Apresentamos a íntegra da entrevista concedida por Mons. Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, à Nouvelles de France.
Tradução de Christiano Oliveira
Fonte: Foco Católico
Monsenhor, qual é a finalidade do Motu Próprio Summorum Pontificum?
O Motu próprio Summorum Pontificum pretende oferecer a todos os fiéis católicos a liturgia romana no usus antiquior, considerando-a como um tesouro precioso a ser conservado. Com este objetivo, ele pretende garantir e assegurar a todos aqueles que pedem o uso da forma extraordinária assim, favorecer a unidade e a reconciliação dentro da Igreja.
Por que este sucesso da missa de São Pio V entre os jovens católicos?
Penso que o recolhimento interior, o sentido da missa como sacrifício é particularmente valorizado pela forma extraordinária. É o que explica, em parte o aumento do número de fiéis que a requerem.
A carta do Papa que acompanhou o Motu proprio indica que havia um aumento do número de fiéis requerendo o uso da forma extraordinária. Qual é a razão segundo o senhor?
A carta que acompanhou o MP apresenta as razões e as explicações que esclarecem as finalidades e o sentido do MP. É fundamental sublinhar que as duas formas do único rito romano se enriquessem mutuamente e devem, então, serem consideradas como complementares. O reestabelecimento do usus antiquior do missal romano com seu quadro normativo próprio é devido ao aumento dos requerimentos vindos dos fiéis que desejavam poder participar da celebração da Santa Missa na forma extraordinária. Trata-se, em essência, de respeitar e valorizar um interesse particular de certo número de fiéis pela Tradição e pela riqueza do patrimônio litúrgico colocado em evidência pelo rito romano antigo. È interessante que esta sensibilidade esteja presente também nas gerações mais jovens, quer dizer, entre pessoas que não foram formadas previamente à este gênero de liturgia.
Dizemos que os movimentos tradicionais suscitam mais vocações que fora deles. É verdade? Se sim, por que?
Nos Institutos que dependem da Comissão Pontificial Ecclesia Dei e que seguem as formas litúrgicas e disciplinares da Tradição, existe um aumento de vocações sacerdotais e de vocações à vida religiosa. Creio, no entanto, que uma retomada das vocações sacerdotais também pode ser constatada nos Seminários. Sobretudo onde oferecemos uma formação e uma educação ao ministério sacerdotal e à uma vida espiritual séria e rigorosa, sem as reduzir pela secularização, que, infelizmente, penetrou na mentalidade e nas formas de vida de certos cléricos e mesmo nos seminários. Isto constitui, penso eu, a causa principal da crise das vocações ao sacerdócio, crise mais qualitativa do que quantitativa. Apresentar a figura do padre em sua profunda identidade, como ministro do sagrado, quer dizer, como alter Christus, como guia espiritual do povo de Deus, como aquele que celebra o sacrifício da Santa Missa e perdoa os pecados no sacramento da confissão, agindo in persona Christi capitis, esta é a condição essencial para a implementação de uma pastoral vocacional que seja frutuosa e permita a retomada das vocações ao sacerdócio ministerial.
O senhor sabe se o Papa está satisfeito com a aplicação do MP?
A comissão pontifícia Ecclesia Dei mantém o Santo Padre informado sobre a evolução da aplicação do MP e sobre o crescimento da sua recepção, apesar das dificuldades de aplicação que constatamos aqui ou lá.
Quais são concretamente as dificuldades de aplicação que os senhores encontram?
Existe resistência por parte de certos bispos e membros do clero que não se deixam tão acessível a missa tridentina.
A instrução Universæ Ecclesiæ parece favorecer ainda mais a celebração da forma extraordinária. É o caso?
A instrução tem por objetivo ajudar a aplicação de maneira cada vez mais eficaz e correta as diretivas do MP. Ela oferece certas precisões normativas e certas clarificações de aspectos importantes para a implementação na prática.
Temos a impressão que é principalmente na França que as reações são mais epidérmicas sobre este assunto. Qual é a razão segundo o senhor?
Pode ser muito cedo para fazer uma avaliação suficientemente completa das reações à Instrução, e isto vale não só para a França. Mas me parece que pensando na situação da Igreja na França, tem que se levar em conta o fato de que existe uma tendência a polarizar e radicalizar os julgamentos e as convicções na matéria. Isto não favorece uma boa compreensão e uma recepção autêntica do documento. É preciso ultrapassar uma visão principalmente emotiva e sentimental. Trata-se – e é um dever – de recuperar o princípio da unidade da liturgia, que justifica precisamente a existência de duas formas, todas as duas legitimas, que não devem nunca ser vistas em oposição ou em alternativa. A forma extraordinária não é um retorno ao passado, e não deve ser compreendida como um questionamento da reforma litúrgica querida pelo Vaticano II. Assim também, a forma ordinária não é uma ruptura com o passado, mas seu desenvolvimento ao menos em certos aspectos.
Solicitude dos Soberanos Pontífices e Igreja universal são os respectivos títulos do MP e de sua instrução. Isto quer dizer que o objetivo é uma reconciliação com os “tradicionalistas”?
