Cardeal Caffarra: “Somente um cego pode negar que haja uma grande confusão”.

Abaixo, FratresInUnum.com publica uma importantíssima entrevista do Cardeal Carlo Cafarra, arcebispo emérito de Bologna e atualmente uma das maiores autoridades em Teologia Moral, acerca dos dubia recentemente apresentados ao Papa Francisco. Pedimos aos nossos leitores que leiam atentamente e, para o bem da Igreja, divulguem essa entrevista. Diante das retaliações esboçadas contra o Cardeal Burke, Cafarra vem a público mostrar que o tema não é a conduta pessoal desse ou daquele cardeal, mas as contradições de Amoris Laetitia. De certo modo, ele devolve o tema ao debate, e num nível muito elevado. É realmente confortante podermos ler declarações tão lúcidas, nas quais se sente o seu amor à Igreja, a sua fidelidade à doutrina, a sua retidão de consciência e a serenidade de quem sabe estar cumprindo um dever. São palavras dignas de um bispo da Igreja!

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Entrevista com Cardeal Caffarra: “A divisão entre os pastores é a causa da carta que enviamos a Francisco. Não o seu efeito. Insultos e ameaças de sanções canônicas são coisas indignas”. “Uma Igreja com pouca atenção à doutrina não é mais pastoral, é apenas mais ignorante”.

Por Matteo Matzuzzi, Il Foglio, 14 de janeiro de 2017 | Tradução: FratresInUnum.com

Bolonha. “Creio que devam ser esclarecidas diversas coisas. A carta, – e os dubia anexos –, foi longamente refletida, durante meses, e longamente discutida entre nós. Pelo que me diz respeito, foi também objeto de longas orações diante do Santíssimo Sacramento”. O cardeal Carlo Caffarra coloca estas premissas, antes de iniciar a longa conversa com ‘Il Foglio’, sobre a hoje célebre carta “dos quatro cardeais”, enviada ao Papa para pedir-lhe esclarecimentos em relação a Amoris Laetitia, a exortação que tirou as conclusões do duplo Sínodo sobre a família e que tanto debate, — nem sempre com nobreza e elegância —, desencadeou dentro e fora dos muros vaticanos.

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“Estávamos conscientes de que o gesto que estávamos realizando era muito sério. As nossas preocupações eram duas. A primeira era a de não escandalizar os pequenos na fé. Para nós, pastores, este é um dever fundamental. A segunda preocupação era que nenhuma pessoa, crente ou não crente, pudesse encontrar na carta expressões que, mesmo remotamente, parecessem ainda que uma mínima falta de respeito para com o Papa. O texto final, portanto, foi fruto de diversas revisões: textos revisados, rejeitados, corrigidos”. Colocadas estas premissas, Caffarra entra no assunto.

“O que nos levou a este gesto? Uma consideração de caráter geral-estrutural e outra de caráter contingente-conjuntural. Comecemos com a primeira. Existe para nós, cardeais, o grave dever de aconselhar o Papa no governo da Igreja. É um dever, e os deveres obrigam. Há também o fato,  de caráter mais contingente, — que somente um cego pode negar —, que na Igreja existe uma grande confusão, incerteza, insegurança, causada por alguns parágrafos da Amoris Laetitia. O que está acontecendo nos últimos meses é que, sobre as mesmas questões fundamentais em relação à economia sacramental (matrimônio, confissão e Eucaristia) e a vida cristã, alguns bispos disseram A, outros disseram o contrário de A. Com a intenção de bem interpretar os mesmos textos”.

E “este é um fato, inegável, porque os fatos são teimosos, como dizia David Hume. O caminho de saída deste ‘conflito de interpretações’ seria o recurso aos critérios interpretativos teológicos fundamentais, utilizando os quais penso ser possível mostrar razoavelmente que Amoris Laetitia não contradiz a Familiaris Consortio. Pessoalmente, nos encontros públicos com leigos e sacerdotes, sempre segui este caminho”. Não foi suficiente, observa o arcebispo de Bolonha. “Entendemos que este modelo epistemológico não era suficiente. O contraste entre estas duas interpretações continuava. Havia um único modo para resolvê-lo: pedir ao autor do texto, interpretado de duas maneiras contraditórias, qual é a interpretação correta. Não há outro caminho. Colocava-se, em seguida, o problema sobre o modo pelo qual dirigir-se ao Pontífice. Escolhemos um caminho muito tradicional na Igreja, os assim chamados ‘dubia’”.

