesa, eu buscava faminto a missa “nova” em latim, os paramentos antigos que milagrosamente não foram queimados no seminário em que estudei (enquanto que, em torno da catedral, os moradores de rua andavam vestidos de sobrepelizes, dalmáticas e tunicelas, que o pároco jogara no lixo). Encontrava essas migalhas particularmente em instituições consideradas conservadoras, como o Opus Dei. E nas recordações de padres e bispos idosos que de vez em quando nos falavam de uma Missa, de uma Igreja, de uns Papas que nos pareciam tão distantes…

Um dia fomos arrumar o porão e percebemos que lá havia caixas com mitras cheias de pedras, luvas e uma estola minúscula que não tínhamos ideia de que para que serviria. Era o manípulo. “Coisa velha”, era a resposta geral para tudo.

Algumas leituras que fazíamos pareciam ser em outra língua. As penitências do Cura de Ars, a descrição da Missa de certos santos pareciam ser para nós coisas de uma outra religião. Mas, tínhamos aqui ou ali, alguma migalha.

Ouvimos então falar de um bispo rebelde, que não gostava do Papa e que era um herege cismático e excomungado: Mons. Lefebvre.

Mas a proximidade geográfica com Campos nos revelou que aquela Igreja, que nos parecia morta, estava viva. Que as migalhas que caíam da mesa eram de uma maravilhosa refeição que ainda era servida. De modo geral nossom comportamento com os padres de Campos (da então União Sacerdotal S. João Maria Vianney) ou com os monges de Friburgo era como se excomunhão fosse algo contagioso, e claro, eles eram todos excomungados.

Não havia internet. Nós tínhamos alguns livros e revistas que compartilhávamos como se fosse um pecado: “Ontem Hoje e Sempre”, “Sim, sim. Não, Não”, “Catolicismo”, “Permanência”… A imagem de Nossa Senhora de Fátima que chorou era proibida, mesmo em nossos quartos. A graça de Deus, a junção de algumas migalhas e um pouco de inteligência nos fazia chegar à brilhante conclusão de que havia vida antes do Concílio Vaticano II, e não só vida, santidade.

O nosso bispo dizia que gostava que usássemos batina. E o reitor dizia que não devíamos usar batina porque alguns padres não usavam sequer camisa clerical. Um dia, a mãe de um seminarista fez um barrete bonito. Era o que dava… De algum modo a notícia vazou… e o reitor, numa homilia (que Evangelho justificaria essa frase?), dizia que no Seminário ele não queria nem barrete nem porrete.

Mas, e as fotos de Dom Bosco? E o solidéu na cabeça de S. Vicente? Não se falava tanto da juventude e dos pobres? É claro que era algo externo, mas se aquela aparência não afastava nem os jovens nem os pobres, por que agora afastariam?

Depois nos ensinaram algo que deveria a grande norma de vida: nunca esteja mais alinhado que o bispo. Hoje compreendo o ridículo. Estávamos de batina, o bispo chegava de camisa clerical, correria… e se durante a refeição o bispo desabotoasse o botão da camisa clerical e tirasse o colarinho, parecia uma coreografia ensaiada ou um desfile militar da Coréia do Norte.

O fim do pontificado de João Paulo II trouxe o reconhecimento dos Arautos do Evangelho, a criação da Administração Apostólica, a canonização de S. Josemaría e os anos do Rosário e da Eucaristia com os documentos referentes. Um franciscano simplesmente nos disse certa vez que o Papa estava maluco e que essa gente era tudo farinha do mesmo saco. E nós sabíamos que não havia muita amizade entre essas pessoas.

Aliás o que mais ouvíamos dos religiosos de modo geral eram críticas ao Papa. E isso era considerado bom, porque assim é a Igreja: “Unidade na Diversidade”.

O pontificado de Bento XVI começou com uma frase de um sacerdote professor de uma universidade católica que o pudor me impede de reproduzir nesse artigo.

Bento XVI, com o Motu Proprio Summorum Pontificum, que apenas afirmava o que S. Pio V já tinha afirmado, explicita que nenhum sacerdote poderia ser proibido de celebrar a Santa Missa de acordo com o Missal promulgado pelo Concílio de Trento com as alterações feitas até 1962. Por uma graça imensa de Deus, foi nesse Rito que celebrei a minha primeira Missa. Mas não bastava a Missa. A Missa de S. Pio V exigia um tipo de sacerdote que eu ainda não era, com uma doutrina que ainda me faltava e com uma vida que eu ainda teria que adquirir.

Eu precisaria compreender que eu não era um presidente, mas um sacrificador.

Um santificador e não um animador.

E, graças ao apostolado de muitos leigos e alguns padres, surgiram as providenciais leituras, cursos, vídeos, sites… É claro que não daria certo colocar todo mundo na mesma sala, mas a internet nos possibilitava aprender a Missa com a Fraternidade S. Pio X, comprar paramentos com as irmãs da Administração Apostólica e aprender o catecismo com o Prof. Fedeli.

E, foram surgindo ou aparecendo comunidades, institutos, associações tradicionais. Nem sempre muito coerentes, mas era o que acontecia.

E o Pontificado de Bento XVI se desfaz com uma nebulosa renúncia.

E veio Francisco.

Francisco é o Papa que tomou posse do Papado.

Ele não se considera servo do Papado, mas o Papado é o modo com o qual ele pretende destruir o que ainda resta de católico.

E não se pode mais negar um fato sem cair na mentira ou na loucura.

E o mundo chorou ao se ver ariano…

Aquele ancião redentorista, como um outro ancião espiritano, percebeu o que vinha, o que já estava em curso. Mas cada um tomou um caminho diferente. Um caiu no golpe de mestre de Satanás: usar a obediência para destruir a Igreja; o outro compreendeu que resistir é o maior ato de veneração para com o Papa, se este caminha na direção oposta do que a Igreja sempre ensinou.

O golpe que Francisco desferiu na Missa Católica, foi um golpe desferido sobre a Igreja.

É claro que esse golpe foi preparado.

De uma hora para outra, tudo que conserva a Tradição na Igreja, mesmo que esporadicamente, se tornou “desconfiável”, abusos de qualquer ordem (geralmente variando entre sexual ou financeiro, ou ambos) começaram a pulular nesses Institutos, visitas apostólicas, supressões, expulsões se tornaram o pão nosso de cada dia de quem simplesmente quis conservar o que recebeu ou guardar o tesouro que encontrou.

E para muitos clérigos ou religiosos, o simples fato de saber que “o Papa não gosta” já é o suficiente para fazer o que reprovariam há menos de uma década, não por um ato de inteligência, mas por simples covardia, porque seria uma blasfêmia chamar isso de devoção.

E o machado cai até sobre instituições que estavam começando, frágeis, necessitadas de apoio e proteção. Foram crianças recém-nascidas abandonadas na noite fria da apostasia justamente por aqueles que deveriam ser seus protetores.

Aqui surge então a coragem de tantos leigos que, chegando a pôr em risco a própria vida, estão denunciando os erros desses apóstatas que se sentam em muitas sedes episcopais.

Mas esses bispos não sabem desses erros? Dessas corrupções, muitas vezes das mais abjetas, em seu clero aparentemente fiel e dentro da lei?

Sabem.

E o que fazem? Buscam corrigir esses erros? Ao menos fazem pesar com o mesmo peso a mão sobre eles como quando fazem conosco? Não. A resposta desses bispos covardes, a quem o nome bispo é uma profanação, é ameaçar os padres que não suportariam uma suspensão de ordens mesmo sabendo que é injusta, caso os leigos corajosos, para o bem da Igreja, exponham a chaga de seus falsos pastores.

Os leigos lutam contra os passaportes sanitários, enquanto que ontem em importante igreja dedicada à Imaculada, só se podia entrar com o comprovante de vacinação para venerar a Santíssima Virgem.

Senhor, o que mais nos aguarda?

Senhora, vencereis. Nós sabemos. Mas tende piedade de nós e não tardeis em esmagar com vossos níveos pés a serpente infernal.

Papa, Papado, Papismo.

Por Padre Antonio Mariano – FratresInUnum.com, 25 de outubro de 2021: Diante de uma crise cada vez maior na Santa Igreja, e uma crise que parece abalar um dos seus pilares que é o Papado, creio que talvez possa ajudar com alguma reflexão.

Eu sei que pode parecer frase de para-choque de caminhão, mas tempos difíceis não favorecem respostas fáceis. Diante da crise na Igreja, particularmente orbitada em torno da figura de Francisco, há, em minha opinião, duas respostas fáceis: o papismo e o sedevacantismo. Realmente os extremos se tocam.

O Papismo, que vemos seguido cegamente por todos aqueles que conseguiram algum status canônico na Igreja, justamente para o conservar, leva a considerar cada espirro de Francisco como um sopro do Espírito Santo para a Igreja. Francisco se torna a regra da fé.

Dentro da posição que chamo de Papista, podemos ainda encontrar grupos completamente opostos, que ou farão algum malabarismo silogístico para forçar todas as declarações de Francisco como verdadeiramente católicas, e acabarão se parecendo como aquela personagem de um programa humorístico que, por ser surda, dizia algo completamente diferente do que realmente foi dito. E também estão os papistas que nasceram no dia da eleição de Francisco, e que sempre se opondo aos Papas anteriores quando reafirmavam as coisas mais óbvias da fé, tornaram-se o mais fiel eco do novo Pontífice.

Isso não é por acaso.

Por exemplo: Francisco diz que os divorciados recasados devem ser acompanhados sacramentalmente. E isso é absolutamente verdadeiro. Mas também completamente dúbio.

