Giuseppe Sarto, a eleição de um santo (III – Final).

Leia antes o primeiro e segundo posts da série.

As razões por trás da eleição

São Pio X, rogai por nós!A eleição de um cardeal ao Sumo Pontificado é sempre o resultado de muitas considerações, políticas e espirituais. Se Sarto foi eleito, é porque havia um amplo acordo quanto a seu nome. Não que uma grande maioria de cardeais compartilhavam a mesma visão sobre ele, mas, antes, havia um acúmulo das várias razões que eles individualmente tinham para querê-lo como Papa. Gianpaolo Romanato assim resumiu estes motivos:

O Patriarca de Veneza parecia ser a pessoa mais satisfatória. Seus traços biográficos representavam uma espécie de garantia. Ele era um homem do povo, muito humilde, e não da nobreza; havia nascido não nos Estados Papais, mas no Reino da Lombardia-Venécia; ele nunca servira como diplomata pontifício; era um homem discretamente culto, mas não um intelectual; passara toda a sua carreira na cura das almas; era de conhecimento geral que, se necessário, ele sabia mandar e fazer-se obedecido. Além do mais, era conhecido por sua profunda piedade; totalmente distante dos lobbies romanos e desprovido de interesses pessoais. Por último, mas não menos importante, ele tinha exatamente a idade certa (68) para dar a todos as necessárias garantias de discernimento e prudência”. [Romanato, “Pio X: profile storico”, in Sulle orme di Pio X, p. 13.] 

Em suma, de muitas formas ele era o anti-Rampolla. Até o veto, o conclave havia sido em grande parte um reflexo das lutas de influência entre os grandes blocos de poder. O veto austríaco escandalizou muitos cardeais e fez com que eles vissem que o critério para escolher o sucessor de São Pedro deveria ser essencialmente religioso. Também é possível que, mesmo que os participantes do conclave ainda não tivessem informação suficiente para avaliar os resultados do pontificado de Leão XIII, eles tinham algumas de suas deficiências em mente. Enquanto as encíclicas sociais de Leão XIII, o seu prestígio com certos governos e seu encorajamento da renovação intelectual cristã (notavelmente através de um retorno à filosofia tomista e da renovação dos estudos bíblicos) contavam a seu favor, os observadores mais atentos não podiam deixar de ver os problemas que permaneceram não resolvidos: a inadequada formação do clero italiano e o seu laxismo, a crescente laicização das consciências e dos estados, os primeiros sinais do modernismo, etc. Dando os seus votos gradativamente ao Cardeal Sarto, os cardeais do conclave de 1903, evidentemente, queriam romper com um certo tipo de pontificado e com uma certa maneira com que a Igreja se apresentava ao mundo. Sem exagerar grosseiramente as diferenças — pois havia também continuidade –, podemos dizer que os cardeais queriam ver um papa proeminentemente político sucedido por um papa religioso, que traria a Igreja “de volta ao centro” — o centro sendo Cristo — ao unir o povo cristão nos fundamentos da disciplina e da defesa da fé.

O Cardeal Sarto, no entanto, não aspirava ao Sumo Pontificado. Há uma riqueza de detalhadas evidências de que ele não estava fingindo uma aparente humildade; nem é esta imagem o resultado de reconstrução hagiográfica após o acontecimento. Na mesma medida em que os votos cresciam para o Patriarca de Veneza, aumentava também a sua apreensão. Após o quarto escrutínio, ele declarou que “não foi feito para o Papado, e que as pessoas estavam usando o seu nome sem consultá-lo” [Landrieux, “Le Conclave de 1903”, p. 176]. Diversos cardeais foram à sua cela para encorajá-lo a não rejeitar o ofício pontifício se este lhe fosse confiado. O Cardeal Satolli repetiu a ele as palavras de Cristo a São Pedro, andando sobre as águas: “Ego sum, nolite timere!” e, sorrindo, disse-lhe: “Deus que vos ajudou a comandar a gôndola de São Marcos, ajudará a guiar a barca de São Pedro”. Após a quinta votação, parecia que movimento em favor do Patriarca de Veneza só poderia ficar cada vez mais forte. Porém, como relatou o conclavista Landrieux, “após o escrutínio, Sarto se levantou e declarou que ele era indigno da escolha que muitos estavam fazendo, e lhes implorou que votassem em outros” [Ibid., p. 178].