Por que? “Porque tratava-se de um instrumento pelo qual, caso o Santo Padre, segundo o seu soberano julgamento, tivesse querido responder, não seria obrigado a respostas elaboradas e longas. Deveria responder apenas ‘Sim’ ou ‘Não’. E remeter, como frequentemente os Papas o fizeram, aos autores de comprovado saber (em latim, ‘probati auctores‘), ou pedir à Doutrina da Fé que publicasse uma declaração adicional pela qual fosse explicado o ‘Sim’ ou o ‘Não’.  Parecia-nos o caminho mais simples. A outra questão que se colocava era se isto deveria ser feito privada ou publicamente. Refletimos e concordamos que teria sido uma falta de respeito tornar tudo público desde o início. Assim, o fizemos de modo privado, e somente quando tivemos a certeza que o Santo Padre não teria respondido, decidimos publicar”.

Este é um dos pontos sobre os quais mais se discutiu, e que deram origem a polêmicas relacionadas. Por último, veio o cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito do ex Santo Ofício, que julgou como um erro a publicação da carta. Caffarra explica. “Interpretamos o silêncio como autorização para prosseguir o debate teológico. E, ademais, o problema envolve tão profundamente tanto o magistério dos bispos, (que, não esqueçamos, o exercem não por delegação do Papa, mas pelo próprio sacramento que receberam), como a vida dos fiéis. Uns e outros têm o direito de saber. Muitos fiéis e sacerdotes diziam: ‘mas os senhores cardeais, em uma situação como esta, têm o dever de intervir junto ao Santo Padre; senão, para que existem, se não ajudam o Papa em questões tão graves?’ Começava a produzir-se o escândalo de muitos fiéis, como se nós estivéssemos nos comportando como os cães que não ladram, dos quais fala o Profeta. Isto é o que há por trás daquelas duas páginas”.

Mesmo assim, as críticas choveram, inclusive de irmãos bispos ou monsenhores de cúria: “Algumas pessoas continuam a dizer que nós não somos dóceis ao magistério do Papa. É falso e calunioso. É exatamente porque não queremos ser indóceis que escrevemos ao Papa. Eu posso ser dócil ao magistério do Papa se sei o que o Papa ensina em matéria de fé e de vida cristã. Mas o problema é exatamente este: que sobre alguns pontos fundamentais não se entende bem o que o Papa ensina, como o demonstra o conflito de interpretações entre os bispos. Nós queremos ser dóceis ao magistério do Papa, mas o magistério do Papa deve ser claro. Nenhum de nós, — diz o arcebispo de Bolonha —, quis ‘obrigar’ o Santo Padre a responder: na carta falamos de soberano julgamento. Simples e respeitosamente fizemos perguntas. Finalmente, não merecem atenção as acusações de querermos dividir a Igreja. A divisão, já existente na Igreja, é a causa da carta, não o seu efeito. São, ao contrário, coisas indignas dentro da Igreja, sobretudo em um contexto como este, os insultos e as ameaças de sanções canônicas”. Na introdução da carta reconhecemos “uma grave perplexidade de muitos fiéis e uma grande confusão sobre questões muito importantes para a vida da Igreja”.

Em que consistem, especificamente, a confusão e a perplexidade? Responde Caffarra: “Recebi uma carta de um pároco que é uma fotografia perfeita do que está acontecendo. Escrevia ele: ‘Na direção espiritual e na confissão não sei mais o que dizer. Quando um penitente me diz: vivo, para todos os efeitos, como marido com uma mulher que é divorciada e agora estou comungando; eu lhe proponho um caminho para corrigir esta situação. Mas o penitente me detém e logo responde: ouça, padre, o Papa disse que posso receber a Eucaristia, sem precisar fazer o propósito de viver em continência. Eu não posso suportar mais esta situação. A Igreja pode me pedir tudo, mas não que eu traia a minha consciência. E a minha consciência tem objeções a um suposto ensinamento pontifício de permitir a Eucaristia para quem vive como marido e mulher, sem ser casado’. Assim escrevia o pároco. A situação de muitos pastores de almas, refiro-me sobretudo aos párocos, — observa o cardeal —, é esta: têm sobre os ombros um peso que não estão em condições de suportar. É nisso que penso quando falo de uma grande perplexidade. Falo dos párocos, mas muitos fiéis estão ainda mais perplexos. Estamos falando de questões que não são secundárias. Não estamos discutindo se o peixe quebra ou não quebra a abstinência. Trata-se de questões gravíssimas para a vida da Igreja e para a salvação eterna dos fiéis. Não devemos esquecer nunca que esta é a lei suprema da Igreja, a salvação eterna dos fiéis. Não outras preocupações. Jesus fundou a sua Igreja para que os fiéis tenha a vida eterna, e a tenham em abundância”.