É verdadeiro, porque o fato de que uma pessoa tenha se divorciado e se casado novamente não significa que ela não possa ter a decisão correta de, ao tomar consciência de seu estado de adultério, privar-se das intimidades conjugais, permanecendo, porém, sob o mesmo teto por alguma causa grave. Essa pessoa deve ser acompanhada sacramentalmente.

Mas os novos papistas dirão: “comunhão para todo mundo!”

Na primeira interpretação, veremos os ditos “conservadores” e, na segunda, os “progressistas”.

Seria louvável o esforço dos conservadores em espremer as declarações de Francisco na esperança de encontrar uma gota de ortodoxia se não caíssem, muitas vezes, em uma verdadeira desonestidade intelectual.

Parece termos diante de nós duas aves: um avestruz e um papagaio. Um mergulha a cabeça no buraco para não ver e o outro não se cansa de repetir os mantras do atual pontificado.

Diante do caos, surge então a outra resposta fácil: Francisco não é Papa.

A resposta é razoavelmente fácil, porque sendo assim, estamos diante de um antipapa que usurpou o trono de S. Pedro e que só merece o desprezo dos fiéis. Nessa questão, é necessário também considerar quando a Sé ficou vacante. Desde Pio XII? Desde João XXIII? Com o encontro de Assis feito por João Paulo II? Quando Bento XVI entrou numa mesquita? Ou na eleição de Francisco?

Essa resposta é razoavelmente fácil, mas traz conseqüências desastrosas porque, no final das contas, quem seria o verdadeiro clero? Qual missa seria lícita? Porque, se não há Papa e se nomeia um Papa no Cânon, isso seria um pecado… E, como se restabeleceria a ordem na Igreja se todos os Bispos e Padres não foram ordenados licitamente, ou mesmo validamente, nem receberam alguma real jurisdição? Isso sem falar no Colégio Cardinalício…

O sedevacantismo, em certo sentido, apazigua a consciência, mas cria muitos mais problemas que soluções.

Na atual circunstância, penso que manteremos nossa posição católica recorrendo à instituição do Papado, que é divina, e considerando em segundo lugar aquele que é o Papa.

O amor intelectual ao Papado deve ser maior que o amor sentimental ao Papa. Nesse sentido, consideraremos com a devida serenidade a situação de S. Vicente Ferrer e S. Catarina de Sena que chegaram a apoiar dois Papas diferentes (portanto um seria o antipapa, no caso, o de S. Vicente Ferrer) ou a exortação de S. João Bosco de que seus jovens não dissessem “Viva Pio IX!”, mas “Viva o Papa!”.

Os sedevacantistas geralmente assim se tornam porque, tal como os papistas, absolutizam o dogma da infalibilidade, que está estabelecido em circunstâncias bem peculiares. Não se trata de uma mágica ou de uma “possessão de algum espírito”, como já chegaram a afirmar os sedevacantistas, mas, sim, as ocasiões em que um Papa gozaria da infalibilidade seriam realmente bem raras.

É por isso que o amor ao Papado e a caridade para com o Pontífice levariam a resistir-lhe quando suas ações ou palavras não correspondessem à Fé da Igreja.

Penso no sermão que Dom Lefebvre proferiu nas sagrações episcopais, em Ecône, em 1988, no qual ele diz que “apesar de desejar, não poderia se submeter às autoridades romanas”. Creio que essa frase manifesta o ponto de equilíbrio e de justiça na atual situação.

Querer se submeter às autoridades romanas. A posição de Dom Lefebvre não parte de uma negação de que não exista mais autoridade, ao contrário, ele reconhece as autoridades e quer estar submetido a elas.

Porém, o que essas autoridades lhe pedem vai contra o que os antecessores dessas mesmas autoridades estabeleceram. Diante disso, a atitude que se toma é resistir a essas autoridades, crendo que um dia o Bom Deus trará essas autoridades à verdadeira fé.

Isso é muito difícil.

Pense num filho cujo pai é alcoólatra.

Ele ama seu pai, no entanto (e justamente por isso) deve reprovar suas atitudes e não compactuar jamais com seu vício, e ao mesmo tempo “desobedecer” as ordens iníquas que seu pai eventualmente lhe der.

Esse filho, ama e conhece a paternidade, sabe que é um dom de Deus e que ele, como filho, deveria se submeter. Porém, isso não é possível, porque aquele que ocupa esse lugar faz mal uso. Portanto, cabe ao filho, por amor a Deus, por amor à paternidade e por amor ao pai, resistir.

Que angústia não sente esse filho.

Que angústia sentimos nós.

Aquele que se alegra por não se submeter ao Papa não é católico.

Mas hoje, o Senhor nos convida, no passo da Paixão em que está a Santa Igreja, a bebermos do cálice da angústia e comer do pão das lágrimas.

Bebamos até a última gota, recolhamos cada migalha desse pão. Crendo que, não por acaso, o salmo com o qual começamos a Santa Missa seja um apelo de uma alma angustiada, injustiçada, perseguida, cuja única esperança é esperar no Senhor.

Os guardiães da Tradição.

Por Dr. Augusto Mendes 

FratresInUnum.com, 15 de outubro de 2021 – O Brasil presencia um sólido movimento editorial católico, algo que impressiona qualquer observador um pouco mais vivido. Em 2005, ou mesmo em 2010, dificilmente poderíamos imaginar que alguns anos depois veríamos o surgimento de novas casas editoriais, uma avalanche de novas publicações, o resgate de obras consagradas e até mesmo o surgimento de importantes autores nacionais.

In illo tempore, apesar das grandes editoras nominalmente católicas do país, encontrar livros verdadeiramente católicos nem sempre era fácil. Em muitos casos, era um desafio insuperável. É verdade que certos clássicos das letras católicas nunca deixaram as prateleiras, como é o caso da Imitação de Cristo, da Filotéia, do Tratado da Verdadeira Devoção e da História de uma Alma, mas é igualmente verdade que as ausências eram muito mais amplas e notáveis.

Pensemos, por exemplo, no doutor comum do Igreja, Santo Tomás de Aquino, um mestre para todas as gerações e, portanto, um autor que deveria ser publicado e republicado initerruptamente em todo e qualquer país católico. Se é verdade que sua Suma Teológica estava disponível em uma tradução de qualidade já no início do século XXI, todos seus outros livros – e são tantos! – só eram encontrados em sebos, e mesmo assim com bastante dificuldade e por um alto preço. Os tomistas amargavam um esquecimento ainda pior. Garrigou-Lagrange, Cornelio Fabro, Sertillanges, Grabmann e outros mestres ou nunca haviam sido apresentados ao leitor brasileiro ou o foram há uma ou duas gerações. Mesmo um Nicolas Derise, que podemos considerar como nosso contemporâneo, ou um brasileiro como o Padre Maurílio Teixeira-Leite Penido, eram sumamente desconhecidos ou marginalizados.

Não podemos pensar que o problema era a falta de leitores interessados, pois mesmo autores que haviam granjeado fama no passado recente padeciam no limbo editorial esperando rever a luz. Há pouco mais de uma década, Chesterton estava apenas dando seus primeiros passos entre nossas estantes, Bernanos, que havia escolhido nosso país como sua pátria, era solenemente ignorado pelas últimas duas gerações de brasileiros; mesmo os naturais da terra, católicos genuinamente brasileiros, nascidos em uma pátria genuinamente católica, como o Padre Leonel Franca ou João Camilo de Oliveira Torres, foram tratados, até outro dia, como se fossem alienígenas, como se nunca tivessem pisado nessa terra. Eram representantes de um passado que muitos buscavam ativamente enterrar. Na faculdade tive uma professora que havia sido aluna do citado João Camilo. Quando falava dele era somente para criticar seus livros e explicar que tudo o que ele escreveu tinha pouco valor, era enviesado, porque ele era – na sua expressão inesquecível – “muito catolicão”.

Se pensarmos não mais nas pessoas, mas nos temas, veremos que a carestia de então era enorme. Sobre temas tão relevantes como Psicologia, Direito, História, Literatura, Economia, Filosofia e Teologia, nos seus diversos ramos e desdobramentos, não havia – e ainda hoje não há na medida adequada – obras escritas de uma perspectiva católica em circulação no mercado brasileiro.

Outra marcante ausência editorial era de obras ligadas ao movimento tradicionalista. Lembro-me de que a primeira vez que tive em mãos “Do Liberalismo à Apostasia” de Dom Marcel Lefebvre foi em uma cópia xerográfica feita por um amigo que havia viajado até o Rio de Janeiro e lá, graças ao contato direto com um tradicionalista “das antigas”, tinha conseguido copiar a velha edição, praticamente amadora, da Permanência, que mais se parecia com um caderno datilografado. Obras que só eram encontradas em língua estrangeira e adquiridas após bastante pesquisa e a um alto preço – Iota Unum ou a biografia de Dom Lefebvre – são hoje compradas com um clique do mouse e por um preço bastante razoável.

Todas essas lacunas editoriais são graves, mas não tanto quanto a que agora será sanada. Os doutores da Igreja, os grandes escolásticos, os apologetas, os catequistas, missionários, sermonistas, todos aqueles que exercem alguma atividade na Igreja, bebem, necessariamente, da mesma fonte: o magistério papal. O magistério pontifício, farol da verdade divina no ápice da Igreja, aquele que ilumina todos os católicos, em todas as épocas, que desfaz os erros, vence as heresias e guia a todos nos caminhos da verdade e vida. Era exatamente esse magistério que andava ausente das editoras católicas. É verdade que algumas encíclicas, especialmente dos Papas do século XIX e XX ainda são publicadas, é certo que temos compilações bem vastas de documentos pontifícios, como é o caso do Denzinger, mas também é verdade que não há nada tão amplo quanto o que está sendo preparado agora. A coleção Guardiões da Tradição englobará 250 documentos pontifícios (Bulas, Encíclicas e Alocuções) criteriosamente selecionadas para representar o ensinamento dos Papas ao longo dos dois milênios da história cristã nos seus pontos mais relevantes.