A instrução, como eu disse no início, pretende favorecer a unidade e a reconciliação dentro da Igreja. O termo “tradicionalista” é com freqüência uma formula genérica utilizada para definir coisas muito diferentes. Se, por “tradicionalistas”, entendemos os católicos que repropõem com força a integridade do patrimônio doutrinal, litúrgico e cultural da fé e da tradição católica, é claro que eles acharão conforto e apoio na instrução. O termo “tradicionalista” pode também ser entendido diferentemente e designar aquele que faz um uso ideológico da Tradição, para opor a Igreja antes do CVII e a Igreja do Vaticano II, que teria se distanciado da Tradição. Esta opinião é uma maneira deformada de compreender a fidelidade à Tradição, porque o CVII faz, ele também, parte da Tradição. Os desvios doutrinais e as deformações litúrgicas que foram produzidas depois do fim do CVII não tem nenhum fundamento objetivo nos documentos conciliares entendidos no conjunto da doutrina católica. As frases ou expressões dos textos conciliares não podem e não devem ser isoladas ou arrancadas, por assim dizer, do contexto global da doutrina católica. Infelizmente, esses desvios doutrinais e esses abusos na aplicação concreta da reforma litúrgica constituem o pretexto desse “tradicionalismo ideológico” que faz recusar o Concílio. Um tal pretexto se apóia sobre um preconceito sem fundamento. É claro que hoje não é suficiente repetir o dado conciliar, mas é necessário ao mesmo tempo refutar e recusar os desvios e as interpretações errôneas que pretendem ter fundamento no ensino conciliar. Isto vale também para a liturgia. Esta é a dificuldade com a qual nos deparamos hoje.
“Os fiéis que requerem a celebração da forma extraordinária não devem nunca ajudar ou pertencer à grupos que neguem a validade ou a legitimidade da Santa missa ou dos sacramentos celebrados segundo a forma ordinária, ou que se opõem ao Pontífice romano como pastor supremo da Igreja universal” (instrução Universæ Ecclesiæ, §19). Esta observação visa a Fraternidade São Pio X?
Formas complementares? Papa Bento XVI na Áustria: comunhão na mão e paramentos extravagantes.
O artigo da instrução à que você se refere concerne certos grupos de fiéis que consideram ou postulam uma antítese entre o missal de 1962 e aquele de Paulo VI, e que pensam que o rito promulgado por Paulo VI para a celebração do Sacrifício da Santa Missa é prejudicial aos fiéis. Quero precisar que é preciso distinguir o rito e a missa como tal, celebrado conforme as normas, e uma certa compreensão e aplicação da reforma litúrgica caracterizada pela ambigüidade, deformações doutrinais, abusos e banalizações, fenômenos infelizmente bastante difundidos que levaram o cardeal J. Ratzinger a falar sem hesitar em uma das suas publicações do “colapso da liturgia”. Seria injusto e falso atribuir ao missal reformado a causa de um tal colapso. Ao mesmo tempo, é preciso acolher o ensinamento e a disciplina que o papa Bento XVI nos deu na carta apostólica “Summorum Pontificum” para restaurar a forma extraordinária do rito romano antigo e seguir a maneira exemplar com a qual o Santo Padre celebra a Santa Missa na forma ordinária na São Pedro, em suas visitas pastorais e em suas viagens apostólicas.
Hoje ainda, o senhor pensa que o ensino do Concílio não é corretamente aplicado?
No conjunto, infelizmente sim. Existem situações complexas nas quais constatamos que o ensino do Concílio ainda não é compreendido. Praticamos ainda uma hermenêutica da descontinuidade com a Tradição.
Bento XVI parece muito atento à liturgia durante o seu pontificado. Isto procede?
Está absolutamente correto, mas a precisão que eu dei dizia respeito sobretudo aos grupos que pensam que existe uma oposição entre os dois missais.
A Fraternidade São Pio X reconhece esse missal como válido e lícito?
É preciso perguntar à própria Fraternidade São Pio X.
O Santo Padre deseja que a FSSPX se reconcilie com Roma?
Certamente. A carta de levantamento das excomunhões dos quatro bispos consagrados ilegitimamente por Mons. Lefebvre é a expressão do desejo do Santo Padre de favorecer a reconciliação da FSSPX com a Santa Sé.
O conteúdo das discussões que têm lugar entre Roma e a FSSPX é secreto, mas sobre quais questões e de que maneira estão se desenrolando?
O nó essencial é de caráter doutrinal. Para chegar à uma verdadeira reconciliação, é preciso ultrapassar certos problemas doutrinais que estão na base da cisão atual. Nos colóquios em curso, temos a confrontação dos argumentos entre os experts escolhidos pela FSSPX e os experts escolhidos pela Congregação para a Doutrina da Fé. No fim, redigimos sínteses conclusivas que resumem as posições expressas pelas duas partes. Os temas discutidos são conhecidos: o primado e a colegialidade episcopal; a relação entre a Igreja Católica e as confissões cristãs não católicas; a liberdade religiosa; o missal de Paulo VI. Ao termo dos colóquios, submeteremos os resultados das discussões às respectivas instâncias autorizadas para uma avaliação do conjunto.
Não parece concebível que possa haver um questionamento do CVII. Então sobre o que podem ser essas discussões? Sobre uma melhor compreensão dele?
Trata-se da clarificação de pontos para precisar o significado exato do ensinamento do Concílio. É o que o Santo Padre começou a fazer em 22 de dezembro de 2005 compreendendo o Concílio em uma hermenêutica de renovação na continuidade. Entretanto, existem certas objeções da FSSPX que fazem sentido, pois tem havido uma interpretação de ruptura. O objetivo é mostrar que é preciso interpretar o Concílio na continuidade da Tradição da Igreja.
O Cardeal Ratzinger era responsável por estas discussões há 20 anos. Ele ainda segue a evolução delas agora que ele é Papa?
Tem-se primeiro o papel do secretário que é o de organizar e velar pelo bom desenrolar das discussões. A avaliação destas cabe ao Santo Padre que segue as discussões, junto com o cardeal Levada, é informado, e dá a sua opinião. Ele faz o mesmo, aliás, sobre todos os pontos que pode tratar a Congregação.
Segundo o site francês Golias, é muito provável que Monsenhor Guido Pozzo, secretário da Comissão Ecclesia Dei, seja nomeado bispo nas próximas semanas. Tal medida seria plenamente razoável, considerada a elevação de status da Comissão através da Instrução Universae Ecclesiae. Confirmando-se a notícia, restaria apenas uma dúvida: seria ele sagrado conforme o rito tradicional?
A constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II, afirma que “a Igreja, quando a fé ou o bem comum não estão em questão, não intenciona impor, nem mesmo na liturgia, uma rígida uniformidade” (n. 37). Não escapa a muitos que hoje esteja em questão a fé, por cuja razão seja necessário que as legítimas variedades de formas rituais devam recobrar a unidade essencial do culto Católico. O Papa Bento XVI, de maneira acurada, assim recordou: “No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da terra, corre o perigo de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus. Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf. Jo 13, 1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado”. (Carta de Sua Santidade, o Papa Bento XVI, aos bispos da Igreja Católica a respeito da remissão das excomunhões dos quarto bispos sagrados pelo arcebispo Lefebvre, 10 de março 2009).
O beato João Paulo II, por sua vez, recordava que a “Sagrada Liturgia expressa e celebra a única fé professada por todos e, sendo uma herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igrejas locais isoladamente da Igreja Universal”. (Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 51) e que a “Liturgia nunca é propriedade privada de ninguém, seja do celebrante ou da comunidade na qual os mistérios são celebrados (ibid. n. 52). Na Constituição litúrgica Conciliar se afirma ademais: “O Sagrado Concílio declara que a Santa Madre Igreja considera com igual direito e honra todos os ritos legitimamente reconhecidos; que deseja preservá-los no futuro e por todos os meios promovê-los” (n. 4). A estima pelas formas rituais é o pressuposto para o trabalho de revisão que de tempos em tempos se torna necessário. Agora, as duas formas, ordinária e extraordinária da liturgia romana, são um exemplo de crescimento e enriquecimento mútuo. Quem pensa ou age de maneira contrária solapa a unidade do Rito Romano, que deve ser cuidadosamente protegida, não desenvolve uma autêntica atividade pastoral ou uma correta renovação litúrgica, mas priva os fiéis de seu patrimônio e seu legado ao qual têm direito.
Em continuidade com o Magistério de seus predecessores, Bento XVI promulgou em 2007 o Motu Proprio Summorum Pontificum, com o qual tornou mais acessível à Igreja Universal as riquezas da liturgia Romana, e agora dá o mandato à Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei” de publicar a Instrução “Universae Ecclesiae”, a fim de corretamente favorecer sua aplicação.
Na introdução do documento afirma-se: “Com o sobredito Motu Proprio o Sumo Pontífice Bento XVI promulgou uma lei universal para a Igreja” (n. 2). Isso significa que não se trata de um indulto, nem de uma lei para um grupo particular, mas de uma lei para toda a Igreja, que, dada a matéria, é também uma “lei especial” que “derroga os textos legislativos inerentes aos sagrados Ritos promulgados a partir de 1962 e incompatíveis com as rubricas dos livros litúrgicos em vigor em 1962” (n. 28). Recorda-se aqui o áureo princípio patrístico do qual depende a comunhão católica: “cada Igreja particular deve concordar com a Igreja universal, não só quanto à fé e aos sinais sacramentais, mas também quanto aos usos recebidos universalmente da ininterrupta tradição apostólica, os quais devem ser observados tanto para evitar os erros quanto para transmitir a integridade da fé, de sorte que a lei de oração da Igreja corresponda à lei da fé” (n. 3). O célebre princípio lex orandi-lexcredendi recordado neste parágrafo está no fundamento da restauração da forma extraordinária: não foi alterada a doutrina católica da missa no rito romano, porque liturgia e doutrina são inseparáveis. Pode haver em uma ou outra forma do Rito Romano, ênfases, acentuações, explicitações mais marcadas em alguns aspectos com relação ao outro, mas isso não fere a unidade substancial da liturgia.
A liturgia foi e é, na disciplina da Igreja, matéria reservada ao Papa, enquanto os ordinários e conferências episcopais têm alguma competência delegada, especificada pelo Direito Canônico. Ademais, a instrução reafirma que há agora “duas formas da Liturgia Romana, definidas respectivamente ordinária e extraordinária: trata-se aqui de dois usos do único Rito Romano (…) Ambas as formas são expressões da mesma lex orandi da Igreja. Pelo seu uso venerável e antigo a forma extraordinária deve ser conservada em devida honra. (n. 6). O parágrafo seguinte recorda um ponto chave da Carta do Santo Padre aos bispos que acompanha o Motu Proprio: “Não existe qualquer contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum. Na história da Liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial”(n. 7). A instrução, na linha do Motu Proprio, não olha apenas os que desejam continuar a celebrar a fé da mesma maneira que a Igreja substancialmente fez por séculos; o Papa quis ajudar todos os Católicos a viver a verdade da liturgia a fim de que, conhecendo e participando na antiga forma da celebração Romana, compreendam que a Constituição Sacrosanctum Concilium desejou reformar a liturgia em continuidade com a tradição.
Monsenhor Guido Pozzo – edição de L’Osservatore Romano de 15 de maio de 2011.
Mons. Guido Pozzo - Foto: JP Sonnen, Orbis Catholicus.
O Secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei desenvolveu no terceiro congresso sobre o motu proprio Summorum Pontificum a conferência mais esperada, pois dele era a tarefa de explicar ao auditório a fresquíssima Instrução Universae Ecclesiae sobre o motu proprio publicada ontem.
O pano de fundo desta Instrução, explicou ele, são as informações e relatórios enviados pelo episcopado mundial, após os três anos de entrada em vigor do Motu Proprio. A partir deles, e também das comunicações dos grupos envolvidos, fica patente que o motu proprio já produziu frutuosos efeitos. Certamente, acrescentou, de forma desigual entre as várias igrejas locais. Além disso, seria ingênuo negar que ainda exista resistência e hostilidade tanto da parte do clero como dos bispos.