A divisão a que se refere o cardeal Carlo Caffarra originou-se principalmente por causa da interpretação dos parágrafos de Amoris Laetitia que vão do número 300 ao 305. Para muitos, inclusive diversos bispos, encontramos aqui a confirmação de uma ruptura, não apenas pastoral, como também, e sobretudo, doutrinal. Outros, ao contrário, pensam que tudo está perfeitamente inserido e em conformidade com o magistério precedente. Como se pode sair de semelhante equívoco? “Colocaria duas premissas muito importantes. Pensar em uma práxis pastoral não fundamentada e enraizada na doutrina significa fundamentar e enraizar a práxis pastoral sobre o arbítrio. Uma Igreja com pouca atenção à doutrina não é uma Igreja mais pastoral, mas é uma Igreja mais ignorante. A Verdade da qual nós falamos não é uma verdade formal, mas uma Verdade que nos concede salvação eterna: ‘veritas salutaris‘, em termos teológicos. Explico. Existe uma verdade formal. Por exemplo, quero saber se o maior rio do mundo é o Rio Amazonas ou o Rio Nilo. Esta é uma verdade formal. Formal significa que este conhecimento não tem nenhuma relação com o meu modo de ser livre. Mesmo que a resposta tivesse sido a contrária, não teria mudado nada no meu modo de ser livre. Mas há verdades que eu chamo de existenciais. Se é verdade, — como Sócrates já havia ensinado —, que é melhor padecer a injustiça do que praticá-la, estou enunciando uma verdade que provoca a minha liberdade para agir de um modo muito diverso se fosse verdade o contrário. Quando a Igreja fala de verdade, — acrescenta Caffarra —, fala da verdade do segundo tipo, a qual, se é obedecida pela liberdade, gera a verdadeira vida. Quando ouço dizer que se trata apenas de uma mudança pastoral e não doutrinal, ou pensamos que o mandamento que proíbe o adultério seja uma lei puramente positiva que pode ser mudada, (e penso que nenhuma pessoa reta possa sustentar isto), ou isso significa admitir, sim, que o triângulo tem geralmente três lados, mas que existe também a possibilidade de construir algum que tenha quatro lados. Ou seja, estou dizendo um coisa absurda. Os medievais, além disso, diziam: “theoria sine praxi, currus sine axi; praxis sine theoria, caecus in via” (ndt: a teoria, sem a práxis, é como um carro sem eixo, que é o mesmo que dizer, sem rodas; a práxis, sem a teoria, é como um cego na estrada).

A segunda premissa que faz o arcebispo diz respeito “ao grande tema da evolução da doutrina, que sempre acompanhou o pensamento cristão. E que sabemos ter sido retomado de modo esplêndido pelo Beato John Henry Newman. Se há um ponto claro é que não há evolução onde há contradição. Se eu digo que ‘s’ é ‘p’ e depois digo que ‘s’ não é ‘p’, a segunda proposição não desenvolve a primeira, mas a contradiz. Aristóteles já havia justamente ensinado que ao se enunciar uma proposição universal afirmativa (por exemplo, todo adultério é injusto) e ao mesmo tempo uma proposição particular negativa tendo o mesmo sujeito e predicado (por exemplo, certos adultérios não são injustos), não se faz uma exceção à primeira. Mas a contradiz. Por fim, se quisesse definir a lógica da vida cristã, usaria a expressão de Kiekegaard: ‘Mover-se sempre, permanecendo sempre parado no mesmo ponto’”.