Os documentos serão publicados na sua integralidade – e não em seus trechos selecionados, como no Denzinger – e, sempre que necessário, acompanhados de notas explicativas. Haverá para cada documento uma breve introdução explicitando seu conteúdo e as razões de sua publicação. Os 250 documentos serão organizados cronologicamente, indo do Papa Cornélio (251-253) até Pio XI (1922-1939), e cada Pontífice receberá uma substanciosa apresentação, de forma que o livro poderá ser visto, também, como uma Enciclopédia dos principais Papas. Detalhados índices onomásticos e temáticos farão da coleção uma obra de consulta incontornável para todo católico que pretenda conhecer melhor a doutrina da Igreja nas suas fontes mais seguras.

Os temas abordados são os bem variados, indo das mais altas questões teológicas aos mais simples problemas sociais. Aquilo que os papas ensinaram sobre a Santíssima Trindade, as naturezas de Cristo e sua ação salvífica, as qualidades especialíssimas da Virgem Maria, a natureza da Igreja, a economia da salvação, a graça santificante, o papel da oração e as mais diversas questões litúrgicas terão destaque. O surgimento das ordens religiosas, a criação das faculdades na Idade Média, a canonização de determinados santos, as condenações das diversas heresias, a convocação para as cruzadas e a instituição da Inquisição serão apresentadas nos seus documentos originais. Questões políticas e sociais também terão lugar nesse vasto repertório: a liberdade da Igreja e de seus fiéis frente o Estado, os deveres dos governantes para com a Igreja, a verdadeira educação católica, os direitos dos trabalhadores, a moral católica aplicada à vida matrimonial e familiar, bem como a materialização da fé nas diversas formas de encontrarão o devido tratamento pela mão de mestre dos Papas. As mais controversas questões científicas, filosóficas, históricas e exegéticas também serão contempladas por essa ampla compilação de documentos pontifícios, apresentando aos leitores a solução para muitos problemas de ordem especulativa, ou, pelo menos, estabelecendo os pontos fundamentais que permitirão investigações seguras e intelectualmente frutuosas.

Dada a profusão de documentos pontifícios, estima-se que a coleção terá cinco volumes com cerca de 600 páginas cada um. Parte considerável desses documentos não se encontra publicada no Brasil e nem mesmo acessível em língua portuguesa na internet. A maior parte será vertida do original latino e, quando não for possível, as traduções mais confiáveis serão usadas para se chegar ao texto em português.

Além do óbvio interesse teológico dessa publicação, os cultores da Filosofia e da História também irão se beneficiar do estudo desses documentos, pois muitos deles inserem-se nos pontos fulcrais não só da histórica eclesiástica como também da história política e do pensamento.

No momento em que a doutrina católica tradicional se torna cada vez menos conhecida e seus tesouros são cada vez mais depauperados por aqueles mesmos que deveriam ser seus fiéis defensores, cabe a nós nos voltarmos àqueles antigos e fiéis Guardiões da Tradições que agora serão apresentados ao leitor brasileiro.

* * *

Para adquirir a coleção Guardiões da Tradição, basta ir ao site https://editora.centrodombosco.org/

Carta aberta do Pe. Paul Aulagnier (+ 06-05-2021) do IBP ao Papa Bento XVI.

Faleceu ontem padre Paul Aulagnier, um dos fundadores do Instituto do Bom Pastor e dos primeiros discípulos de dom Lefebvre. Há diversas publicações dele no histórico de nosso blog — a seguir, republicamos um post de 2009. RIP.

Original em La Revue Item

Tradução de Marcelo de Souza e Silva

Santíssimo Padre,

Permiti-me dirigir-me a vós com toda simplicidade de coração, com toda lealdade num espírito filial. Permiti-me expressar minha inquietação… desta maneira em uma «carta aberta», minha estupefação sobre um ponto preciso: a condenação de Dom Lefèbvre. Não compreendo porque vós não reexaminais este assunto.

Esta é a razão desta minha defesa.

Vós bem sabeis que ele foi um grande prelado, um grande missionário. Delegado apostólico para a África de língua francesa. Ele foi o grande defensor da Igreja em terras africanas. Deixou, quando de lá partiu, uma obra extraordinária. Tal é o reconhecimento de todos. Tudo isso postula em seu favor.

Tendo ele retornado à França, foi nomeado pelo Papa João XXIII, Arcebispo-bispo de Tulle, pôs-se então à tarefa sem ressentimentos e com o mesmo zelo que na África. Uma única coisa lhe interessava: servir a Igreja na fidelidade ao Sumo Pontífice. Apenas nomeado para a diocese de Tulle, ele foi eleito superior geral da Congregação dos Padres do Espírito Santo, uma congregação forte que contava mais de cinco mil membros no mundo todo.

O Concílio Ecumênico do Vaticano II fora então convocado pelo Papa João XXIII. Enquanto superior geral ele participou das sessões preparatórias do Concílio. Ele nos contou tudo… assim que tivemos a graça de conhecê-lo primeiro em Roma depois e em seguida em Ecône.

Abbé Paul AulagnierDolorosamente afetado pela crise sacerdotal, pelo colapso das vocações no Ocidente e pela perda do senso sacerdotal, tendo sido liberado de todas as suas responsabilidades – ele apresentou sua demissão, Roma o aconselhara a tal – ele decidiu enfim fazer de tudo para lutar contra. Fundou seu seminário em Friburgo com a autorização episcopal de Dom Charrière e com os encorajamentos do Cardeal Journet. Ele criou seu instituto sacerdotal: a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, sempre com a autorização de Dom Charrière, Bispo de Friburgo-Lausanne-Genebra. Que alegria foi a sua logo que recebeu o decreto do bispo! Uma alegria própria da Igreja! Ele nos ensinou a grandeza do sacerdócio, seu papel, seu sentido.  Ele nos fez apreciar o tesouro da Missa, da Missa Católica. Ele nos fez relembrar sua finalidade, seus frutos e sua importância para o sacerdote e para os fiéis. Ele nos deu desde o coração até a obra um «moral de ferro». Ele multiplicou seus contatos para permitir a expansão de sua obra. Ele era incansável.

Chegou o ano de 1969, abril de 1969. Deu-se a publicação da Constituição Missale Romanum e do novo rito da Missa, a Nova Missa de Paulo VI. Terrível reforma litúrgica… contestada, contestável, que ia abalar desde as bases ao cume a Santa Igreja e sua unidade.

Teólogos se levantaram para se opor a aquilo, cardeais também. Intelectuais de renome fizeram ouvir sua voz. Para citar apenas um nome, permiti que eu invoque o Cardeal Ottaviani. Em uma carta ao Sumo Pontífice, Paulo VI, ele lhe apresentou uma crítica ao novo rito pedindo-lhe «ab-rogar este novo rito ou, ao menos, não privar o orbe católico, da possibilidade de continuar a recorrer à integridade e fecundidade do Missal Romano de São Pio V». Tudo isso provocou grande celeuma. Dom Lefèbvre tomou posição tarde demais.

Foi somente em 2 de junho de 1971 que ele reuniu em Ecône seu corpo docente e os seminaristas. No dia seguinte, ele foi ter com «os teólogos» e os seminaristas. Ele expôs sua posição. Explicou sua intransigência, seu «non possumus», com argumentos claros. Ele nos deixou, ao fim desta conferência, um texto, um pequeno texto que resumia sua corrente de pensamento. Naquela época, eu, seminarista, guardei ciosamente esse texto. Com freqüência eu o lia e relia. A posição de nosso fundador é simples, doutrinal, fundamentada sobre a mais segura teologia, sobre os decretos solenes do Concílio de Trento e sobre os princípios do Direito Canônico. Esta posição era púbica. Ela está escrita. Nas conferências ele jamais cessou de explicá-la e de justificá-la.

Ora, foi em razão dessa posição sobre a Missa que Dom Lefèbvre foi condenado.

Sua fundação foi tratada inicialmente como «selvagem». O primeiro a pronunciar tal termo foi Dom Etchegaray. Ele era naquela época Arcebispo de Marselha… Primeira afirmação falsa: Seu seminário não tinha nada de selvagem, tampouco seu instituto. «Tudo» foi aprovado por Dom Charrière, por Dom Adam. A fundação de Albano gozou do beneplácito do bispo local. Nada de «selvagem» a bem da verdade. Muito ao contrário, Dom Lefèbvre, como homem da Igreja, respeitador de suas leis, quis fazer tudo de acordo com as autorizações necessárias. E foi assim que ele fez. Mas pouco importava, ele não estava mais na linha. Porque ele não queria seguir cegamente as reformas conciliares… Tendo ele impedido que se voltasse atrás, era necessário desacreditá-lo. Suas fundações só poderiam ser classificadas como selvagens e condenadas.

Iniciava-se o ciclo infernal.

Então teve lugar uma visita canônica. Dom Onclin e Dom Deschamps foram enviados de Roma. Eles tinham propostas «novas» de tal forma que Dom Lefèbvre precisou protestar logo que ambos partiram. Foi quando surgiu então seu protesto de Fé de 24 de Novembro de 1974. Deus! Como tal declaração fez jorrar tinta! Como foi comentada! No exterior e no interior… e pelo próprio corpo docente. Era necessário que Dom Lefèbvre se retratasse. «Ele assinara sua própria condenação»… E foi então intimado em Roma diante de uma comissão «ad hoc», diante do Cardeal Garonne, Cardeal Wright e Cardeal Tabera. Eles tentaram convencê-lo da «futilidade» de sua posição. Tentativa inútil. Eles não imaginaram que encontrariam tamanha segurança, tamanha força, a força simples da doutrina católica, amada mais que a si mesmo.

