Reflexões da Sagrada Escritura: Ocasiões próximas de pecado e absolvição

“Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém,digo-vos que todo o que olhar para uma mulher, cobiçando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração. Por isso, se o teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o para longe de ti, porque é melhor para ti que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo seja lançado na Geena. E, se a tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a para longe de ti, porque é melhor para ti que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo seja lançado na Geena.Também foi dito: ‘Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe libelo de repúdio’. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que repudiar sua mulher, a não ser por causa de fornicação, expõe-na ao adultério; e o que desposar a repudiada, comete adultério” (S. Mateus, V, 27-32).

Por Padre Élcio Murucci | FratresInUnum.com

Apresentarei a exposição do Teólogo Noldin em cujo Manual estudei no Seminário. Consultando ainda muitos outros teólogos tradicionais, vemos que quase todos, se baseiam em Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja, e a maior autoridade em Teologia Moral. Em teologia, antes de qualquer exposição, primeiramente são dadas a definição e divisões dos termos. (cf. Noldin, Summa Theologia Moralis, vol. III DE SACRAMENTIS, ed. XXXI, anno 1957, nº 398-401): “DE ABSOLVENDIS  OCCASIONARIIS” = Sobre a Absolvição dos Ocasionários.

398. Noção de ocasião. Ocasião de pecado geralmente se define assim: é uma circunstância externa que oferece ao homem oportunidade de pecar e solicita-o para o pecado.

a. A circunstância pode ser coisas como um livro mau, ou pode ser uma pessoa como a amásia para o amásio.

b. Externa; difere portanto aocasião do perigo de pecar, pois, por este nome entende-se tudo aquilo que move para pecar, quer seja algo externo ou interno. A ocasião é só algo externo, já o perigo pode ser também algo interno.

c. Na ocasião duas coisas devem ser levadas em consideração: a oportunidade ou facilidade de pecar que ela oferece ao homem; e segundo: o impulso para pecar.; embora, portanto, a ocasião se equivalha ao escândalo, neste, no entanto, se considera a ação do outro, e na ocasião, porém, se olha mais a coisa ou pessoa que, além de oferecer o impulso, dá também a oportunidade de pecar.

d. Duas coisas são necessárias para que haja OCASIÃO: da parte do objeto há o impulso e a oportunidade para o pecado, e da parte do sujeito há a propensão e inclinação para o pecado.

Nota. A própria pessoa ou coisa é ocasião, se esta determinada pessoa ou coisa oferece oportunidade de pecar. Por vezes, no entanto, não só determinada pessoa, mas qualquer pessoa oferece ensejo de pecado; seja dado como exemplo um jovem que de tal maneira está preso aos pecados da carne, que deixada uma pessoa, irá pecar com  outra, e assim por diante; em tal caso a coisa ficaria pior, se só abandonasse as primeiras e corrompesse as outras  que viessem a pecar depois com este jovem. Aqui a ocasião é mais o próprio hábito de pecar, e, portanto, devem ser  empregados os meios para acabar com o hábito.

399. Divisão de ocasião. 1. Pode ser REMOTA ou PRÓXIMA. Diz-se remota aquela em que o perigo de pecar é leve, na qual, portanto, os homens geralmente não pecam. Diz-se próxima aquela em que o perigo de pecar é grave, e portanto, nela os homens geralmente pecam. A ocasião diz-se próxima ou remota pela conexão que tem com o  pecado. A maior ou menor conexão da ocasião com o pecado sobretudo (não unicamente) se deduz da frequência das quedas daquele que se encontra na ocasião, e mesmo de uma frequência relativa. […] (Visto que alguns teólogos [como Lugo] divergem-se em definir a ocasião próxima, Noldin apresenta três dicas para se saber se a ocasião é próxima: a. da frequência da queda conhecida pela experiência, quando, portanto, o penitente já esteve na ocasião e  nela geralmente pecou; b. da índole do penitente, quando, pois, pela veemência da tentação e da notória fragilidade do penitente, antes de toda experiência, se deve julgar que nesta determinada ocasião quase sempre irá pecar; c. do que acontece comumente, pois frequentemente a gravidade do perigo se deve julgar por esta regra: o que para todo mundo nas mesmas circunstâncias é ocasião de pecado, sê-lo-á também para este em particular.