O problema, acrescenta o purpurado, “é ver se os famosos parágrafos nn. 300-305 de Amoris Laetitia e a famosa nota n.351 estão ou não estão em contradição com o magistério precedente dos Pontífices que enfrentaram a mesma questão. Segundo muitos bispos, estão em contradição. Segundo muitos outros bispos, não se trata de uma contradição, mas de um desenvolvimento. É por isso que pedimos uma resposta do Papa”. Chega, assim, ao ponto mais contestado e que tanto animou as discussões sinodais: a possibilidade de conceder aos divorciados e recasados civilmente a reaproximação à Eucaristia. Coisa que não encontra explicitamente espaço em Amoris Laetitia, mas que, segundo o juízo de muitos, é um fato implícito, que representa nada mais do que uma evolução em relação ao n. 84 da Exortação Familiaris Consortio, de João Paulo II.

“O problema no seu nó é o seguinte”, argumenta Cafarra: “O ministro da Eucaristia (em geral, o sacerdote) pode dar a Eucaristia a uma pessoa que vive more uxorio (ndt. como se fosse casada, isto é, tendo relações sexuais) com uma mulher ou com um homem que não é a sua mulher ou o seu marido, e não pretende viver em continência? As respostas são apenas duas: Sim ou Não. Ninguém, aliás, põe em questão que Familiaris consortio, Sacramentum unitatis, o Código de Direito Canônico e o Catecismo da Igreja Católica à esta pergunta respondam Não. Um Não válido, até que o fiel não proponha abandonar o estado de convivência more uxorio. Amoris Laetitia ensinou que, dadas certas circunstâncias precisas e realizado um certo percurso, o fiel poderia aproximar-se da Eucaristia sem se comprometer em viver a continência? Há bispos que ensinam que se pode. Por uma simples questão de lógica, se deveria, então, ensinar que o adultério não é um mal em si e por si. Não é pertinente apelar à ignorância ou ao erro em relação à indissolubilidade do matrimônio: um fato infelizmente muito difuso. Este apelo tem um valor interpretativo, não orientativo. Deve ser usado como método para discernir a imputabilidade das ações já realizadas, mas não pode ser princípio para ações a serem realizadas. O sacerdote – diz o cardeal – tem o dever de iluminar o ignorante e corrigir o errante”.

“Ao contrário, aquilo que Amoris Laetitia trouxe de novo sobre essa questão é a chamada aos pastores de alma de não se contentarem com responder Não (não se contentar, porém, não significa responder Sim), mas de tomar a pessoa pela mão e ajudá-la a crescer até o ponto que entenda que se encontra em uma tal condição que não pode receber a Eucaristia, se não cessar com as intimidades próprias dos esposos. Mas não é que o sacerdote possa dizer ‘ajudo o seu caminho dando-lhe os sacramentos’. E é sobre isso que, na nota n. 351, o texto é ambíguo. Se eu digo à pessoa que não pode ter relações sexuais com aquele que não é o seu marido ou a sua mulher, porém, no entanto, visto que isso é tão difícil, pode ter… apenas uma ao contrário de três por semana, não há sentido; e não uso de misericórdia para com essa pessoa. Porque, para pôr fim a um comportamento habitual – um habitus, diriam os teólogos – é necessário que haja o decidido propósito de não realizar nenhum ato próprio daquele comportamento. Há um progresso no bem, mas entre deixar o mal e iniciar a fazer o bem há uma escolha instantânea, mesmo que longamente preparada. Por um certo período, Agostinho rezava: ‘Senhor, dai-me a castidade, mas não já’”. A discorrer sobre os dúbia, parece-me compreender que, em jogo, mais do que Familiaris Consortio, esteja a Veritatis Splendor. É assim?