Não podendo convencê-lo, era necessário esmagá-lo. Assim, sobrevieram-lhe as sanções canônicas. As pressões psicológicas foram terríveis a princípio.

Houve a ameaça de se fechar o seminário da Fraternidade. Como as ameaças não o detiveram, delas se passou para as sanções. E foi Dom Mamie, Bispo de Friburgo, que tomou a frente em tudo isso. Ao pobre, foi-lhe dada ordem de não realizar as ordenações do dia 29 de Junho de 1976. Terrível dilema do qual eu fui uma testemunha privilegiada. Na noite do dia 28, em meu escritório, ele ainda buscava uma solução… pesava os prós e os contras… A festa já se aproximava com todo seu fulgor.

Tudo estava pronto… «apesar de tudo, dizia-me ele, podemos ainda não fazer as ordenações». Ele era de uma calma suprema, tranqüilo. E no dia 29, diante de uma imensa multidão, ele explicou sua atitude. Ele falou com clareza e sem meios termos: nossa fidelidade à missa de sempre, à missa codificada, e mesmo canonizada por São Pio V é a causa de nossas dificuldades com Roma.

A sanção canônica sobreveio em 22 de Julho de 1976. Ele foi declarado «suspenso a divinis». Ele não poderia exercer nenhum poder inerente ao seu estado sacerdotal e episcopal. Em Lille, aos 29 de Agosto de 1976, ele explicou tudo novamente. Ele falou abertamente da reforma litúrgica, da reforma da missa, da missa «equívoca». Foi lá que ele falou da missa «híbrida»: «a Nova Missa é uma espécie de missa híbrida que não é hierárquica, mas democrática, onde a assembléia ocupa lugar mais importante que o sacerdote». Pode-se resumir a posição de Dom Lefèbvre dizendo que ele rejeita a nova missa porque ela é equívoca, mais protestante que católica, distante da Tradição católica e até mesmo em total ruptura com a Tradição e os dogmas católicos.

E o conflito perdurou. Hoje, vós sois a autoridade. É por isso que eu me dirijo a vós. Vós tendes mantido a condenação de Dom Lefèbvre, de sua fundação, de seus sacerdotes porque eles querem permanecer fiéis a esta Missa católica para salvaguardar sua Fé, garantia da eternidade.

No entanto, vós, quando éreis cardeal, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, vós vos tornastes bem severo quanto a essa reforma litúrgica que nos entristece.

Permiti que eu vos cite.

Vós prefaciastes um livro de Monsenhor Gamber em sua edição francesa gratamente difundida por Dom Gérard Calvet e intitulada A Reforma Litúrgica em Questão. Neste prefácio, vós elogiastes Monsenhor Gamber por sua obra teológica e litúrgica. Vós o recomendastes fortemente e fizestes dele um modelo, «um padre» desse renovar litúrgico que  trouxestes e ainda traz entre todos os vossos anseios. «Esse novo recomeço precisa de padres que lhe sejam modelos… Quem procura hoje tais padres encontrará um sem sombra de dúvida na pessoa de Monsenhor Klaus Gamber… ele poderia com sua destreza litúrgica – vós o dissestes – tornar-se um padre do novo recomeço» (p. 7). Não se pode ser mais claro.

Vós criticais «graciosamente» neste prefácio a reforma litúrgica. Vós afirmais que «a liturgia é (deve ser) um desenvolvimento contínuo», harmonioso (p. 7). E de fato a liturgia católica foi isto, aquela codificada por São Pio V. Ela evoluiu harmoniosamente através dos séculos. Tal se pode dizer tanto da liturgia quanto da doutrina católica. Não há pior herético que o «fixista». Não há nada mais radicalmente estático que a morte. A liturgia católica não é isso. Nós bem o sabemos. Isto posto, vós partis «em guerra» contra a liturgia reformada oriunda do Concílio Vaticano II. «O que se deu após o Concílio significa uma outra coisa: no lugar da liturgia, fruto do desenvolvimento contínuo, foi colocada uma liturgia fabricada. Saiu-se do processo vivo de crescimento e de transformação para se vagar na fabricação». Esta é a obra de Dom Bugnini. «Não se quis continuar a transformação e a maturação orgânica do ser vivo pelos séculos e as substituíram – segundo um modo de produção técnico – pela fabricação, produto banal do momento» (p. 7).

Vós dissestes também: «A liturgia não é o produto do nosso fazer». Esta é a grande idéia de Monsenhor Gamber. Dom Lefèbvre teria sido desta mesma opinião, ele que sustentou até a ruptura as reformas de São Pio X, de Pio XII e mesmo de João XXIII em matéria litúrgica, contra certos seminaristas americanos que as rejeitavam.

Vós nos pedistes que pendêssemos para o pensamento de Monsenhor Gamber, que nós o tomássemos por nosso. Vós destes uma aprovação sentida de sua obra. É o que eu tenho feito.

Por vossa recomendação, eu li este livro. Devo confessar que jamais encontrei crítica tão forte, tão radical à Nova Missa mesmo sob a pena de Dom Lefèbvre.

Então observe agora minha questão. Vêde onde quero chegar. Vêde o que eu quereria vos dizer se vós me recebêsseis: «Por que aprovar tão denodadamente Monsenhor Gamber, aplaudi-lo, recomendá-lo e continuar a reprovar Dom Lefèbvre?» Monsenhor Gamber é, porém, ainda mais severo em sua crítica ao novo rito que Dom Lefèbvre. Não haveria então dois pesos e duas medidas? Eis meu pasmo e mesmo minha angústia!

Vêde algumas críticas de Monsenhor Gamber: «Colocou-se, doravante (com a reforma litúrgica) e de modo exagerado, o peso sobre a atividade dos participantes, deixando num segundo plano o elemento cultual» (p. 15).

Foi isso que Dom Lefèbvre afirmou em Lille, nem mais, nem menos. «Esse (elemento cultual, i.e. o Sacrifício, a própria ação eucarística) foi empobrecida mais e mais no nosso meio». «Do mesmo modo, agora falta em larga medida a solenidade que faz parte de toda a ação cultual, sobretudo se esta é realizada diante de uma grande multidão» (p. 12). É isso o que nós dizemos, nem mais, nem menos. Monsenhor Gamber ousa escrever a este respeito: «Em lugar da solenidade vê-se reinar freqüentemente uma austeridade calvinista» (p. 13).

Monsenhor Gamber prossegue… «Não raro, vemos certos ritos serem desprezados pelos próprios pastores e deixados de lado sob pretexto de que seriam antiquados: não se quer deixar suspeitar que se teria fracassado o trem da evolução moderna. Não obstante, uma multidão do povo cristão permanece ligada a tais formas antigas cheias de piedade. Os reformadores de hoje, muito apressados, não consideraram suficientemente até que ponto, no espírito dos fiéis, a doutrina e as formas piedosas coincidem. Para muitos modificar as formas piedosas significa modificar a fé».

Prefaciando este livro, vós destes vossa aprovação a esta crítica geral.

Dom Lefèbvre disse a mesma coisa. Ele não cessou durante toda a sua vida de nos lembrar o axioma fundamental em matéria litúrgica: lex orandi, lex credendi. Foi o tema de sua conferência – entre mais de mil – de 15 de Fevereiro de 1975, dada em Florença: «Para muitos, modificar as formas tradicionais significa modificar a fé».

«Os responsáveis na Igreja não escutaram a voz daqueles que não cessaram de adverti-los pedindo-lhes que não suprimissem o Missal romano tradicional (e autorizassem a nova liturgia somente em certo limites e «ad experimentum»)… Hoje, eis infelizmente esta situação: numerosos bispos se calam diante de quase todas as experiências litúrgicas, mas reprimem mais ou menos severamente o sacerdote que, por razões objetivas ou de consciência, se prende à antiga liturgia» (p. 14).

Foi a essa constatação que chegaram os «Grandes» no cardinalato. Foi isso o constatado por Dom Lefèbvre. Era isso o que fazia com que Dom Lefèbvre se ativesse por razões objetivas ou de consciência à antiga liturgia.

Então, já que vós sustentastes o pensamento de Monsenhor Gamber, visto haverdes prefaciado seu livro, querei, eu vos suplico fazer abrir o dossiê «questão Lefèbvre» e o julgar em bom e devido modo.

Monsenhor Gamber é deveras severo… contra essa reforma litúrgica. Após ter reconhecido que «as inovações litúrgicas» são possíveis, mas que tudo deve ser feito «com bom senso e prudência». Isso não é a razão última, mas pouco importa, ele conclui voltando-se então para o concreto da reforma litúrgica nascida do Concílio Vaticano II: «A ruptura com a Tradição está doravante consumada». Ele sublinha ainda: «Pela introdução da nova forma da celebração da Missa (trata-se aqui do próprio rito novo) e dos novos livros litúrgicos, e ainda mais pela liturgia concedida tacitamente pelas autoridades, organizada livremente na celebração da missa sem que se possa auferir de tudo isso uma vantagem do ponto de vista pastoral (e isto é o mínimo que se pode dizer!), juntamente a tudo isso, prossegue ele, constata-se em larga medida, uma decadência da vida religiosa que, é verdade, tem também outras causas. As esperanças postas na reforma litúrgica – já se pode dizer – não foram realizadas».

Vós prefaciastes isto.

Dom Lefèbvre jamais usou termos tão fortes e brutais.