Mas a reticência deve ser dissipada exatamente pela minuciosa observância das disposições pontifícias, que convidam a reconhecer, por um lado, a liturgia reformada, purificada de abusos, mal-entendidos e imprecisões grosseiras, e, por outro, a grandeza da Tradição viva da Igreja.
A finalidade da Instrução Universae Ecclesiae é aplicar o [motu proprio] Summorum Pontificum.
Não há dúvida de que hoje, de fato, a fé está em jogo, que em grandes áreas da terra ela corre o risco de desaparecer como uma chama não alimentada, como lamentou o Papa na carta aos bispos pelo levantamento da excomunhão dos quatro bispos da FSSPX. A prioridade é, dessa forma, trazer o povo de volta para Deus; não a qualquer deus, mas àquele Deus que falou a Moisés no Sinai e se encarnou no seio de Maria. Ora, quem se opõe à liturgia antiga não desenvolve uma atividade pastoral no sentido devido e, na realidade, nega de fato a continuidade da Igreja.
A Instrução, portanto, esclarece ulteriormente que o motu proprio é lei para toda a Igreja, aliás, o que significa que (No. 28) derroga as normas incompatíveis emanadas a partir de 1962. O Motu Proprio, por conseguinte, não é um indulto ou uma concessão, mas uma disposição fundamental e geral sobre a liturgia.
A Instrução Universae Ecclesiae recorda em seu n. 8 que o motu proprio quer dar a TODOS os fiéis o tesouro da liturgia antiga, não para grupos específicos ou “nostálgicos”, como ainda ouvimos em certos círculos. O Motu Proprio é entendido em sentido favorável aos fiéis ligados à liturgia antiga. Aos bispos cabem promover estas aspirações legítimas, evitando a marginalização dos fiéis tradicionais, os quais, contudo, devem evitar formas de contestação da nova liturgia.
A Comissão Ecclesia Dei recebe plenos poderes para dirimir as controvérsias. Também são definidas a competência do bispo diocesano, que deve garantir que tudo se desenvolva serenamente, mas sempre na mente do Romano Pontífice, como expressa pelo motu proprio.
Há também os direitos e deveres dos fiéis leigos. Um coetus fidelium é estável se algumas pessoas se reúnem, mesmo após o motu proprio (eliminando assim o argumento hostil de que se deveria tratar de um grupo pré-existente) e também podem ser formados por fiéis de diversas paróquias e mesmo dioceses.
Não há número estabelecido; mas, de toda forma, mesmo para celebrações ordinárias é possível que os fiéis presentes sejam poucos.
Para os sacerdotes, exige-se um conhecimento básico de lingua latina: não um experto latinista. A este propósito, é determinado que os seminários devem ensinar o latim, como, de todo modo, impõe o documento conciliar Optatam totius: quem apela ao Concílio, comece por a aplicá-lo de verdade (e em tudo)!
Sobre as ordenações, de que o motu proprio não falava, a Instrução decidiu intervir com uma precisão: a pedido de alguns bispos que temiam vias paralelas e não harmonizadas na formação sacerdotal [ndr: Por que? Não são duas formas de um mesmo rito?], fica estabelecido que as ordens menores e a ordenação segundo o rito antigo sejam aplicáveis apenas aos institutos Ecclesia Dei. Fica também determinado que apenas com o diaconato se assume o estado clerical.
A Instrução tem um papel limitado, dada a natureza apenas aplicativa de tal documento. Seja como for, é um instrumento confiado in primis à responsabilidade dos bispos e padres, num espírito de caridade e solicitude pastoral. Mas, ao mesmo tempo, é uma ferramenta a serviço da celebração do culto divino. O Motu Proprio não é um passo atrás, mas um olhar para o futuro da Igreja, que não poderá jamais negar as suas próprias raízes, assim como não poderá jamais se fechar a uma renovação ancorada na Tradição da Igreja.
Contrariamente ao que os rumores romanos deixavam entender há ainda algumas semanas, e que davam conta de intrigas no Vaticano para limitar a benevolência do motu proprio de 2007 para com os tradicionalistas, a última versão do decreto de aplicação deveria definitivamente ser abundante no sentido desejado pelos defensores da missa “old style”.
Se certos Cardeais como William Levada, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé ou Antonio Maria Canizarès Llovera, prefeito da Congregação para o Culto Divino, tentaram limitar a amplitude da aplicação do motu proprio, o ponto de vista ratzingeriano de uma concessão mais ampla teria vencido. O Papa deseja, portanto, facilitar a celebração de acordo com os antigos livros litúrgicos e não endossa, por conseguinte, o ponto de vista restritivo. Que permanece, no entanto, sendo o da grande maioria dos bispos pelo mundo.
O Papa estaria convencido cada vez mais do franco sucesso dessa medida “liberal”. Sem dúvida, aqui ou acolá, algumas reservas sobreviveriam, por exemplo, sobre a missa de ordenação de padres diocesanos que não poderia ser celebrada segundo o rito antigo. No entanto, a intenção desta medida romana é, antes, condenar a leitura minimalista do motu proprio, no sentido em que a decisão de celebrar uma missa pública de acordo com o rito antigo (ou “forma extraordinária”, como se diz hoje) suporia o acordo do bispo do local, enquanto que cada pároco é livre para organizar tal celebração na sua paróquia desde que haja um pedido. Incontestavelmente, Bento XVI em nada ignora as reservas muito vivas dos bispos que às vezes proíbem párocos bem dispostos de acolher grupos unidos à antiga liturgia e de celebrar publicamente a missa para eles. Daí esta nova chamada à ordem dirigida não aos tradicionalistas, mas aos bispos pouco cooperativos. Dentre eles, altos prelados, por outro lado dificilmente suspeitos de progressismo, como os arcebispos de Madri (Rouco Varela) ou de Washington (Wuerl), dois cardeais de prestígio e de peso.