“Sim”, responde Carlo Cafarra. “Aqui está em questão aquilo que ensina a Veritatis Splendor. Esta Encíclica (6 de agosto de 1993) é um documento altamente doutrinal, nas intenções do Papa São João Paulo II, a tal ponto que – coisa excepcional atualmente nas encíclicas – é endereçada somente aos bispos, enquanto responsáveis da fé que se deve crer e viver (cf. n. 5). A estes, ao fim, o Papa recomenda serem vigilantes a respeito de doutrinas condenadas ou ensinadas pela própria encíclica. Aquelas, para que não se difundam na comunidade cristã, essas, para que sejam ensinadas (cf. n. 116). Um dos ensinamentos profundos do documento é que existem atos que podem ser por si mesmos e em si mesmos, prescindindo das circunstâncias em que são realizados e das intenções que o agente se propõe, qualificados como desonestos. E acrescenta que negar este fato pode levar a negar o sentido do martírio (cf. nn. 90-94). Cada mártir, de fato – sublinha o arcebispo emérito de Bolonha – poderia ter dito: ‘Mas eu me encontro em uma circunstância… em tais situações para as quais o dever grave de professar a minha fé ou de afirmar a intangibilidade de um bem moral não me obrigam mais’. Se pensarmos às dificuldades que Tomás More sofria por causa de sua esposa, na prisão: ‘tens deveres para com tua família, para com teus filhos’. Não é, então, apenas um discurso de fé. Mesmo usando apenas a reta razão vejo que, negando a existência de certos atos intrinsecamente desonestos, nego que exista um confim além do qual os poderosos deste mundo não podem e não devem ir. Sócrates foi o primeiro no ocidente a compreender isso. A questão, portanto, é grave, e sobre isso não se podem deixar incertezas. Por isso, nos permitimos pedir ao Papa para deixar claro, porque há bispos que parecem negar tal fato, fazendo referência a Amoris Laetitia. O adultério, de fato, sempre foi considerado entre os atos intrinsecamente maus. Basta ler o que diz Jesus a respeito, São Paulo e os mandamentos dados por Deus a Moisés”. Mas há ainda espaço, hoje, para os assim chamados atos “intrinsecamente maus”. Ou, talvez, é tempo de olhar mais o outro lado da balança, ao fato que tudo, diante de Deus, pode ser perdoado?

Atenção, diz Cafarra: “Aqui se faz uma grande confusão. Todos os pecados e as escolhas intrinsecamente desonestas podem ser perdoadas. Então, ‘intrinsecamente desonestos’ não significa ‘imperdoáveis’. Jesus, todavia, não se contenta em dizer à adúltera: ‘Nem eu te condeno’. Diz-lhe também: ‘Vai e, de agora em diante, não peques mais’ (Jo 8,10). São Tomás, inspirando-se em Santo Agostinho, faz um comentário belíssimo, quando escreve que ‘Teria podido dizer: vai, e vivas como queiras e estejas certa do meu perdão. Não obstante todos os teus pecados, eu te libertarei dos tormentos do inferno. Mas o Senhor, que não ama a culpa e não favorece o pecado, condena a culpa… dizendo: de agora em diante, não peques mais. Mostra-se, assim, como é terno o Senhor em sua misericórdia e justo na sua Verdade’ (cf. Comentário a João, 1139). Nós somos verdadeiramente – não é apenas um modo de dizer – livres diante do Senhor. E, então, o Senhor não nos joga seu perdão por trás de nossas costas. Deve haver um admirável e misterioso matrimônio entre a infinita misericórdia de Deus e a liberdade do homem, que se deve converter se quiser ser perdoado”.

Perguntamos ao cardeal Cafarra se uma certa confusão não deriva também da convicção, radicada também entre tantos pastores, de que a consciência seja uma faculdade para decidir autonomamente em relação àquilo que é o bem ou o mal, e que em última análise a palavra decisiva seja da consciência individual. “Considero este o ponto mais importante de todos”, responde. “É o lugar onde nos encontramos e desencontramos com a pilastra fundamental da modernidade. Comecemos por esclarecer a linguagem. A consciência não decide, porque ela é um ato da razão; a decisão é um ato da liberdade, da vontade. A consciência é um juízo em que o sujeito da proposição que o exprime é a escolha que estou para realizar ou que já realizei, e o predicado é a qualificação moral da escolha. É, então, um juízo, não uma decisão. Naturalmente, cada juízo racional se exercita à luz de critérios, de outro modo não seria um juízo, mas qualquer outra coisa. Critério é aquilo com base em que eu afirmo aquilo que afirmo ou nego aquilo que nego. A este ponto, é particularmente iluminante uma passagem do Tratado sobre a consciência moral do Beato Rosmini: ‘Há uma luz que está no homem e há uma luz que é o homem. A luz que está no homem é a lei da Verdade e a graça. A luz que é o homem é a reta consciência, porque o homem se torna luz quando participa da luz da lei da Verdade mediante a sua consciência conformada àquela luz’. Ora, diante dessa concepção da consciência moral se opõe a concepção que erige como tribunal inapelável da bondade ou malícia das próprias escolhas a própria subjetividade. Aqui, para mim – diz o purpurado – está o desencontro decisivo da visão da vida própria da Igreja (porque própria da divina Revelação) e a concepção da consciência própria da modernidade”.