2. A ocasião próxima se subdivide em: absoluta e relativa. A ocasião será PRÓXIMA ABSOLUTA quando,  comumente, a todos os homens, ela induz a um perigo próximo de pecar, p. ex. um olhar fixo para um coisa muito torpe. A ocasião será PRÓXIMA RELATIVA quando ela induz a um perigo próximo de pecar somente à determinada pessoa por causa de sua fragilidade, p. ex. o acesso à taberna quando a pessoa tem o vício da bebida.

3. Ademais, a ocasião próxima pode ser VOLUNTÁRIA (livre) ou NECESSÁRIA: voluntária é aquela que facilmente ou com leve incômodo pode ser evitada; e necessária é aquela que ou fisicamente ou moralmente não pode ser removida. Fisicamente, se alguém, p. ex. se encontra preso juntamente com uma pessoa com a qual sói pecar; moralmente, se a ocasião não pode ser removida, senão com grande dificuldade ou com grande detrimento nos bens da vida ou da fortuna ou da fama.

Nota: Na prática, diz Noldin, não se deve acreditar facilmente, mas o confessor deve prudentemente indagar sobre a verdade da coisa, ou seja, si aquele que pretende estar em uma ocasião, só com grande dano, poderia deixar tal ocasião. Por que esta prudência? Porque o afeto ao pecado muitas vezes aumenta a dificuldade de remover a ocasião.
4. A ocasião pode ainda ser dividida em PRESENTE (in esse) e NÃO PRESENTE (non in esse): a ocasião será  resente ou contínua quando a pessoa já a traz sempre consigo sem precisar procurá-la, como p. ex. um livro obsceno ou uma estátua torpe que a pessoa retém em sua casa; a ocasião será não presente ou ininterrupta se alguém não a traz consigo, mas facilmente pode consegui-la, como p. ex. a taberna para um beberrão, uma amásia para um amásio, o jogo para aquele que jogando sói blasfemar.

400. Sobre a absolvição dos ocasionários que estão em ocasião próxima livre (voluntária).

1. Não pode ser absolvido o penitente, que não quer evitar a ocasião próxima de pecar gravemente, ocasião esta que facilmente pode evitar: aquele, pois, que não quer evitar tal ocasião próxima, dá sinal evidente de que não tem vontade (propósito) eficaz de não mais pecar, e, por conseguinte, não está disposto para obter a absolvição, porque a própria vontade de permanecer na ocasião próxima já é um pecado grave. Não é permitido admitir a desculpa pela qual os penitentes prometem empregar todos os remédios para transformar a ocasião próxima de pecado em ocasião remota: pois não é permitido se expor temerariamente ao perigo de pecar, perigo este que pode facilmente se evitar e, portanto, deve fugir inteiramente dele.

2. Quem promete deixar a ocasião próxima livre de pecar, de per si, pode ser absolvido, desde que o confessor possa prudentemente crer em sua promessa. Santo Afonso (474) seguindo São Carlos Borromeu, e outros autores aqui distinguem entre necessário presente e não presente; julgam que em caso de ocasião presente o penitente não pode ser absolvido nem a primeira vez, a menos que primeiro afaste a ocasião. A razão que dão é porque se novamente se expõe ao perigo de pecar ou de quebrar o propósito por causa do apego à ocasião e a dificuldade em a abandonar, e, portanto não está disposto. Mas o próprio Santo Afonso e seus seguidores admitem os casos, nos quais a absolvição possa ser dada na primeira vez, quando o confessor supõe que haja boa disposição: assim, se o penitente apresente sinais extraordinários de arrependimento, ou si, sem grande incômodo no possa voltar ao confessionário, ou a não ser só depois de longo tempo.

3. No entanto, se já muitas vezes absolvido não cumpre as promessas, mas caiu nas ocasiões, não deve ser absolvido, senão afastar primeiro a ocasião: pois, se pode suspeitar corretamente o confessor, que o penitente não tem firme propósito. Ademais, embora se sinta disposto, às vezes, a absolvição deve ser diferida para firmar a vontade, a não ser em caso extraordinário em que urge uma razão grave para se conceder a absolvição [p.ex. nos casos de moribundos].

