Giuseppe Sarto, a eleição de um santo (II).

Leia antes o primeiro post da série.

O veto contra Rampolla

Cardeal Mariano Rampolla.
Cardeal Mariano Rampolla.

Até o quinto escrutínio, Rampolla era o “candidato” mais bem colocado, ao menos com a maioria dos votos. Para muitos observadores não eclesiásticos, e para um certo número de cardeais, como dissemos, ele era o candidato óbvio para suceder a Leão XIII, uma vez que as pessoas estavam certas de que ele daria continuidade às políticas do Papa a quem servira como Secretário de Estado. Isso explica o elevado número de votos em seu favor nos primeiros escrutínios. Relativamente pouca atenção foi dada, todavia, ao fato de que o crescimento de seus votos, de um escrutínio a outro, não era impressivo. Da segunda para a terceira votação ele ficou estagnado em 29, um sinal de que seu nome encontrava dura oposição no coração do Sagrado Colégio e que ele havia atingido, talvez, o máximo de votos possível. Neste ponto, antes da quarta votação, ocorreu o que ficaria conhecido como o “veto” do cardeal Puzyna.

Cardeal Puzyna, Princípe de Kozielsko, Bispo de Cracóvia (então dentro do Império Austríaco), levantou-se para ler uma declaração em latim. [Ele o fez “ao sinal do Cardeal Kopp”, afirma Landrieux, informado por um cardeal (“Le Conclave de 1903”, p. 177). Cardeal Kopp era o bispo de Breslau (hoje Wroclaw, Polônia)]

Ele declarou: “… oficialmente e em nome e pela autoridade de Franz-Josef, Imperador da Áustria e Rei da Hungria, que Sua Majestade, em virtude de um antigo direito e privilégio, pronuncia um veto de exclusão contra o meu Eminentíssimo Senhor, o Cardeal Mariano Rampolla del Tindaro”. [O Cardeal Mathieu, em “Les derniers jours de León XIII et le conclave de 1903”, p. 280, dá o  texto latino integral da declaração; Marchesan, p. 483, o reproduz. As outra fontes dão a substância do texto, com notáveis diferenças (Cardeal Perraud insistia na natureza “semi-oficial” do veto).]

O Cardeal Puzyna falou muito rapidamente, com enorme emoção. Muitos cardeais não compreenderam o que a sua declaração significava, e alguns sequer ouviram-na completamente. Um cardeal italiano então leu a declaração novamente em voz clara. Todos entenderam que um veto fora lançado contra o Cardeal Rampolla.

Nenhum dos participantes do conclave, nos relatos escritos que citamos, deu as razões que levaram a Áustria a pronunciar este veto. Nem os primeiros biógrafos de Pio X se arriscaram a especular o motivo dessa exclusão do antigo Secretário de Estado de Leão XIII. Desde então, os historiadores aventaram razões de natureza política. A Áustria estaria insatisfeita com o apoio dado pelo antigo Secretário de Estado às aspirações de eslavos e balcânicos, e o próprio cardeal Puzyna havia acusado Rampolla de ter sacrificado os interesses dos poloneses em favor de suas políticas pró-Rússia.

Algumas de suas críticas são ecoadas nos relatórios de diplomatas franceses à época da eleição. Quando o conclave estava para começar, Bihourd, embaixador da França em Berlim, escreveu ao seu governo: “O que o governo austro-húngaro mais teme é o possível sucesso do Cardeal Rampolla. Em Viena, teme-se que a sua eleição apenas encorajaria as aspirações de independência por parte dos católicos eslávos na Croácia, Carniola, Boemia e outras partes do reinado”. [Cf. Aubert, “Pio X tra restaurazione e riforma”, Storia della Chiesa, vol. XXII/1, La Chiesa e la società industriale, pp. 108-109, que remete aos estudos de F. Engel-Janosi e Z. Obertynski.] … Após a eleição, contudo, o cônsul-geral da França na Hungria daria uma razão adicional: “Não é tanto a hostilidade do antigo Secretário de Estado vis-à-vis a Tríplice Aliança que levou a esta intervenção direta da Áustria, mas a sua obstinada frustração, em diversas ocasiões, dos interesses da Hungria”, e deu como exemplos as dificuldades encontradas em relação às indicações episcopais na Hungria e sua rejeição — oposta pela Santa Sé — do desejo do Império de ver o cardinalato concedido a Dom Samossa. [Relatório do cônsul-geral da França na Hungria ao Ministro de Assuntos Exteriores, 12 de agosto de 19023, AMAE, NS 4, f.46-49.]