Sabemos, de fonte romana direta, que esse decreto de aplicação, com efeito, sofreu uma dupla correção. Inicialmente, tinha sido preparado por Mons. Guido Pozzo, secretário da Comissão Pontifícia “Ecclesia Dei”, responsável pelo caso. Posteriormente, o Cardeal Levada e seu fiel conselheiro, Mons. Charles J. Scicluna, um maltês, alteraram fortemente o texto em sentido restritivo. Com o acordo do Cardeal Canizarès Llovera, o Prefeito da Congregação para o Culto Divino! As nossas informações recentes estavam, portanto, exatas.
Uma vez alterado por Levada, o documento chegou ao escritório do Papa. E este último não teria ficado satisfeito com a reviravolta operada. Ele teria, então, retornado mais ou menos ao documento tal como Guido Pozzo o tinha inicialmente. Num sentido mais favorável aos tradicionalistas.
Apesar da sua posição moderada em certos aspectos, Bento XVI é muito ligado à sacralidade da liturgia, sob uma forma tradicional, para voltar atrás a esse respeito. Ele aceita o espírito de Assis. Deu um passo em direção aos judeus, exonerando-os de qualquer culpabilidade na morte de Cristo. Mas, sobre a liturgia, ele não mudou.
Não tem nada a ver com uma rejeição da autoridade do Concílio Vaticano Segundo per se, ou o posterior múnus papal de ensinar. Antes, tem a ver com certas afirmações ou ensinamentos nos documentos conciliares sobre a liberdade religiosa, ecumenismo, relações com religiões não-cristãs, o conceito das reformas litúrgicas, a unidade do Magistério vis-à-vis com a tradição. Em geral, as dificuldades da FSSPX tem a ver com a continuidade ou o desenvolvimento coerente de certos ensinamentos do Concílio, e o múnus papal de ensinar em vista do Magistério imutável da Igreja e da tradição. Não me parece que a FSSPX rejeite por princípio que seja possível ou legítimo haver um desenvolvimento, ou um aprofundamento orgânico, coerente, da doutrina Católica. O que separa a FSSPX da posição da Santa Sé é o juízo feito sobre a continuidade ou consistência entre certos ensinamentos do Concílio Vaticano Segundo e as declarações anteriores do Magistério. Creio que as declarações mais recentes do Papa Bento XVI sobre a hermenêutica de renovação na continuidade com a tradição e o perene Magistério da Igreja fornecem um princípio básico para a solução do conflito. Elas giram em torno de aplicar este princípio tanto nos casos particulares como no todo — mais do que até agora vem sendo.
[…]
O caso de Dom Williamson é um incidente isolado, e cabe ao Superior da FSSPX lidar com ele dentro da Fraternidade, mesmo com medidas disciplinares, como ditarem as circunstâncias. A Santa Sé já se expressou com absoluta clareza sobre a questão das posições de Williamson. No livro Luz do Mundo, que acabou de ser publicado, o Santo Padre confirmou que o caso Williamson, na medida em que tem a ver com seus pronunciamentos errôneos com relação ao holocausto, é uma questão separada. Ela deve ser completamente separada da questão da relação entre a FSSPX e a Santa Sé, que tem a ver com problemas de doutrina e direito canônico”.
Monsenhor Guido Pozzo em entrevista concedida à Rádio Vaticano
Onde o senhor vê a real deficiência dos lefebvristas: na doutrina ou na política?
“Estou convencido de que as questões que impedem a plena reconciliação da FSSPX com a Santa Sé dizem respeito à doutrina. Reflexos ou possíveis implicações ideológicas e políticas poderiam surgir, mas elas não constituem um elemento primário ou determinante das discussões.”
[Comentário do Distrito Alemão da FSSPX]: Na penúltima pergunta “A Comissão Ecclesia Dei pode aconselhar os fiéis a ir à Missa [celebrada] por padres da Fraternidade?” Mons. Pozzo erra ao desaconselhar a freqüência da missa em latim nas igrejas da FSSPX.
De acordo com o CIC Canon 844 §2, todo católico pode receber “os sacramentos da Reconciliação, Eucaristia e Unção dos Enfermos de dispensadores não católicos, em cujas igrejas os referidos sacramentos sejam dispensados validamente”. Assim mesmo se a Fraternidade Sacerdotal São Pio X – como o Monsenhor afirma – também após a retirada do Ex-Decreto ainda fosse descrita como “não católica”, todo mundo poderia freqüentar os sacramentos, “quando um benefício espiritual o aconselhasse” (§2)! Esse cânon também é importante para a discussão com outras comunidades Ecclesia Dei, que acreditam que é preciso envenenar poços ao impedir os fiéis de receber os sacramentos da Fraternidade.
Além disso, existe também umEsclarecimento do Monsenhor Camille Perl, de 18 de janeiro de 2003,a pedido da Una Voce (uma associação conservadora) nos EUA, com as seguintes palavras: “Em sentido estrito o senhor poderia cumprir o seu preceito dominical freqüentando uma missa celebrada por um padre da Fraternidade Sacerdotal São Pio X.” Respondendo à pergunta se a pessoa pode contribuir na hora da coleta, o prelado escreve ainda: “Parece que uma contribuição modesta para a coleta dominical pode ser algo justo.”
Nesse ponto se contradizem dois prelados romanos em uma questão importante. Um esclarecimento seria não apenas desejável, mas indispensável.
O Senhor poderia estimar quanto tempo pode levar para o retorno dos lefebvristas à Igreja Católica?
“Não fixamos nenhuma data. Rezamos, trabalhamos e incentivamos que a reintegração da FSSPX na plena comunhão não leve muito tempo.”