Os escrúpulos e as recusas do Cardeal Sarto eram tão insistentes que o Cardeal Decano, Oreglia di San Stefano, pediu a Monsenhor Merry del Val que fosse vê-lo. Monsenhor Merry del Val fez um relato deste primeiro encontro com o homem de quem ele seria o principal colaborador:

Sua Eminência (Cardeal Oreglia di San Stefano) se sentiu obrigado em consciência a assegurar que o conclave não se arrastasse [em um impasse], e enviou-me ao Cardeal Sarto para questioná-lo se ele insistiria em sua recusa e, fazendo-o, se desejaria e autorizaria que Sua Eminência, o Cardeal Decano, fizesse uma pública e definitiva declaração a este respeito ao conclave durante a sessão da tarde. Neste caso, o Cardeal Decano convidaria os seus confrades a refletir e ao menos a considerar a possibilidade de direcionar suas escolhas a outro candidato.

Eu parti imediatamente para procurar o Cardeal Sarto. Disseram-me que ele não estava em seu quarto e que eu provavelmente o encontraria na capela Paulina.

Era quase meia-noite quando adentrei à silenciosa e sombria capela…

Eu notei um cardeal ajoealhado no chão de mármore próximo ao altar, absorto em oração, com a cabeça entre as mãos e seus cotovelos apoiados em um pequeno banco.

Era o Cardeal Sarto.

Ajoelhei-me ao seu lado e, em voz baixa, dei-lhe a mensagem da qual havia sido incumbido.

Sua Eminência, assim que me compreendeu, levantou os seus olhos e lentamente voltou sua cabeça para mim, com lágrimas transbordando de seus olhos…

“Sim, sim, Monsignore”, ele acrescentou gentilmente, “pedi ao Cardeal Decano que me faça esta caridade…”

As únicas palavras que tive forças para expressar, e que vieram espontaneamente aos meus lábios, foram:

“Eminência, tende coragem! O Senhor vos ajudará!” [Cardeal Merry del Val, Pie X, Impressions et souvenirs”, p. 51]

Quando Pio X escreveu, nas primeiras linhas de sua primeira encíclica, “inútil é lembrar-vos com que lágrimas e com que ardentes preces Nos esforçamos por desviar de nós o múnus tão pesado do Pontificado supremo”, não se tratava de mera formulação costumeira de palavras.

A eleição

Entrementes, o Cardeal Sarto havia se restabelecido de suas apreensões. Outros cardeais, particularmente Ferrari e Satolli, vieram fazer “um premente apelo à sua consciência, para persuadi-lo a aceitar o sacrifício. [Cardeal Mathieu, “Les derniers jours”, p. 283.] O Cardeal Rampolla, apesar de seus votos em declínio, manteve sua candidatura. Fê-lo, afirmou ele, “por uma questão de princípio” e estava agindo “sob conselho formal de seu confessor”. [Cardeal Perraud, “Jounal du Conclave de 1903”, pp. 65-66.] Esta atitude, ao fim, atrasou a eleição do Cardeal Sarto. Parecia mesmo, após várias abordagens relatadas pelo Cardeal Perraud, que a obstinação de Rampolla era uma tática deliberada de obstrução contra Sarto. [O Cardeal Perraud relata duas visitas que o Cardeal Rampolla lhe fez em 4 de agosto: Ibid., p. 67. O Padre Landrieux, por sua vez, conta em seu Diário os esforços feitos pelos cardeais franceses para persuadir Rampolla a se retirar “nobremente”: a recusa deste impressionou os purpurados. Landrieux observa, sobre o penúltimo dia do conclave, após o sexto escrutínio no qual Rampolla recebeu apenas 16 votos (apenas metade do que recebera no dia anterior): “O comportamento de Rampolla é incompreensível. Ele não alcançou nada. Em quatro escrutínios, manteve 30 votos a seu favor para nada. Ele foi incapaz e relutante em dar qualquer direção àqueles que o apoiaram. Ele se recusou a sair quando se viu comprometido e perdeu o momento psicológico quando ele poderia salvar tudo com uma saída digna e honrosa”(“Le Conclave de 1903”, p. 179).]

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Finalmente, na votação — a sétima — da manhã de 4 de agosto, Cardeal Sarto recebeu 50 votos, contra apenas 10 do Cardeal Rampolla e 2 do Cardeal Gotti. “O Cardeal Sarto estava acabado”, recorda o Cardeal Mathieu: “seus olhos estavam cheios de lágrimas, o suor escorria por sua face e parecia estar quase desmaiando”. Segundo o ritual, o Cardeal Oreglia, Decano do Sacro Colégio, dirigiu-se a ele com dois outros cardeais para questionar ao recém eleito:

“Aceitais a eleição que canonicamente vos faz Soberano Pontífice?”