401. Sobre a absolvição dos ocasionários em ocasião próxima necessária.

1. Quem não quer deixar a ocasião próxima moralmente necessária de pecar gravemente, pode ser absolvido, desde que prometa empregar os remédios para não pecar. Pois, o constituído em ocasião necessária deve ser julgado disposto, caso queira empregar os remédios aptos para não pecar, visto que não exista absoluta obrigação de  abandonar a ocasião, como sendo não voluntária, mas somente hipotética, i. é. ou de empregar os remédios ou de abandonar a ocasião.

a. Segundo Santo Afonso (n. 455), os remédios pelos quais se pode transformar a ocasião próxima em remota são: diligente oração, o uso mais frequente dos sacramentos, cotidiana renovação do propósito de não mais pecar, não estar a sós com a cúmplice, evitar vê-la etc.

b. É certo que não escusa um incômodo medianamente grave, como acontece em relação aos mandamentos da Igreja, mas nem também se requer uma impossibilidade moral de deixar a ocasião. Afinal, cabe ao confessor julgar com muita diligência, cada caso em particular.

2. Se o constituído em ocasião próxima necessária depois de várias confissões, volta com os mesmos pecados sem nenhuma emenda, não se deve, absolutamente falando, exigir que deixe a ocasião, mas ainda pode ser absolvido, caso seriamente queira empregar os meios, pelos quais transforme a ocasião próxima em remota: isto porque havendo esta vontade vê-se que está suficientemente disposto, embora não queira remover a ocasião. Neste caso muitos autores com Santo Afonso (n. 457) estabelecem a seguinte regra: o penitente não pode ser absolvido a não ser que abandone a ocasião, mesmo com gravíssimo incômodo, como a perda dos bens, da fama, e até da própria vida: pois, como não aparece nenhuma esperança de emenda, devem aí ser aplicadas as palavras do Salvador: “Se o teu olho te escandaliza etc. (Marc. 9, 46). Outros (como Ballerini-Palmieri, n. 119) opinam assim: pelo fato, pois, de depois várias quedas não haver nenhuma emenda, não se deve concluir que não resta nenhuma esperança de emenda, mas somente isto: ou os meios propostos não foram suficientes, ou eles não foram empregados. Se constar este último caso, o penitente deve ser admoestado seriamente a empregar com mais diligência os remédios ou então, aí sim, terá que deixar a ocasião mesmo com gravíssimo incômodo.

5 comentários sobre “Reflexões da Sagrada Escritura: Ocasiões próximas de pecado e absolvição

  1. Rev.mo Pe. Élcio Murucci,

    Agradeço-lhe este artigo, pois esclareceu algumas de minhas dúvidas sobre as ocasiões de pecado. Entretanto, gostaria de lhe pedir uma ulterior explicação: tanto o Papa João Paulo II quanto Bento XVI afirmavam que seria possível ministrar os sacramentos da penitência e da Eucaristia aos casais em segundo união, cujo primeiro matrimônio foi válido, mas que não podem separar-se devido a uma causa grave (como, por exemplo, o bem dos filhos), desde que assumam o propósito de se absterem de toda relação íntima própria do ato conjugal e passem a conviver, castamente, como irmãos. Advertiam também os Santos Padres que, neste caso, deve ser afastado todo o perigo de escândalo. Vejo, porém, que permanece a ocasião próxima de pecado. Portanto, seria correto dizer que é possível conceder-lhes a absolvição sacramental (e posteriormente a Eucaristia) por ser tratar de uma ocasião necessária (não voluntária), desde que se empenhem em empregar todos os outros meios para não pecar? Ou, nestas circunstâncias, a única possiblidade seria mesmo a separação do casal, mantendo-se, é claro, todos os deveres para com os filhos?
    Grato por sua cordial atenção!

    Pe. Luiz.