[Comentário do Distrito Alemão da FSSPX]: Nossa Dica para essa última pergunta: Um primeiro passo, em vez de falar continuamente de uma “comunhão eclesial plena” imaginária (a pergunta que se deve fazer agora é o que significa “meia” comunhão eclesial, na qual a Fraternidade supostamente se encontra), deve-se dizer aberta e claramente que a recepção dos sacramentos na Fraternidade Sacerdotal São X não é apenas permitida, mas também desejável, porque ela representa uma garantia, tanto para a fé quanto para a moral, de se permanecer católico em uma época de apostasia em massa da Igreja! Isso serve para os fiéis e para a FSSPX mais do que a advertência farisaica perante os sacramentos se a “situação canônica ainda não estiver esclarecida” e quanto as expressões fraternais “plena comunhão”.
Apresentamos nossa tradução de um excerto da entrevista concedida por Mons. Guido Pozzo, secretário da Comissão Ecclesia Dei, ao serviço alemão da Rádio Vaticano (via Distrito Alemão da FSSPX):
A Missa Antiga na Basílica de São Pedro: Pode-se celebrá-la hoje em dia sem mais rodeios?
“Com a entrada em vigor do Motu proprio Summorum Pontificum a Forma extraordinária da Missa não está mais sob indulto, como anteriormente, mas ela é regida pelas normas do Motu proprio. Também na Basílica de São Pedro as normas do Motu Proprio serão aplicadas.”
Ou seja, também na sacristia de São Pedro tudo fica preparado para se poder celebrar segundo o rito antigo?
“Sim, pelo que eu saiba. De fato, muitos padres celebram a missa no rito antigo lá pela manhã, também com acólitos.”
Será que o Papa Bento um dia celebrará uma missa solene na forma extraordinária?
“Creio que a pergunta está sendo feita para a pessoa errada!”
Quanto às discussões da Santa Sé com os lefebvristas, [como] também [é conhecida] a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX): O senhor poderia dizer se houve progresso até agora?
“ A confidencialidade é a condição essencial para o sucesso das negociações em curso entre os especialistas da Congregaçao para a Doutrina da Fé e a FSSPX. E não vou divergir desse principio. Mas posso dizer que o clima das discussões é positivo, construtivo e apoiado por estima mútua. Até agora as discussões se destinam a apresentar as razões e argumentos de um e de outro lado, a fim de expor a base ou a raiz das dificuldades magisteriais existentes. Sondar essa raiz e as últimas razões das dificuldades com clareza ao meu ver é um progresso.”
O Papa Bento escreveu que os sacerdotes das comunidades vinculadas à forma antiga do rito romano também não podem, em princípio, excluir a celebração segundo os novos livros. Como a Fraternidade de São Pio X encara essa questão?
“É preciso fazer essa pergunta à FSSPX. Penso, como disse agora mesmo, que também a questão dos livros litúrgicos da Reforma de Paulo VI está enquadrada no entendimento correto da reforma litúrgica e na subseqüente aplicação correta. A questão básica que a FSSPX precisa responder é se a forma ordinária do rito romano, promulgada por Paulo VI, é válida e legítima em si mesma. Nesse ponto não pode haver qualquer dúvida e nenhuma hesitação. A resposta deve ser “sim” indiscutivelmente. Em uma outra página ficam a ambigüidade, deficiência e também erros doutrinários que se espalharam no tempo pós conciliar, seja na compreensão teológica, seja na aplicação da reforma litúrgica. O então Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento, falou a respeito de uma “demolição” da liturgia. A partir desse ângulo de visão não se pode dizer que muitas das críticas seriam injustas.”
O blog New Liturgical Movement acaba de publicar os pontos mais importantes de uma entrevista concedida hoje ao serviço alemão da Rádio Vaticano por Mons. Guido Pozzo, Secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, por ocasião dos três anos de Summorum Pontificum. Nossa tradução segue abaixo:
1. (Quando questionado sobre a resistência ao usus antiquior): O antigo Rito da Missa tem uma profunda riqueza que precisa não só ser respeitada, mas também redescoberta, para o bem da liturgia, também como é celebrada hoje. Esses preconceitos e resistências têm de ser superados por uma mudança na forma mentis, na disposição. É necessária uma formação litúrgica mais adequada.
2. (Quando questionado se o interesse no usus antiquior está crescendo:) Eu diria crescendo. Também porque observamos que especialmente nas jovens gerações há interesse e popularidade da antiga forma da Missa. E isso é surpreendente.
3. (Quando questionado sobre o número de fiéis interessados na Forma Extraordinária): Está absolutamente claro, também, que o valor da Forma Extraordinária do Rito não tem nada que ver com números. Ambas as formas são iguais em valor e dignidade.
4. Sou da opinião que se deva oferecer aos seminaristas a oportunidade de aprender adequadamente a celebração na Forma Extraordinária nos seminários — não como uma obrigação, mas como uma possibilidade. Onde possível, se poderia fazer uso da formação dos padres daquelas instituições que estão sob a jurisdição da Comissão Ecclesia Dei e seguem a disciplina litúrgica tradicional.
5. Na carta aos bispos que acompanha o motu proprio, o Papa Bento XVI mencionou, por um lado, a necessidade de atualizar o calendário dos Santos, i.e., inserir os Santos proclamados após 1962, e, por outro, que certos prefácios do Missal de Paulo VI deveriam ser incorporados a fim de enriquecer a coleção de prefácios do Missal de 1962. A Comissão Ecclesia Dei estabeleceu um processo de estudos para cumprir a vontade do Santo Padre. Aqui chegaremos em breve, acredito, a uma proposta, que logo será submetida ao Santo Padre para aprovação.