“Quem viu isso de maneira lucidíssima – acrescenta – foi o Beato Newman. Na famosa carta ao Duque de Norfolk, diz: ‘A consciência é um vigário aborígene de Cristo. Um profeta nas suas informações, um monarca nas suas ordens, um sacerdote nas suas bênçãos e nos seus anátemas. Para o grande mundo da filosofia de hoje, estas palavras não são verbosidades vãs e estéreis, privadas de um significado concreto. Em nosso tempo, ferve uma guerra renhida, diria, quase uma espécie de conspiração contra os direitos da consciência’. Mais adiante, acrescenta que ‘em nome da consciência se destroem as verdadeiras consciências’. Eis porque, entre os cinco dúbia, o número cinco é o mais importante. Há uma passagem de Amoris Laetitia, no n. 303, que não está clara; parece – repito: parece – admitir a possibilidade de haver um juízo verdadeiro da consciência (não invencivelmente errôneo; isso sempre foi admitido pela Igreja) em contradição com aquilo que a Igreja ensina como atinente ao depósito da divina Revelação. Parece. E, por isso, apresentamos a dúvida ao Papa”.

“Newman – recorda Cafarra – diz que ‘se o Papa falasse contra a consciência, tomada no verdadeiro significado da palavra, cometeria um verdadeiro suicídio, cavaria uma fossa debaixo dos seus pés’. São coisas de uma gravidade alarmante. Não diga nunca a uma pessoa: ‘Siga sempre a tua consciência’, sem acrescentar, sempre e na mesma hora: ‘Ama e procura a verdade sobre o bem’. Colocaria em suas mãos a arma mais destrutiva da sua humanidade”.

13 comentários sobre “Cardeal Caffarra: “Somente um cego pode negar que haja uma grande confusão”.

  1. As medidas que os 4 cardeais tomaram junto ao papa Francisco, como relatou o eminente Cardeal Caffarra, destinaram-se para devidamente se esclarecerem os pontos sensiveis a mais interpretações que abrangiam pastores e sacerdotes, pondo-os em posições divergentes, bastante nossas conhecidas por meio dos prós e dos reticentes!
    Dessa forma, os 4 agiram de forma metódica e consciente, sem impulsos, no entanto: …”A carta, – e os dubia anexos –, foi longamente refletida, durante meses, e longamente discutida entre nós. Pelo que me diz respeito, foi também objeto de longas orações diante do Santíssimo Sacramento”.
    Foi a melhor das fundamentações, por primeiro procurarem agir às inspirações do SS Sacramento como pastores, sem pirotecnia alguma, inicialmente em privado, solicitando muito humildemente as explicações referentes às dubia e, não obtendo a necessaria resposta a que tinham direito, sentiram-se obrigados por grave dever de consciencia a torná-las públicas, pois a ocultação delas estaria favorecendo o relativismo – com toda razão.
    Anteriormente – no presente, teria algo mudado de posição – o proprio Cardeal Müller teria dito … sobre a permissão da S Comunhão a adúlteros, como aos “recasados”: “Não é possível negociar o ensinamento de Jesus Cristo”.
    … “A Igreja sempre diz “isto é verdadeiro, isto é falso” e ninguém pode interpretar de modo subjetivista os Mandamentos de Deus, as Bem-aventuranças, os Concílios, segundo seus próprios critérios, seu interesse ou inclusive segundo suas necessidades, como se Deus fosse apenas um fundo para a sua autonomia”.
    Um exemplo de situação passível de dúvidas e ambiguidades sucedendo no clero e de forma ostensiva e bastante doutrinal?
    Confiram: na tvhorizonte, Questões de Fé, sáb., 10:30 H., o Pe José Cândido discorre sem cessar sobre tudo do papa Francisco, sem quaisquer restrições – muito ao contrario; no entanto, está sendo questionado – já se sentiria pressionado por certos descontentes e AGINDO IGUALMENTE, NÃO RESPONDERIA A CERTOS E-MAILS LHE PEDINDO EXPLICAÇÕES SOBRE DETERMINADOS TRECHOS DA A laetitia E A OUTROS MAIS DO PAPA FRANCISCO QUE GERARIAM IMPRECISÕES – mesmo assim, até agora, prossegue resoluto no “nada percebendo de dúvidas”…

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  2. Que Nossa Senhora de Fátima possa iluminar todos os responsáveis por esclarecerem esta confusão e dissiparem estas nuvens negras que pairam sobre a Igreja.