Alguns outros escritores levantaram outra razão para o veto austríaco estritamente religiosa: o Cardeal Rampolla supostamente era maçom. [O Marquês de La Franquerie, em seu livreto Saint Pie X sauveur de L’Église et de la France (Montsûrs: Éditions Résiac, 1976), p.3, escreve: “Devemos ter em mente que o Cardeal Rampolla estava praticamente eleito, mas o Imperador da Áustria – sem dúvida ciente de que o Secretário de Estado de Leão XIII pertencia à maçonaria – lançou o seu veto. Este veto providencialmente evitou que uma ferramente de Lúcifer ascendesse ao trono pontifício, e felizmente resultou em um Santo sendo elevado e ele”.] Na época não houve nenhuma menção disso, nem em relatórios de diplomatas nem nos escritos dos participantes do conclave, e sequer pelos “integristas” da La Sapinière[Em 1913, em uma lista elaborada por Monsenhor Benigni e alguns de seus amigos antes do futuro conclave, apenas um cardeal era suspeito de ser maçom; Agliardi foi julgado muito severamente: “um homem de tipo superior, sua mente cheia de ilusões, um sonhador, o Júlio Verne da política eclesiástica, o Crispi do governo papal, um megalomaníaco” (lista publicada por Émile Poulat, Intégrisme et catholicisme intégral [Tournai-Paris: Casterman, 1969], pp. 329-330).] Só após o pontificado de Pio X é que este rumor começou a se espalhar. [O rumor de que ele pertencera à maçonaria apenas começou a ser difundido após 1929, em decorrência dos artigos que apareceram em publicações contra-revolucionárias: cf. as citações encontradas em Georges Virabeau, Prélats et francs-maçons (Paris: Publications HC, 1978), pp. 26-31.] Podemos imaginar que se houvesse a mínima suspeita a este respeito em 1903, o Cardeal Sarto, uma vez eleito Papa, teria removido o Cardeal Rampolla de toda função pública na Igreja. Rampolla, no entanto, embora tenha perdido o posto de Secretário de Estado, manteve a maior parte de suas funções no pontificado de Pio X, e mesmo alcançou outras novas. Ademais, nós veremos que, se ele apenas exercia um papel secundário, era porque voluntariamente ingressara em uma semi-aposentadoria.

Neste momento, porém, confrontado com o veto impetrado contra si, o Cardeal Rampolla levantou-se e respondeu, calmamente, em latim: “Em nome dos princípios, protesto contra este ataque à liberdade e dignidade do Sagrado Colégio. No que diz respeito à minha própria pessoa, eu declaro que nada mais agradável e honroso (nihil jucundius, nihis honorabilius) poderia me acontecer”. Oreglia, o Cardeal Decano, fez uma declaração protestando contra esta intervenção estrangeira e afirmou que o conclave manteria a sua completa liberdade. Posteriormente, o Cardeal Perraud, em nome dos cardeais franceses, também fez o seu protesto.[Alguns meses após a sua eleição, na Constituição Apostólica Commissum nobis (20 de janeiro de 1904), Pio X formalmente condenou esta prática do veto ou exclusive e ameaçou de excomunhão qualquer cardeal que, no futuro, concordasse a apresentar tal medida no conclave (Documents pontificaux, vol. I, pp. 85-87).]

Inicialmente, o veto austríaco não teve nenhum efeito, uma vez que, no quarto escrutínio, o Cardeal Rampolla continuou a ter a maioria dos votos, mesmo que só tivesse alcançado um voto a mais do que nas votações anteriores e estivesse longe de obter os necessários dois terços dos votos. Diferentemente, o Cardeal Sarto continuava a avançar tranquilamente. Ele recebeu 24 votos neste quarto escrutínio e 27 no seguinte — o maior número de votos entre todos os cardeais nesta quinta votação. Tornava-se mais e mais certo que ele seria eleito ao Sumo Pontificado.