6. Creio que devamos reconhecer que a Forma Ordinária do Rito Romano oferece uma mais ampla leitura da Escritura do que o Missal de 1962. Porém, uma emenda do Missal de 1962 a este respeito não é fácil, porque deve-se ter em conta a relação entre as leituras bíblicas e as antífonas ou responsórios do breviário Romano para aquele dia. É útil recordar também, no entanto, que sob o Papa Pio XII um número de leituras adicionais para o comum dos Santos foi adicionado. Portanto, não se pode rejeitar uma possível extensão das leituras da Missa. O que não significa, todavia, que se possa, enquanto bispo ou padre celebrante, subjetiva e arbitrariamente mudar a sequência do Lecionário ou misturar as duas formas, de modo que o caráter de ambos seja perdido.
7. À luz destas explicações (na carta aos bispos), é claro que os fiéis Católicos são encorajados a evitar a participação nas Missas ou recepção dos sacramentos de um padre da FSSPX, pois estão canonicamente irregulares.
Dom Bernard Fellay : “Em um ponto de inflexão” – 16 de outubro de 2010
Entrevista com Dom Bernard Fellay – Nouvelles de Chrétienté set.-out. 2010 – Fonte: DICI
A Fraternidade Sacerdotal São Pio X celebra seus 40 anos. É o fim da travessia pela deserto, como para os hebreus nos tempos de Moisés?
Creio que o que vivemos se parece mais com uma dessas incursões dos exploradores que entrevêem a terra prometida, sem que as circunstâncias lhes permitam adentrá-la.
Para evitar alguma falsa interpretação da imagem utilizada, quero precisar que continuamos afirmando sempre e firmemente que somos católicos e que, com a ajuda de Deus, queremos permanecer como tais. No entanto, para a Igreja toda, esta crise se parece muito com a travessia pelo deserto, com a diferença de que o maná é muito mais difícil de ser encontrado. Há sinais alentadores, sobretudo da parte de Roma, mas infelizmente estão juntos de outros sinais bem preocupantes. Algumas fiapos de grama no deserto…
Apesar de tudo, como se desenvolve a Fraternidade Sacerdotal São Pio X em todo o mundo?
Com efeito, a Fraternidade se desenvolve um pouco por toda parte. Algumas regiões tem um impulso maior que outras, penso, por exemplo, nos Estados Unidos, mas o grande obstáculo que encontramos é a falta de sacerdotes. Falta-nos desesperadamente sacerdotes para responder como deveríamos aos pedidos de auxílio que nos chegam de todas as partes. A cada nomeação fazemos uma escolha que deixa sem resposta um ou vários grupos de fiéis. Por um lado, é antes um bom sinal, pois mostra claramente o desenvolvimento de nossa obra, mas também é muito doloroso. Pensem nos países de missão, em particular na África ou no Brasil. Se pudéssemos enviar para lá uns cinqüenta sacerdotes seria um grande alívio. A Ásia também espera…
Dom Lefebvre dizia que para as autoridades romanas as cifras deste crescimento eram mais eloqüentes que os argumentos teológicos? Continua sendo assim?
Não sei se devemos dizer as “cifras” ou os “feitos”. De todo modo, ambos pertencem à mesma ordem de coisas. Segundo um velho adágio, contra factum non fit argumentum, contra fatos, não há discussão possível; isto conserva toda a sua força. E a afirmação de Dom Lefebvre é muito correta. Destaquemos que não é tanto o número o que impressiona Roma, pois continuamos a ser uma quantidade insignificante no conjunto do Corpo Místico. Esses frutos magníficos, que certamente são, segundo as próprias palavras de um alto prelado romano, a obra do Espírito Santo, são o que move as autoridades romanas ao voltar seus olhares para nós. Tanto mais quanto se trata de frutos frescos que crescem no meio do deserto.
Neste mês de setembro, os relatórios sobre a aplicação do Motu Proprio com referência à missa tradicional devem ser enviados à Santa Sé. São poucos os bispos que aplicaram generosamente as diretrizes romanas. Como o senhor explica esta reticência, ou melhor, esta resistência?
Do mesmo modo que a nova missa expressa um certo espírito novo que é o do Vaticano II, assim também a missa tradicional expressa o espírito católico. Os que se agarram com unhas e dentes ao Vaticano II por verem nele um novo ponto de partida da Igreja, ou os que consideram que com o Vaticano II uma página da história da Igreja foi deixada para trás definitivamente, são quem simplesmente não podem aceitar a co-existência de uma missa que recorda exatamente tudo o que pensavam ter deixado eternamente para trás. Há dois espíritos diferentes encarnados em duas missas. É um fato! E os dois não caminham juntos! Encontra-se no católico moderno um ódio semelhante para com o rosário, por exemplo. E tudo se relaciona. Vemos na questão da missa um exemplo muito bom da complexidade da crise que sacode a Igreja.
O senhor quer dizer que hoje, na Igreja, por detrás de uma fachada de unidade, esconderiam-se fraturas não só entre os episcopados locais e Roma, mas mesmo Roma entre diversas tendências opostas? O senhor tem provas?
Oh ! Sim, lamentavelmente estamos nos tempos anunciados em que se verão Cardeal contra Cardeal, Bispo contra Bispo. Este tipo de disputa é geralmente muito discreto e escapa à vista dos fiéis. Mas nesses últimos tempos, em diversas ocasiões, converteu-se em algo público e notório, como no ataque gratuito do Cardeal Schönborn contra o Cardeal Sodano. Isso se pareceu muito com um acerto de contas. Mas não é segredo que tendências opostas se chocam mesmo em Roma. Conhecemos vários fatos, mas não creio que seja útil para os fiéis que essas coisas sejam reveladas.
Em uma recente conferência no seminário da Fraternidade São Pedro (1), Mons. Guido Pozzo, secretário da Comissão Ecclesia Dei, esforça-se em dar uma prova de continuidade doutrinal entre Vaticano II e a Tradição. Cita, com este fim, a questão do subsistit in e a do ecumenismo. Esses exemplos lhe parecem convincentes?