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    1. Caríssimo Pe. Luiz, na verdade escrevi este artigo, ou melhor traduzi do latim esta matéria, pensando justamente nesta possibilidade apresentada pelo então Papa João Paulo II. Confesso que não me julguei capaz de discordar frontal e publicamente de um Papa e este canonizado. Mas em consciência diante de Deus, fico com a orientação tradicional tanto mais que defendida por um Santo Afonso Maria de Ligório. Depois o próprio João Paulo II, alerta que deve ser afastado todo perigo de escândalo.
      Segundo o ensinamento tradicional a possibilidade deste caso nem sequer foi alguma vez contemplada, justamente porque é inevitável o perigo de escândalo e quase impossível de não pecar.
      O que se deveria pensar é nos casos em que no primeiro matrimônio válido, havendo filhos (e é mais comum que haja) seria mais um motivo para seus pais se preocuparem com o mau exemplo que lhes dão pela separação e sobretudo pela união adúltera com outro ou com outra. Esta segunda união é um pecado público de adultério. É um escândalo. “Os adúlteros não possuirão o Reino dos Céus”. E Jesus também disse: “É inevitável que haja escândalos no mundo, mas ai daquele por quem vier o escândalo”. Então, para se salvarem, devem se separar. Assim estarão desfazendo, pelo menos no que é mais grave, o grande mal causado aos seus filhos legítimos, e, não os tendo no matrimônio legítimo, também estarão evitando o escândalo aos seus filhos ilegítimos. Nosso Senhor Jesus disse: “Que aproveita o homem ganhar o mundo todo se vier a perder a sua alma?”
      Agora há casos, em que o sacerdote pode e deve dar os sacramentos, mas ocultamente, da maneira mais discreta possível. Isto quando se trata de doente com grave perigo de vida (Perigo este já atestado por médico). O padre chama a outra parte em particular, e terá que prometer que viverão como irmãos (e neste caso não há ocasião próxima de pecado) e devem prometer se separar, caso o(a) doente se recupere. Havendo de ambos estas promessas, o padre administra ao doente todos os sacramentos inclusive o viático. Mas proíbe terminantemente que seja divulgado o fato, justamente para não haver escândalo.

      Este caso “de viver como irmãos” facilmente causa escândalo: porque o mundo não acredita nesta história de um homem e uma mulher que se amam, viver “non modo uxorio”, Acham que isto é história para boi dormir.
      Vamos fazer uma comparação: Uma pessoa é presa num cubículo onde só há um balde com água suja. Quando a sede começar a apertar, esta pessoa irá se aproximar da água suja, mas ainda não terá coragem de bebê-la, Mas passados alguns dias em que a sede é ardente, a pessoa aproximar-se-á do balde e sem dificuldade beberá da água suja, água esta da qual se afastou por várias vezes. É mais ou menos o que se dá com o homem e a mulher que vivem na mesma casa e mesmo que não seja no mesmo leito. É, sejamos claros, o ponto mais fraco da natureza humana e, além disso, não podemos esquecer que o homem é fogo, a mulher estopa e o demônio o soprador.

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  2. Parabenizo-o em extremo, prezado padre Murucci, pelo presente post! O que nele está dito é estritamente a verdadeira, pura e segura doutrina tradicional dos bons teólogos morais. Que Deus recompense muitíssimo ao sr. por ter ajudado, com esse post, a propagar essas verdades tão esquecidas mas absolutamente oportunas e indispensáveis!
    [p.s.: e que o leitor atento aplique essa doutrina à análise dos casos dos “divorciados recasados” – parecerá claro como o sol qual deve ser o legítimo tratamento do problema deles…]

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  3. “A fortiori” deverão ser rejeitadas as concessões ainda mais escancaradas, embora pretensamente escondidas em ambiguidades e omissões da “Amoris Laetitia”. Falo isso não por mim mesmo mas baseado em Santo Afonso Maria de Ligório e em Santo Tomás de Aquino, ou melhor, em uma palavra: firmado em Nosso Senhor Jesus Cristo. Se olhar cobiçando já comete adultério, imaginem, viver juntos na mesma casa!

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    1. Caro Pe. Élcio,

      Muito obrigado por sua resposta esclarecedora e precisa, sem ambiguidades do ponto de vista doutrinal. Sem querer colocar em questão o magistério dos últimos papas, na prática, nunca me senti seguro, em confissão ou orientação espiritual, em orientar casais em segunda união a viverem como irmãos, exatamente pelos motivos que o Sr. apresenta. Também penso que a única via é a separação, quando não há possibilidade de uma declaração de nulidade do matrimônio celebrado anteriormente, salvo na situação excepcional de perigo de morte, como o Sr. bem expôs. Percebo que, realmente, há uma grande lacuna na formação dos sacerdotes no âmbito da teologia moral, pois estamos nos enveredando cada vez mais pela via do relativismo moral. O Sr. me indicaria algum curso sério de moral?
      Grato!
      Pe. Luiz.

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