Por graça! Retomai o dossiê. Dai nova vida ao recurso que o próprio Dom Lefèbvre levou às mãos do Prefeito da «Assinatura Apostólica» da época, mas que este último não pôde tratar por ordem do onipotente Cardeal Dom Villot. Hoje, vós tendes poder para isso. Fazei cessar a injustiça na Igreja… na França de modo particular… Fazei cessar a injustiça contra Dom Lefèbvre.

Vêde ainda! «De ano em ano, a reforma litúrgica, louvada com excesso de idealismo e grandes esperanças por numerosos sacerdotes e leigos, prova ser, como nós já havíamos dito, uma desolação de proporção assustadora». (p. 15)

Dom Lefèbvre disse isso, mas digo que jamais o fez tão fortemente.

Nosso autor prossegue: «Em vez das esperadas renovação da Igreja e da vida eclesiástica, nós assistimos a um desmantelamento dos valores da Fé e da piedade que nos foram transmitidas, já no lugar de uma renovação fecunda da liturgia, vemos uma destruição das formas da missa que foram organicamente desenvolvidas no curso dos séculos» (p. 15).

Vós aprovastes este julgamento, vós o prefaciastes elogiosamente. Dom Lefèbvre, que não disse nada além disso, foi condenado, mas Monsenhor Gamber foi aplaudido.

Prossigo minha leitura: «…a isto some-se uma amedrontadora aproximação das concepções do protestantismo sob a bandeira de um ecumenismo mal compreendido… Isto significa nada menos que o abandono de uma tradição até então comum ao Oriente e ao Ocidente» (p. 15).

Dom Lefèbvre não disse outra coisa. Foi o que ele disse em um artigo publicado em 1971 em La Pensée Catholique – mas já escrito em pleno Concílio: «Para se permanecer católico seria necessário tornar-se protestante?»… E ele concluía: «Não se pode imitar os protestantes indefinidamente sem de fato se tornar um». Mas eu julgo Monsenhor Gamber mais categórico ainda. Ele mesmo fala «de uma amedrontadora aproximação das concepções do protestantismo». A linha de pensamento é a mesma!

Então como é possível tecer louvores a um, Monsenhor Gamber, e continuar a condenar o outro, Dom Lefèbvre. Ambos dizem o mesmo.

Por graça, abri novamente o processo de Dom Lefèbvre. Esta é uma súplica legítima.

Monsenhor Gamber, em um segundo capítulo, trata da «ruína» do rito romano. Ele o pranteia, como vós o fazeis em vosso Motu Proprio Summorum Pontificum. De tal modo ele avança em sua análise que chega ao ponto de dizer que o rito novo, sem ser de per si inválido – o que Dom Lefèbvre jamais disse – é celebrado com mais e mais freqüência de maneira inválida. Dom Lefèbvre disse exatamente a mesma coisa. Nem mais, nem menos. Ele é apenas um pouco mais preciso: «Todas essas mudanças no novo rito são realmente perigosas, porque pouco a pouco, sobretudo para os jovens sacerdotes que não mais têm a idéia de sacrifício, da presença real e da transubstanciação, e para os quais tudo isso não significa mais nada, esses jovens sacerdotes perdem a intenção de fazer o que a Igreja faz e não celebram mais missas válidas» (Conferência de Florença de 15 de Fevereiro de 1975).

Esta foi a grande preocupação de João Paulo II no fim de seu reinado, sobremodo expressa em sua encíclica «Ecclesia de Eucharistia».

Eu passo, pois, ao capítulo IV do livro: o julgamento do prelado é terrível.

Ele expõe a princípio, brevemente, porém adequadamente, a reforma luterana, a reforma que Lutero fez a Missa católica sofrer, a Missa romana. «O primeiro, escreveu ele, a ter empreendido uma reforma da liturgia e isso em razão de considerações teológicas foi, incontestavelmente, Martinho Lutero. Ele negava o caráter sacrificial da Missa e por isso se escandalizava com certas partes da Missa, em particular as orações sacrificiais do Cânon» (p. 41).

Daí advém a reforma que ele empreendeu da missa e logo de início suprimiu as orações sacrificiais, mas ele agiu prudentemente – com a prudência da carne – para não chocar e criar reações.

Ora, nada de tão comparável com a reforma litúrgica conciliar.

Monsenhor Gamber é terrível. Ele afirma inicialmente que se agiu muito brutalmente no Concílio: «A nova organização da liturgia e, sobretudo, as modificações profundas do rito da Missa que apareceram sob o pontificado de Paulo VI e entrementes se tornaram obrigatórias – pode-se legitimamente discutir este ponto – foram muito mais radicais que a reforma litúrgica de Lutero e levaram muito menos em conta o sentimento popular» (p. 42).

Depois, ele afirma que alguns elementos da doutrina protestante foram levados em conta para justificar a reforma litúrgica. Ele fala ainda da «repressão do elemento latrêutico», «a supressão das formulas trinitária», e enfim do «enfraquecimento do papel do sacerdote». Aqui se encontra, pura e simplesmente, as afirmações de Dom Lefèbvre, aquelas do «Breve Exame Crítico» apresentado ao Papa pelo Cardeal Ottaviani. E diz ainda que «não foi suficientemente esclarecido em que medida, tanto aqui quanto no caso de Lutero, as considerações dogmáticas puderam exercer alguma influência» (p. 42).

Ele reconhece que «foi a nova teologia (liberal) que apadrinhou a reforma conciliar». Ele se ressente de que o Papa Paulo VI não tivesse acreditado que deveria ter levado a sério «as críticas dogmáticas», «nem as imperiosas e ásperas repreensões dos cardeais de mérito – como aqui não se pensar no Cardeal Ottaviani, no Cardeal Bacci, os quais haviam lançado objeções dogmáticas quanto ao novo rito da missa – nem as instantes súplicas provenientes de todas as partes do mundo impediram Paulo VI de introduzir imperativamente o novo missal» (p. 43).

Assim, para Monsenhor Gamber cuja doutrina vós tanto nos recomendais, o «Novo Ordo Missae» teria «odores» protestantes pelos traços de teologia protestante, teologia liberal.

Confessai que tudo isso, objetivamente, pode impedir qualquer entusiasmo de celebrá-lo e torna difícil falar de «santidade» ou de «valor» do novo rito como vós nos pedis para fazê-lo na carta que endereçastes aos bispos. A contradição permanece!

Vós aprovastes estas críticas. Por que então continuais a condenar Dom Lefèbvre?

Seu erro foi talvez ter tido razão cedo demais, ou de ter sido, em sua época, um bispo de caráter… Mas se ele demonstrava essa qualidade quem poderia com razão criticá-lo, ainda mais por tal lucidez e tamanha força? Foram estes os motivos da condenação?

Após estas críticas gerais, Monsenhor Gamber chega a um ponto mais peculiar: à prex eucharistica. Ainda nesse ponto a crítica permanece terrível. «Os três novos cânons constituem por si mesmos uma ruptura completa com a tradição. Eles foram compostos de acordo com modelos orientais e galicanos, e representam, ao menos em seu estilo, um corpo estranho no rito romano» (49). Ele aprofunda um pouco mais em seu «menu» até as palavras da consagração, e é ainda mais severo: «A modificação ordenada por Paulo VI das palavras da consagração e das frases que se seguem… não tinha a menor utilidade para a pastoral. A tradução de «pro multis» para «por todos» que se refere a concepções teológicas modernas e que não é de modo algum encontrado em nenhum texto litúrgico antigo, é duvidosa e tem na verdade causado escândalo» (p. 50).

Monsenhor Gamber estava chocado, deveras chocado, com a mudança do termo «mysterium fidei» da fórmula da consagração do vinho. Mas sua explicação é luminosa: «Do ponto de vista do rito, é para se ficar estupefato ao ver que se tenha podido retirar, sem razão, o termo «mysterium fidei» inserido nas palavras da consagração desde por volta do século VI, para lhes conferir um significado novo; ele se tornou uma exclamação do sacerdote após a consagração. Uma exclamação desse tipo jamais esteve em uso. A resposta da assembléia: «Proclamamos, Senhor, a vossa morte…» só é encontrada em anáforas egípcias. Porém é estranha aos ritos orientais e a todas as orações eucarísticas ocidentais e está em total desconformidade com o estilo do cânon romano» (p. 50).

Desse modo, nós nos prontificamos a nos ater a crítica de Monsenhor Gamber. Eu creio que ela basta para poder justificar nossa posição prática. No entanto, porque quisemos permanecer ligados a estas críticas, àquelas do Breve Exame Crítico, que são as mesmas, nós fomos praticamente excomungados, cassados de nossas igrejas, nós fomos tomados por retrógrados. E nos disseram que não temos o senso da Tradição…

Mas então porque elevar às nuvens Monsenhor Gamber e continuar a combater Dom Lefèbvre? Eu não entendo.

Não haveria injustiça nisso? Eis o que eu tenho em meu coração e o que eu quero vos dizer, vós que sois o pai de todos.

Monsenhor Gamber vem a concluir o capítulo por este veredito: «Com o novo, quis-se mostrar aberto à nova teologia, tão equívoca, aberta ao mundo de hoje» (p. 54). «O que é certo é que o novo Ordo Missae, desta forma, não recebeu o assentimento da maioria dos padres conciliares».

Incrível!

Esta única afirmação deveria bastar para que qualquer um se ativesse firmemente ao antigo rito… «Mas vós não tendes o espírito do Concílio»! Esta arma que mata. No entanto, o que é este espírito do Concílio que é necessário ter para viver… Monsenhor Gamber o tinha? Mas que arbitrário! Que arbitrário!

Vós poderíeis talvez me dizer: «Tu te enganas. Não é a missa que põe o problema. Mas as sagrações. Dom Lefèbvre as realizou sem autorização pontifical. Por isso devia ser punido. Hoje, o novo Direito canônico prevê a excomunhão. Eis o problema! Eis o porquê da condenação». Mas é realmente esse o problema?