Eu não diria convincentes, mas surpreendentes. Esta conferência é a aplicação muito lógica dos princípios enunciados em dezembro de 2005 por Bento XVI. E nos oferece uma apresentação do ecumenismo bastante diferente do que temos escutado durante quarenta anos…, uma apresentação mesclada com os princípios eternos sobre a unidade da Igreja e sua perfeição única, sobre a exclusividade da salvação. Claramente se vê uma tentativa de salvar o ensinamento de sempre e, ao mesmo tempo, um Concílio reconsiderado sob uma luz tradicional. A mescla, ainda que interessante, deixa ainda abertas questões de lógica sobre o papel que desempenham as outras confissões cristãs… chamadas, inclusive por Pio XII, de “falsas religiões”. Eles se atreverão, em algum momento, a utilizar novamente este termo?
Peregrinação da Fraternidade São Pio X a Roma por ocasião do Jubileu do ano 2000.
Mons. Pozzo propõe em sua extensa conclusão um Concílio Vaticano II revisado – se não corrigido –, denunciando o relativismo, um certo “pastoralismo”, uma espécie de “dialoguismo” excessivo… O senhor pensa que esta apresentação é capaz de chegar à unanimidade em Roma e nas dioceses? Como o senhor julga esta versão revisada do Concílio?
É interessante no sentido de que se nos apresenta um novo Vaticano II, um Concílio do qual, de fato, nunca tivemos conhecimento, e que se distingue daquele que nos tem sido apresentado nos últimos quarenta anos. Uma espécie de nova pele! É interessante, sobretudo, porque a tendência ultra-moderna é condenada muito fortemente. Nos é apresentado uma espécie de Concílio moderado ou “acalmado”. Permanece, no entanto, a questão da recepção desta fórmula nova, certamente julgada como muito tradicional pelos modernos e não suficientemente tradicional por nós. Digamos que uma boa parte de nossos ataques se vê justificada, uma boa parte do que condenamos é condenado. Mas se certas coisas são condenadas, a divergência permanece sendo grande sobre as causas. Já que, enfim, se foi possível semelhante desorientação acerca do Concílio, e em tal escala, e com tal amplitude… é necessária uma causa proporcional! Se comprovam semelhante divergência de interpretação a propósito dos textos do Concílio, há de se concluir algum dia que as deficiências dos textos têm sua parte de culpa.
Alguns no seio da Tradição pensam que a crise deveria terminar instantaneamente, realizando a passagem desta crise até sua solução de uma só vez. Em sua opinião, trata-se de um sinal de confiança sobrenatural ou de impaciência demasiadamente humana? Em uma solução gradual da crise, quais são as etapas positivas já verificadas? Quais são as que o senhor desejaria ver no futuro?
A solução instantânea da crise, como alguns imaginam, não pode provir senão de um milagre ou de uma grande violência. Se não ocorre assim, permanece então a solução gradual. Mesmo que, em potência absoluta, não se pode excluir que Deus possa fazer tal milagre, todavia, de maneira habitual, Deus governa sua Igreja de outra maneira, por uma cooperação mais normal das criaturas e de seus santos. Em geral, a reabsorção de ma crise dura ao menos tanto tempo como sua ativação, inclusive mais. O caminho da reconstrução é longo, o trabalho é imenso. Mas, acima de tudo, a escolha dos homens será determinante. Se a política de nomeações dos bispos finalmente mudar, podemos ter esperança. Na mesma ordem, seria necessária uma profunda reforma do ensinamento das universidades pontifícias, da formação dos sacerdotes nos seminários. Trata-se de trabalhos de longo prazo que, por ora, são ainda sonhos, mas que em um período de dez anos poderiam já tomar forma concreta. Tudo depende primeiramente do Papa. No momento, o positivo é o reconhecimento de que muitas coisas vão mal… Aceita-se dizer que há uma enfermidade, uma grande crise na Igreja. Eles irão muito mais longe do que isso? Veremos…
Com o que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X pode contribuir, concretamente, para a solução desta crise sem precedentes? Que papel podem ter os fiéis da Tradição nesta obra de restauração? O que o senhor espera da jovem geração que hoje tem 20 anos e que terão 60… dentro de 40 anos?
Recordar que a Igreja tem um passado que ainda hoje permanece completamente válido. Um novo olhar, não empoeirado, sobre a Tradição da Igreja é uma contribuição decisiva para a solução da crise. A isso devemos acrescentar o chamar a atenção sobre o poder da Missa Tradicional, da missão e do papel do sacerdote tal como quer Nosso Senhor, segundo sua imagem e segundo seu Espírito. Quando perguntamos aos sacerdotes que se aproximam da Fraternidade o que esperam de nós, eles nos respondem primeiro que esperam a doutrina. E isso mesmo antes da Missa. É surpreendente, mas ao mesmo tempo é um bom sinal. Os fiéis têm o importante papel do testemunho, de mostrar que a vida cristã como sempre foi entendida, com suas exigências e o respeito à lei de Deus, é perfeitamente possível no mundo moderno. A vida cristã levada à prática é um exemplo muito concreto do que tem necessidade o homem da rua. E quanto à geração dos que hoje têm 20 anos, vejo que ela está à espera, pronta para a aventura da Tradição, sabendo bem que lhes é oferecido fora dela é pura aparência. Estamos em um ponto de inflexão para a reconstrução do futuro, e mesmo que isso ainda não seja visto claramente, creio que tudo é possível.
(1) Conferência dada por Mons. Guido Pozzo, em 2 de julho de 2010, no seminário de Wigratzbad, intitulada, “Aspectos da eclesiologia católica na recepção do Vaticano II” [tradução do Fratres in Unum aqui] . Ver nosso comentário em DICI n. 220 de 7 de agosto de 2010, Vaticano II,um debate entre Romano Amerio, Mons. Gherardini e Mons. Pozzo”. [tradução do Fratres in Unum aqui].