O Cardeal Sarto respondeu humildemente:

“Quoniam calix non potest transire, fiat voluntas Dei! (Já que não posso afastar-me deste cálice, faça-se a vontade de Deus)”.

Canonicamente, esta não era a resposta correta. O Cardeal Oreglia questionou novamente:

“Aceitais ou não?”

Então o Cardeal Sarto respondeu com a fórmula exigida:

Accepto!”

E quando questionado sobre qual nome ele doravante gostaria de ter, declarou:

“Pius Decimus (Pio X)”.

Saint Pius X, Restorer of the Church, Yves Chiron, Angelus Press, 2002, pp. 124-127 | Tradução: Fratres in Unum.com. As notas com meras remissões bibliográficas foram excluídas.

10 comentários sobre “Giuseppe Sarto, a eleição de um santo (III – Final).

  1. Em uma missa no dia da festa de São Pio X, o Pe. Paulo comentou que era grande a fama de santo dele em vida, até com curas que ele sempre atribuia “ao poder das santas chaves”. Disse o Pe. Paulo que os que o chamavam de santo recebiam dele a resposta: “Não sou Santo. Sou Sarto”.

    Que Deus nos conceda, não por nossos méritos, mas por Vossa infinita Misericórdia e Bondade, um Papa que nos guie às colunas da Eucaristia e da Virgem Santíssima, e que principalmente, seja do agrado do Coração de Deus.

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  2. Que maravilha! Que beleza! Que homens! Que época! Que Igreja! Salve São Pio X!! Já estou quase às lágrimas! Quem dera o Espírito Santo pudesse iluminar o atual Conclave, para dele sair um Pio XIII. Mas sabemos que foi exatamente por que Pio IX e Pio X não foram ouvidos e compreendidos, é que estamos agora a assistir o martírio da Santa Igreja. Que Nosso Senhor Jesus Cristo tenha misericórdia de nós e ilumine o senso dos Príncipes da Igreja.

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  3. Falou bem o LG acima que estamos para assistir ao martírio da Santa Igreja. A mim o Vatileaks tem mais a ver com as mensagens de Fatima, Akita, La Salete do que com coisas mais mundanas como desvio de dinheiro do banco do vaticano por eclesiásticos decadententes.

    Que São Pio X, o anti-Rampola intervenha junto ao Altíssimo a restauração da Igreja prometida por Nossa Senhora em Fátima.

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  4. Foi exatamente porque Pio IX e São Pio X não foram ouvidos é que estamos nessa situação. Eu desejo um próximo Papa Santo, mas também quero que ele seja levado à sério.

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  5. Bom dia a todos!
    Também quase cheguei às lágrimas. Que coisa bela! Belíssima!
    Senhor Jesus, Pastor Eterno, tende piedade de vossa Esposa, e concedei-nos um Pontífice que reconstrua o que está caído ao chão.
    São Gregório, São Pio V, São Pio X, e todos os demais papas santos e beatos, rogai por este Conclave!

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  6. Impressionante como os relatos denotam uma nítida e expressiva vocação para a santidade do então cardeal Giuseppe Sarto. Todos os momentos dentro do conclave foram de profunda constrição. Quem sabe o Espírito Santo não estava ali, na capela ao lado do cardeal Sarto, lhe preparando para o supremo múnus? Eu tenho certeza que sim.

    Deus nos deu em 1903 o homem certo na hora certa.

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  7. Caros irmãos!
    De maneira alguma quero julgar alguém, mas acredito que o momento não seja de escolhermos um papa tal ou qual seja o nosso interesse.
    Quem nos dera recebêssemos um papa que seja do interesse do Senhor!
    Um digno sucessor de Pedro, do mesmo Pedro que foi chamado de Satanás por Jesus logo após ter recebido o poder das chaves.
    Nunca nos esqueçamos que o Vigário de Cristo pode ser um Grande Papa e ao mesmo tempo um grande pecador.
    Eu rezo não por um papa santo. Eu rezo por um papa que torne santo o rebanho. Pois tendo o Senhor orado por Pedro, não mandou que ele se tornasse santo. Apenas que confirmasse os seus irmãos na fé.
    A santidade de Pedro se confirmou justamente neste fato: ele foi digno da tarefa que recebeu e confirmou a Igreja nascente na fé
    Por um papa que nos confirme na firme e sólida fé católica, ouvi-nos Senhor!

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