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  3. Só dos cardeais terem que prestar satisfações dos motivos da apresentação da dubia demonstra que estamos em tempos horríveis.

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  4. Duvido muito que Bergóglio escreverá algo… Ele vai continuar se fazendo de vítima e os cardeais sendo o lobo mau…
    Se ele fosse um pouquinho honesto, pediria que seus “teólogos” de frente respondessem aos dubias, mas, ele sabe que os pontos desse documento questionados estão em clara oposição ao

    Magistério, sem falar na balbúrdia colossal que aconteceu no famigerado Sínodo da “família”…
    Que os cardeais sigam em frente e não deixem esse Papa brincar com a Doutrina da Igreja, quanto mais que muitos Bispos, padres e leigos estão com eles, só não tem coragem de exporem a cara por medo da represália contundente que receberão, isso porque o Papa é “humilde e aberto ao diálogo”, com espírito “franciscano”…
    Com essa entrevista totalmente embasada no bi milenar Magistério da Igreja alguém em sã consciência tem coragem de negar a seriedade e a preocupação dos cardeais?
    Rezemos e confiemos porque estamos no ano centenário de Fátima e Nossa Senhora advertiu e predisse essa situação caso não atendessem seus pedidos, e pra melhorar Bergóglio preferiu ir a Suécia “comemorar” Lutero a ir ou dar mais ênfase aos 100 anos de Fátima.

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  5. Simplesmente excelente! Claríssimo e profundamente embasado. O cardeal Caffarra me impressionou com sua entrevista..

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  6. Eu vivi por muitos anos com um homem que tinha sido casado na igreja. Tive duas filhas com ele. Sofria muito por não poder comungar, mas nunca pensei que deveria. Sempre soube que EU estava errada. Inclusive, li a história de Santa Laura Vicunha, em que ela rezou e fez penitência para que sua mãe – que também tinha uma filha com um homem com quem não era casada – deixasse-o. Eu também acabei me separando. Hoje comungo e confesso e tenho certeza de que esse é o caminho. Hoje sei que o mundo está todo errado. Que eu nunca deveria ter me envolvido com um homem que havia sido casado ou ainda é, pois perante Deus ele sempre será. O que a igreja precisa é exortar com muita veemência os jovens para que não tomem decisões erradas e não o contrário, passar a mão na cabeça dos que erraram. As pessoas precisam ser conscientizadas. Eu tomei decisões erradas porque não fui orientada. Estava a mercê de tudo o que aparecia na minha frente. Ia aceitando sem critérios. Hoje sei que a vontade de Deus para a minha vida era outra. Apesar de hoje estar no caminho de Deus, ainda sofro as consequências dos erros que cometi no passado. A igreja deve sim falar sem vergonha e sem essa ideia que estará constrangendo alguém. Sofri quando me separei, mas tenho certeza que só a eucaristia e a confissão são muito mais impostantes na minha vida e estão me dando um norte certo. Hoje sinto como se estivesse construindo a minha casa na rocha e não mais na areia. Se é que me entendem.

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  7. Lindo depoimento Andréa. Força!
    Não estamos aqui para “ser feliz” ou gozar a vida. Mas unicamente para conhecer a Deus e salvar a alma. Eis o desafio, em um mundo descristianizado, que só os corajosos conseguem encarar. Sem a Graça de Deus é impossível. Parabéns pelas suas decisões em favor de Deus e da sua alma.

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  8. A frase do cardeal seria mais correta se no lugar de confusão, ele dissesse “apostasia”.
    Enquanto os sacerdotes, bispos e demais as autoridades só combaterem os efeitos da crise sem apontarem a causa (Vaticano II), ou deixarem de a apontar devido a uma ignorância voluntária, só ouviremos palavras de perplexidade, mas não ações concretas para chegarmos a um termo ou diminuição desta situação terrível que há mais de 50 anos assola a Santa Igreja.

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