A idéia da sagração de um membro da Fraternidade havia sido aceita quando do protocolo de 5 de maio de 1988. Vós mesmo a havíeis aceitado.

Mas para o momento, permaneçamos ao nível do simples bom senso.

Dom Lefèbvre não foi menos amado pelas autoridades eclesiásticas após as sagrações que antes delas. Ele não foi menos execrado depois das sagrações que antes das mesmas. Antes delas, fizeram-lhe guerra, sua obra foi declarada «selvagem». Dom Garonne o declarou «louco»… Os bispos das dioceses lhe escreveram cartas horríveis quando ele visitava os tradicionalistas de suas dioceses. E que cartas!

Sim, Dom Lefèbvre já não era amado desde antes das sagrações. Ele não mais estava, parecia-lhe, em sua «comunhão». Já se lhe fechavam as igrejas. Os corações dos bispos se lhe fecharam… Mesmo em Roma, não se ousava mais recebê-lo… quando ele visitava um dicastério… o Prefeito ficava embaraçado… Ser visto com Dom Lefèbvre era comprometedor… Já muito antes das sagrações, ele era o « mal amado» da Igreja. Ele não tinha o espírito conciliar… E de fato, sua obra, sua obra sacerdotal foi interditada, seu seminário foi fechado. Interditadas as ordenações sacerdotais… Obviamente, ele nos ordenou para o Sacrifício da missa…! Ele era execrado por seus pares bem antes das sagrações e mesmo durante o Concílio.

Não se lhe perdoava a posição, sua presidência do Coetus internationalis Patrum.

Mesmo antes do Concílio, quando ele era Arcebispo-Bispo de Tulle, os cardeais e arcebispos da França lhe fechavam a porta de suas assembléias e reuniões. Mas ele tinha pleno direito a tomar parte nelas. Eles lhe recusavam tal. Isto é histórico! Se o Cardeal Richaud – então Arcebispo de Bordeaux – estivesse ainda neste mundo, ele poderia testemunhar quanto a isso.

Dom Lefèbvre no-lo disse. Mas ele ria-se disso. Ele não era rancoroso. Sim, mesmo antes das sagrações, Dom Lefèbvre não era amado. Era assim.

Sob esses aspectos, o problema das sagrações toma seu sentido verdadeiro. É na verdade um problema menor, o que quer que se diga… Neste sentido, as sagrações não foram a razão fundamental de sua excomunhão. Na prática, ele já o era. Após as sagrações ele se tornou, pode-se dizer, canonicamente. E isso não mudou quase nada… A pena canônica – sua declaração – foi inicial e essencialmente diplomática: para fazer medo e assustar os fiéis e lhes fazer abandonar o barco… O Cardeal Gagnon julgou mal.

Mas admitamos que a excomunhão tenha sua razão essencial e exclusiva nas sagrações. Esta ação – esta sanção – estende-se a Dom Lefèbvre, aos quatro bispos consagrados e ao co-consagrador Dom Castro Mayer… a mais ninguém, e de modo algum à Fraternidade Sacerdotal São Pio X e seus padres. Eles não estão excomungados. Eles estão na Igreja e são da Igreja. Eu mesmo nunca recebi a menor notificação de excomunhão. O Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta não me diz respeito diretamente.

Vós me direis talvez que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X tenha sido suprimida por Dom Mamie, Bispo de Friburgo, e não exista mais. Ela não é mais de direito diocesano. Vós sois “zero”, nada. Vós não tendes qualquer existência legal.

Ah ! Permiti-me ainda!

Dom Mamie quis talvez suprimir a Fraternidade Sacerdotal São Pio X… Mas eu me permito humildemente vos lembrar que nós o fomos em razão de nossa ligação à missa tridentina e em razão de nossa rejeição do novo Ordo Missae.

Ora, prefaciando o livro de Monsenhor Gamber, vós prefaciastes nossas própria críticas.

Volto a repetir, Dom Lefèbvre e o Breve Exame Crítico são menos duros que Monsenhor Gamber e seu livro. Ademais vós nos dais razão em vosso recente Motu Proprio reconhecendo que a antiga missa «permaneceu sempre autorizada». Se ela permaneceu sempre autorizada, era legítimo a celebrar e ilegítimo condenar os que queriam celebrá-la.

Assim, pois, nossa condenação e nossa supressão estão sem razão suficiente.

Elas são injustas. Querei, Santíssimo Padre, restaurar a justiça, reparar a injustiça.

Dignai-vos, Santíssimo Padre, a receber a expressão de meu filial respeito e conceder-me vossa bênção.

Padre Paul Aulagnier.

Membro do Instituto do Bom Pastor.

Mantendo a Missa de sempre, em oposição a todos e contra todos, o senhor refletiu a que se expõe?

Perguntar-me-iam: Mantendo a Missa de sempre, em oposição a todos e contra todos, o senhor refletiu a que se expõe? Sim.

Eu me exponho, se assim posso dizer, a perseverar no caminho da fidelidade a meu sacerdócio, e, portanto, prestar ao Sumo Sacerdote, nosso Supremo Juiz, o humilde testemunho de meu oficio de padre. Exponho-me a dar segurança aos fiéis desamparados, tentados de cepticismo ou de desespero. De fato, todo e qualquer padre que conserve o rito da Missa codificado por São Pio V, o grande Papa dominicano da Contra-reforma, permitirá aos fiéis participar do Santo Sacrifício sem equívoco possível; comungar, sem risco de ser enganado, o Verbo de Deus Encarnado e imolado, tornado realmente presente sob as sagradas espécies.

Da profética e histórica declaração do padre Calmel, que hoje completa 50 anos.

Descobrindo a Tradição: Crise de Consciência de um Sacerdote.

Por Peter Kwasniewski, OnePeterFive, 27 de março de 2019 | Tradução: José Antonio Ureta

A carta a seguir e minha resposta são uma troca real de correspondência. O sacerdote gentilmente permitiu a publicação de uma versão na qual seus detalhes pessoais foram removidos. Acreditamos que atualmente há muitos sacerdotes em uma situação de consciência semelhante ou até idêntica à que é descrito aqui e que a leitura do texto pode ajudá-los a alcançar maior clareza sobre as medidas a tomar.

Caro Dr. Kwasniewski,

Hoje lhe escrevo por uma razão pessoal: sinto que estou em uma batalha por minha própria alma, o que, por ser sacerdote, é sinônimo de uma batalha ferozmente travada pela própria alma da Igreja no “ponto crítico” que mais conta: o altar de Deus e a celebração dos Sagrados Mistérios.

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Sou padre há pouco mais de cinco anos e celebrei minha primeira missa no usus antiquior logo após a ordenação. Como membro de uma comunidade religiosa, fui ficando progressivamente consciente de muitas questões – a respeito de toda a gama de “questões” às quais somos confrontados hoje na Igreja, mas centrando-se na Sagrada Liturgia – que, embora até um certo ponto “tolerável” para mim enquanto religioso, tornou-se in-tolerável para mim enquanto sacerdote de Jesus Cristo. Meu afastamento da minha comunidade de origem não foi apenas uma questão de afastar-me daquilo que é prejudicial e/ou “falsifica” a fé, mas também uma esperança de aproximar-me de aquilo que oferece maior verdade e beleza. Eu digo isso não com qualquer animosidade ou raiva, mas simplesmente como uma questão de fato.

A mudança em minha alma após a recepção do sacramento da ordem sacerdotal trouxe consigo uma clareza quase instantânea de visão e um aperfeiçoamento da consciência em relação à Santa Missa e a tudo o que flui dela. Existem, simplesmente, coisas que, uma vez que você as conhece, você não pode não conhecer. Esta é a história da minha vida sacerdotal, pois quanto mais eu descubro sobre o desenvolvimento da doutrina e da práxis (particularmente na Igreja moderna ou “pós-conciliar”), mais eu me sinto impelido pela Igreja, minha Noiva, a “fazer algo” em toda a medida de que sou capaz, ainda que aceitando o meu papel limitado no Corpo Místico. Em duas palavras, posso dizer que uma vez que comecei a descobrir a Missa Tradicional e o modo de vida e a “cultura” que fluem organicamente dela e levam a ela, nunca consegui realmente “voltar”. Isso teve um alto custo.

Servi em duas paróquias “típicas”; em nenhuma delas a Missa Tradicional fazia parte do meu ministério público, pois eu estava tentando manter um “perfil baixo”. No entanto, eu celebrava o Novus Ordo de maneira muito tradicional, pregando sobre todos os tópicos importantes de nossa fé, e dedicando muito tempo e empenho à preparação do matrimônio, com um foco particular na virtude da castidade e da vida sacramental. O “povo fiel” gostava de mim, mas fui rapidamente desprezado pelos clérigos em posições de mando e que levavam vidas sacerdotais muito diferentes daquela que eu tentava seguir. Eu experimentei, em primeira mão, o jeito não-sacerdotal e claramente descaridoso com o qual os pastores da “nova misericórdia” tratam os sacerdotes favoráveis ​​e fiéis à “tradição”.

Fiquei algum tempo longe do ministério paroquial a fim de recuperar-me e para tentar entender o abuso espiritual que sofri nas mãos de pastores cuja missão é de promover a vida sacerdotal e não de destruí-la. Meu período sabático teve lugar em uma comunidade religiosa dedicada à chamada “reforma da reforma”.