Continua…

Saint Pius X, Restorer of the Church, Yves Chiron, Angelus Press, 2002, pp. 121-124 | Tradução: Fratres in Unum.com. As notas com meras remissões bibliográficas foram excluídas.

7 comentários sobre “Giuseppe Sarto, a eleição de um santo (II).

  1. Excelente! Isso põe uma pá de cal no mito do “Rampolla maçom”. Dois errinhos de digitação: onde “eslávios”, “eslavos”; onde: “apenas um cardeal era suspeito de ser maçom; Agliardi Rampolla foi julgado muito severamente”, esta frase está truncada ou mal pontuada, e deve ser: “era suspeito de ser maçom: Agliardi; Rampolla era julgado muito severamente” etc.

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  2. É talvez importante lembrar que o veto ou exclusiva já fora condenado por pronunciamentos papais anteriores. Notadamente, o beato Pio IX, na sua Constituição In hac sublimi, já havia condenado qualquer intervenção secular na eleição do Papa. E Gregório XV na bula Aeterni Patris, de 1621, proibia os Cardeais de conspirarem para a exclusão de qualquer candidato. Pio IV, na sua bula In eligendis, já havia mandado que os Cardeais elegessem o Papa sem atentar para qualquer forma de interferência secular.

    Entretanto, esses pronunciamentos pontifícios anteriores à Constituição Commissum Nobis, de 1903, ainda não previam especificamente a pena de excomunhão latae sententiae reservada à Santa Sé.

    O que São Pio X, na sua bula Comissum Nobis de 1903 fez foi ratificar a proibição do veto em termos solenes e absolutos, fazendo referência expressa não só às intervenções seculares em geral, mas também ao suposto direito e privilégio de certos monarcas de lançarem vetos nas eleições papais, repudiando tal prática e abolindo-a por inteiro, interditando qualquer colaboração com qualquer tentativa de veto, com invocação da sagrada obediência e com a ameaça formal do juízo divino, e cominando expressamente a pena de excomunhão latae sententiae a quem ousar violar essa proibição.

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  3. Faltou falar aqui, da relação do Rampolla e do “raliment” na França, pois desarmou os católicos franceses conservadores monarquistas (ultramontanos) contra os catolicos maçons que eram republicanos liberais.

    Quando terminou o “raliment” na França o estado em sua republica maçonica roubou para si as propriedades da Igreja católica que culminou numa violenta perseguição ao religiosos católicos. O beato Pio IX e São Pio X agiram de forma correta pois com o mal e o erro não se pode ceder, não foi o que fez Rampolla e Leão XIII na questão acima. O Raliment é complexo e mereceria um post só para este assunto.

    Quanto a Hungria e os poloneses estes povos, como autenticos católicos que eram, nunca combateram a “dominação” austriaca, muito pelo contrário, a Austria como a ultima monarquia católica autentica, sacral e anti-igualitária sempre foi amada, tanto é que o Imperador Francisco José sempre foi bem recebido e quando ao fim da primeira guerra foram os hungaros e não os austriacos que pediram o retorno da monarquia católica e toda uma questão envolvendo o hoje beato Carlos da Austria, cujo assunto também é muito complexo para um comentário.

    Por fim, não se pode duvidar que no conclave que elegeu São PioX, foi um conclave em que os cardeais mais corresponderam ao Espirito Santo, inclusive o Cardeal Puzyna com o veto austriaco e se o Rampolla foi quem rodou frente a São Pio X, a mim coisa boa não era.

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  4. Aqui concordo em gênero, número e grau com o Lucas Januskiewicz. Dizer que um cardeal filo-russo poderia ainda assim ser ortodoxo é algo que me faz cair da cadeira, junto como raillement. Aliás, qquase todos os nacionalistas dos estados-membros do Império Austro-Húngaro defendiam a instauração do protestantismo ou ortodoxia, algo que seria um suicídio eclesiológico.

    O que posso dizer com certa autoridade, é que o Bispo-Conde de Sobral – Dom José Tupinambá da Frota -, que havia sido um pupilo e protegido de Rampolla, e amigo íntimo de seu discípulo-mor Della Chiesa, era adepto de práticas místicas no mínimo estrranhíssimas, sendo o seu filho adotivo, o Padre Palhano, um aberto maçom…

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