Embora a nossa Missa conventual e o Ofício Divino fossem “tradicionais”, todos os membros da comunidade, sem exceção, “devem” engajar-se de alguma forma na participação no Novus Ordo Missae. Só isso já trouxe para mim uma forte dor de coração e um problema de consciência, pois o meu tempo aqui, separado da realidade cotidiana do business as usual nas paroquiais, me fez relembrar o que é precisamente aquilo em que eu creio no que concerne a Santa Missa e a cura pastoral das almas; no que eu creio sobre o mistério da Igreja e as “Núpcias do Cordeiro”; e como estou sendo atraído por Nosso Senhor para representar sua Pessoa, como noivo, na relação íntima com a Igreja, minha Noiva, particularmente na celebração da Santa Missa. As “duas formas” são apresentadas [nesta comunidade] como realidades igualmente aceitáveis, quase como um Café Litúrgico no qual se pode escolher o que se quer. Essa posição é baseada em certos escritos do Cardeal Sarah, assim como no documento Con Grande Fiducia do Papa Bento XVI, a carta pastoral que acompanha Summorum Pontificum, a qual, embora eu tenha subscrito plenamente no passado (e ainda considero ter sido uma de suas mais belas e paternas mercês como Pastor Supremo da Igreja universal), hoje não posso mais considerar adequada à magnitude do problema.

De tudo isso decorre muita ambiguidade, resultante de visões litúrgicas divergentes. Meus irmãos e eu compartilhamos o desejo de uma vida litúrgica “bela”, mas, para mim, essa beleza não é uma questão meramente estética. É algo mais profundo, mais filosófico, até mesmo ontológico: têm a ver com o que há – o não há – nos ritos da Igreja. Meus irmãos de comunidade compartilham laços de boa vontade e agradeço a Deus por isso… mas sem um padrão objetivo ao qual estejamos sujeitos, como uma comunidade pode crescer de forma ordenada? Essa, Dr. Kwasniewski, é minha dor, não só pela minha comunidade, mas também pela nossa Igreja, bela e doente.

Estou às voltas com uma aguda “questão crítica” sobre se posso ou não, em boa consciência, continuar a celebrar o Novus Ordo Missae. Essa crise não é “nova”, nem chegou a esse ponto por acaso. Foi emergindo, devagar mas possantemente, cada vez que celebrava a Missa num rito vácuo, que eu sei que representa um afastamento significativo e até mesmo prejudicial da tradição orgânica da Igreja e, portanto, de sua integridade; assim como do zelo pastoral pelas almas imortais, das quais eu, como sacerdote, sou um guardião.

Em minha vida sacerdotal antiga, eu era “entusiasta” pela “Reforma da Reforma” e acreditava que era, para a Igreja, “o caminho a seguir”. Eu simplesmente não acredito mais nisso. Uma das coisas que contribuíram de modo significativo para minha mudança de opinião e de atitude foi o fato de tantas vezes ter ficado ainda mais frustrado por esforçar-me em “embelezar” a Nova Missa em vez de simplesmente celebrar a Missa Tradicional (!). É como se o Novus Ordo tivesse sido construído para a desconstrução e a autodestruição. Como diz Martin Mosebach no prefácio de seu livro Noble Beauty, Transcendent Holiness [Nobre beleza, santidade transcendente], “a Liturgia é a Igreja”. Isso vale para qualquer Missa que seja celebrada, pois “a Igreja” ritualmente incorporada nela é “feita presente” através do ars celebrandi do verdadeiro ritus et preces de que é tecido toda missa, de qualquer rito que seja. Eu me pergunto, e ainda mais agora, com grande dor de coração: Como posso continuar a contribuir com (e a perpetuar) aquilo que eu percebo como uma mentira – a mentira do equívoco, da artificialidade, do crime espiritual de incúria e de “desnutrição” dos fiéis – tendo plena consciência de que estou “desfigurando” a Igreja pela celebração de uma Missa “desfigurada”?

Eu tenho maturado e desenvolvido meu pensamento sobre este assunto por muito tempo, com estudo e experiência, e com o desgosto de ver por todas partes o abismo enorme e a lacuna sem fundo que se abriram e estão almas em perdição por causa do Novus Ordo (mesmo quando “celebrado reverentemente”) e de tudo o que vai junto. Esta última frase é fundamental para mim: “tudo o que vai junto”. Pois, embora o problema se concentre na Missa, não é “apenas” sobre a Missa. Trata-se da Igreja, minha Noiva, em sua integridade e coerência vital. Eu estou em uma “batalha pela minha alma”, o que é sinônimo da batalha pela própria alma da Igreja.

Será muito bem-vinda sua opinião e seu “senso” do que eu manifestei – até mesmo o seu “corretivo” de qualquer coisa que eu tenha dito e que possa estar fora de lugar ou ser exagerado, míope, “extremo” ou algo desse naipe.

Com profunda gratidão pelo sua atenção e prometendo minhas orações pelo Sr. e sua família,

Pe. N.

* * *

A seguir, a resposta:

Caro Padre N.

Obrigado por suas palavras de agradecimento e por confiar-me a história de suas provações. Agradeço todos os dias pelo que o Senhor está fazendo na Sua Igreja, pois Ele leva muitas almas a enxergar verdades difíceis, mas libertadoras. Ele está fazendo uso desta crise inegável pela qual estamos passando como um alarme colossal para abrir os olhos as pessoas para as causas mais profundas de nosso mal-estar.

Tudo o que o Sr. descreveu sobre o seu caminho do Novus Ordo para a liturgia romana tradicional reflete exatamente minhas próprias experiências, pensamentos e sentimentos. Como o Sr. talvez tenha lido em meu livros Resurgent in the Midst of Crisis [Ressurgente em meio a Crise ] e Noble Beauty, Transcendent Holiness, eu fui responsável por quase trinta anos de fornecer música para ambas as “formas” da liturgia romana, de dirigir coros e scholas nos dois ritos, pelo que fiquei intimamente familiarizado com os textos, rubricas, cerimônias e música de cada um deles. Ao mesmo, estudei a História da Liturgia e a Teologia da Liturgia. Lentamente, cresceu em mim a convicção de que a reforma litúrgica foi um desastre para a Igreja.

Eu passei por todas as fases habituais. A primeira foi a fase “ingênua”, ou seja, que o problema não foi a reforma em si, mas como ela foi implementada. A segunda fase foi a da “crítica esperançosa”, ou seja, que a reforma tem problemas, mas que eles podem ser mitigados por celebrações bem feitas e, eventualmente, reformados de cima. A terceira fase, a “realista”, é que a reforma é falha em seus princípios fundamentais; não pode ser resgatada, mas deve ser rejeitada em favor do rito romano clássico.

O Sr. conhece o assunto tão bem quanto eu, mas leva tempo para entender a magnitude do problema – tempo, muita leitura, muita experiência, muita oração e uma certa intuição, que dificilmente ouso chamar de mística, mas que, entretanto, parece ser dada de cima: uma convicção imediata e incontestável da retidão da tradição e do errôneo de sua substituição moderna. Como o Sr. diz, chega-se a um ponto em que não se pode não saber, e não sentir nas profundezas da alma e dos ossos que algo está seriamente errado no Novus Ordo, e seriamente correto no culto tradicional da Igreja Católica.

O Novus Ordo não veio à existência do modo como os seres vivos são concebidos, nascem, maduram e alcançam seu apogeu; apareceu como são construídas as máquinas na era da indústria e da tecnologia. Isso ajuda a explicar por que um rito pré-fabricado tem grande dificuldade em inspirar o misticismo e oferece pouca nutrição para a vida contemplativa. Apenas alimentos e bebidas naturais podem saciar nossa fome e sede, e podem desenvolver olhos, pele, carne e ossos saudáveis. O Senhor, em sua Providência divina, não deu à sua Igreja acesso à graça sacramental à margem dos sinais sacramentais; Ele não nos deu sinais separados dos ritos que os fixam; Ele não nos deu ritos dissociados de orações, lições, música e cerimônias. Tudo isso é necessário para uma dieta saudável, e não apenas “a forma e a matéria do sacramento”, como o reducionismo neoescolástico professaria. Pode-se também trocar uma refeição de vários pratos por proteína em pó e comprimidos vitamínicos…

Os leitores às vezes têm dificuldades com a tolerância com o Novus Ordo que se encontra, eu o admito, no par de livros acima mencionados. Mas essa tolerância benigna já é coisa do passado. É exatamente como o Sr. diz em relação a Con Grande Fiducia e o Summorum Pontificum: em vista do dogma extraoficial de nunca questionar o Concílio ou qualquer coisa feita em seu nome, estes documentos foram divisores de água para um lugar e tempo determinados, mas eles estão seriamente lesados pela alegação construtivista e patentemente falsa de que não há ruptura [entre os dois ritos], assim como pelo relativismo litúrgico de aceitar múltiplas formas de um único rito, o que espelha o relativismo doutrinal e moral característico de nossos tempos.

Mas agora estou pregando para convertidos, ou pelo menos para um deles. O que eu pretendia dizer é que alguns leitores acharam a minha atitude em relação ao Novus Ordo preocupante, porque eles, mais rápidos do que eu (como São João foi mais célere em chegar ao túmulo do que São Pedro), já tinham, possivelmente há muito tempo, chegado à conclusão de que os novos ritos não poderiam ser endossados ​​e deviam ser evitados. Um professor de filosofia da Europa me escreveu o seguinte:

“O Sr. expõe as falhas do Novus Ordo de uma maneira muito convincente. A coisa toda foi um desastre e priva muitas almas do bem que com certeza receberiam se fossem familiarizadas com a Missa tradicional. Mas eu estava pensando: como é que o Sr. ainda pode trabalhar (segundo escreve em Noble Beauty) para o Novus Ordo, dirigindo cantos e música, quando afirma repetidamente – e com razão – que toda a invenção de Bugnini deve desaparecer? Eu entendo a ideia da paz litúrgica e de dar às pessoas que assistem à Missa Nova  a possibilidade de ter um vislumbre da verdadeira música sacra e assim por diante. Mas o Sr. não acha que isso contribui para a sobrevivência do que seria melhor estar morto e enterrado de uma vez por todas?”

Eu lhe respondi:

“Eu me tenho digladiado com essa questão há décadas. Até recentemente, minhas responsabilidades incluíam dirigir música tanto no usus antiquior quanto no usus recentior, mas eu me pegava amando o primeiro mais e mais, e odiando o último; servindo a um, e desprezando o outro. Na verdade, tornou-se uma tortura psicológica o participar do Novus Ordo. Eu sabia que o deveria deixar para trás para sempre. Agora estou participando exclusivamente da missa antiga e estou “no céu” – pelo menos no espelho litúrgico do céu. Para mim, meu trabalho com o Novus Ordo sempre foi prático ou de natureza pragmática: era parte da minha profissão e eu queria fazer o melhor que pudesse (pelo meu próprio bem, não apenas pelo bem dos assistentes: o canto gregoriano tornava a Missa de Paulo VI suportável para minha psique e minha sensibilidade, ainda que não para meu intelecto). Mas eu concordo com o seu ponto central, que seria melhor deixar perecer este “produto banal feito na hora”, e colocar toda a energia da pessoa em adorar ao Senhor da maneira mais digna d’Ele e mais perfeita para nós. É o que estou fazendo hoje e meus futuros livros demonstrarão meu próprio itinerário sobre esse assunto”.

A única diferença substantiva entre o seu caminho, Pe. N, e o meu é que o Sr. passou a ver todas essas coisas através da graça da ordenação e da cadeia diária de deveres sacerdotais, enquanto eu os vi como músico, oblato [beneditino] e teólogo litúrgico que não podia evitar de perceber “uma coisa após a outra…”

Assim, eu não acho que o Sr. seja “louco”, “extremista”, “obcecado”, ou qualquer que seja o rótulo que seus inimigos (ou seus próprios medos) possam colocar no Sr. Em vez disso, o Sr. tem seguido seriamente o instinto da fé, o impulso de caridade, as obrigações de piedade, as exigências da virtude da religião – a necessidade de uma coerência total entre a lex orandi, a lex credendi e a lex vivendi. A exposição contínua dos fiéis à liturgia tradicional com tudo aquilo que a acompanha, como o Sr. acertadamente acrescenta, associada com a disposição de absorver e ponderar suas lições, necessariamente mostrará a falência do ersatz de liturgia fabricada por racionalistas adeptos do Sínodo de Pistoia, simpatizantes comunistas, e provavelmente ​​maçons, assim como de todo o projeto de “neo-catolicismo” (como alguns o chamam, enfaticamente, mas com acerto). É um despertar difícil, mas salutar. Alguns escritores tradicionalistas usam o cliché “pílula vermelha” para descrever esse processo das escamas caindo dos olhos.

(Apresso-me a acrescentar que alguns tradicionalistas não têm a suficiente educação filosófica e teológica que lhes permitiria fazer distinções e extrair apenas as conclusões que são exigidas pelas evidências. Por exemplo, vendo sérios defeitos na liturgia reformada, eles tiram falsas conclusões sobre sua validez; vendo o abuso repetido do ofício papal, eles tiram conclusões falsas sobre a vacância da Sé; à vista de elementos modernistas em João Paulo II, eles tiram a falsa conclusão de que a obra de toda a sua vida deve ser jogada fora. Poderíamos multiplicar tais exemplos indefinidamente.)

Sabemos que Deus pode tirar o bem do mal, e é por isso que Ele pode santificar as almas, e realmente as santifica, até com os instrumentos de uma reforma não santa, pois mesmo de pedras sem vida, Ele pode criar filhos de Abraão. No entanto, seu modus operandi habitual é criar os filhos pelos pais, não por pedras; e da mesma forma, Ele cria a Igreja a partir de sua tradição patrilinear, nas mãos de sacerdotes que são verdadeiramente pais no sulco dessa tradição, os quais transmitem o nome de família, o sangue e a herança.

Muitos sacerdotes, religiosos e leigos me escreveram ao longo dos anos, dizendo, em essência: “Esta nova empresa é oca e prejudicial, e eu não posso mais fingir que a apoio; Eu não quero fornecer-lhe a menor credibilidade, nem sequer embrenhar-me contra ela”. Eles se perguntam que diabos fazer: “Será que eu ainda posso ir à missa na minha paróquia?” “A qual congregação religiosa devo ingressar?” “Posso voltar a celebrar a Missa nova?”

O Senhor nos dá intuições e convicções tão poderosas a fim de nos levar a tomar medidas adequadas para a glorificação de Deus, para a nossa própria santificação e para a edificação de todo o Corpo de Cristo. Nesse sentido, “surfar a onda”, “ter jogo de cintura”, “resignar-se”, parecem ser opções autodestrutivas. A menos que alguém se sinta confortável correndo o risco de esquizofrenia espiritual, de estresse nervoso ou de violar a própria consciência afastando-se das inspirações de Deus, num dado momento uma decisão tem que ser tomada a favor ou contra o catolicismo tradicional.

Tais decisões estão cheias de perigos e de angústia. Um sacerdote escreveu-me dizendo que havia sido transferido várias vezes porque continuava se recusando a distribuir a Sagrada Comunhão na mão ou a usar ministros extraordinários da Eucaristia. Vários sacerdotes que conheço foram suspensos por pregar contra a homossexualidade (isso acontecerá mais e mais). Um sacerdote que redescobriu a Fé através do movimento carismático ingressou numa nova ordem religiosa e teve que abandoná-la quando aprendeu a celebrar a missa antiga e viu, como que pela primeira vez, a essência da Missa enquanto sacrifício propiciatório, como humilde homenagem, como ardente súplica à Santíssima Trindade, como a soberana oração tanto pública quanto pessoal. Um sacerdote diocesano me escreveu em agonia porque sua alma anseia por celebrar a missa tradicional, mas ele está celebrando uma missa no rito ordinário, versus populum e em língua vernácula, para um grupo de pessoas que não acredita em quase nada. Há até alguns bispos a respeito dos quais se poderiam dizer as mesmas coisas.

Você percebeu com precisão o âmago da crise eclesial, que é a crise da liturgia e, portanto, também do sacerdócio. Permaneceremos nessa crise enquanto a liturgia tradicional não for totalmente restaurada e enquanto a liturgia experimental moderna não seja repudiada.

Não se pode ser ao mesmo tempo tradicional e moderno na liturgia, pois os princípios são contraditórios. Não se pode acreditar que o Espírito Santo guiou a Igreja através dos séculos, e depois abraçar uma liturgia cuja premissa fundamental é que, há muitos anos, faltavam à liturgia muitas características que indispensáveis e que estava repleta de corrupções que deviam ter sido removidas. Não se pode louvar a espiritualidade dos grandes santos, a partir dos Padres do Deserto até os beneditinos, os místicos medievais, os carmelitas, os Doutores, etc. e ao mesmo tempo contradizê-los de fato nas práticas litúrgicas e devocionais.

O que deve ser feito? Parece-me que o único caminho a seguir é unir-se a uma comunidade religiosa ou sociedade de vida apostólica que seja assaz previdente e corajosa para celebrar unicamente a liturgia tradicional, seja no Rito Romano ou num uso específico de alguma ordem. Ao longo deste caminho encontra-se paz de consciência e conforto da alma, luz para a mente e calor para a vontade. Ao longo deste caminho está o mais exigente e recompensador exercício do dom do sacerdócio [a Santa Missa], juntamente com o fruto mais abundante para os católicos fiéis que procuram a Deus nos sublimes mistérios do seu amor.

O Sr. conhece o livro In Sinu Jesu: When Heart Speaks to Heart — The Journal of a Priest at Prayer [In Sinu Jesu: Quando o Coração Fala ao Coração – Diário de um Sacerdote em Oração]? Eis três passagens que eu gostaria de compartilhar com o Sr., nas quais Nosso Senhor fala:

“Eu não vou abandonar-te ou desamparar-te. Eu sou fiel. Eu te escolhi e tu és meu. Por que duvidas do meu amor por ti? Não te dei sinais do meu favor? Não te mostrei que Minha misericórdia preparou para ti um futuro cheio de esperança? Não te prometi anos de felicidade, de santidade e de paz? Minha benção está sobre ti e os desígnios do Meu Coração estão prestes a se desdobrar sobre ti. Tu só tens que confiar em mim. Acredita que te guardarei como a menina dos meus olhos. Tu estás seguro sob o manto da minha mãe. Eu te abraço perto do meu coração ferido. Confie que Eu cumprirei tudo o que te prometi”.

“Avança na simplicidade, livre do medo e confiando na Minha misericordiosa providência para preparar todas as coisas para um futuro cheio de esperança. Deixa a preparação do futuro inteiramente em minhas mãos. A tua parte é permanecer fiel à adoração que te pedi”.

“Oferece-me o presente e eu cuidarei de consertar teu passado e de preparar teu futuro”.

Elevarei orações pelo Sr. ao Pai das Luzes, pedindo a Ele, pela intercessão de Nossa Santíssima Senhora, de São José, de São João Vianney e de seu santo anjo da guarda, que lhe envie a luz de que o Sr. precisa para conhecer seus próximos passos e a força para perseverar apesar de todos os obstáculos. A Igreja está passando por uma crise que pode ser superada apenas pela fé heroica. Pessoas boas serão agredidas e chacoalhadas, mas com isso o joio será retirado e miolo do trigo preparado como sacrifício ao Senhor. Esta também será uma das obras de Nossa Senhora, através da qual Ela trará à luz um clero purificado e uma Igreja purificada.

Seu irmão em Cristo

Peter Kwasniewski