A verdadeira face de Dom Lefebvre. Novo livro de Cristina Siccardi.

Mestre em Sacerdócio, mestre na fé, aquele que salvou a Missa de sempre…

Fonte: Una Fides | Tradução: Giulia d’Amore di Ugento

Monsenhor Marcel Lefebvre nasceu em 29 de novembro de 1905, em Tourcoing (Norte da França), e morreu em Martigny (Valais, Suíça), em 25 de março de 1991. Arcebispo católico de Dakar e Delegado Apostólico para a África francesa, é nomeado Bispo de Tulle[1] em 1962; depois, Superior Geral da Congregação do Espírito Santo. Grande figura entre os representantes da oposição ao Concílio Vaticano II, em 1970 funda a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, com a finalidade de preservar o sacerdócio católico.

Menos de um ano após o primeiro livro, “Mons. Marcel Lefebvre: em nome da verdade“, a conhecida escritora católica Cristina Siccardi volta a enfrentar a figura do Bispo francês, fundador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Este fato já demonstra claramente o notável aumento do interesse por este personagem, controvertido e discutido, mas que deixou uma mensagem no mínimo atual, justo neste momento em que mais e mais vozes se levantam para analisar, de uma nova forma, e anticonformista, o grande fenômeno eclesial do Concílio Vaticano II.

Neste segundo livro, a autora intenta aprofundar sobretudo a espiritualidade e a doutrina de Mons. Lefebvre, evidenciando seu profundo apego à Igreja e à sua Tradição bimilenar.

Removendo o Impedimento Vaticano II.

Ele pode ter mantido a Fé quando milhões a abandonaram. Mas, ele estava em plena comunhão?

Por Christopher A. Ferrara – The Remnant
Tradução: Pale Ideas

Depois da publicação do Novus Ordo Missae, em 1970, os burocratas do Vaticano, sob o comando de Aníbal Bugnini, mentor da catastrófica “reforma litúrgica”, promoveram assiduamente a fraude de que a tradicional Missa em latim tinha sido proibida: derrogada, ab-rogada, objurgada, expurgada, extirpada, reprovada, encarcerada. Seja o que for. Em resposta à lunática contenda de que o recebido e aprovado Rito Romano era agora ilegal, muitos católicos prontamente afluíram para capelas independentes ou para as capelas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X para aguardar o dia em que o Vaticano retomasse o juízo.

Demorou quase 40 anos para que isso acontecesse definitivamente. Finalmente, em 7-7-07, o Papa Bento XVI declarou abertamente à Igreja universal, pela primeira vez desde que começou o naufrágio litúrgico, o que nós tradicionalistas sempre soubemos sobre o Missal em nossas mãos: “este Missal nunca foi juridicamente revogado e, consequentemente, em princípio, sempre foi permitido”.

Quanto a Bugnini, levou bem menos do que 40 anos para o Vaticano recuperar o juízo a respeito dele e de seu “trabalho”, mesmo que os resultados desastrosos tenham permanecido intactos. Em 1975, depois de alguns dias lendo um dossiê sobre Bugnini que tinha caído em sua mesa, o Papa Paulo VI demitiu o Mestre do Desastre, dissolvendo sua congregação e despachando-o para o Irã, para servir como núncio papal. Como Bugnini admite, falando de si mesmo na terceira pessoa, o dossiê teria supostamente “provado que o Arcebispo Bugnini era franco-maçom”. (Bugnini, A Reforma da Liturgia, 91). Seja o que for que o dossiê provou, o próprio Bugnini notou a ligação causal para o histórico registro: o Papa leu um dossiê sobre Bugnini e, então, Bugnini foi demitido. Como Bugnini ainda admitiu, a morte repentina de sua carreira como o Grande Reformador não poderia ter sido “o produto de ordinária vida administrativa. Ali, deve ter havido algo mais abalador” (Ibid.).

Década após década, os promotores da correição pós-conciliar — vocês sabem quem vocês são — piamente nos asseguraram que “a obediência ao Papa” nos obrigava a acreditar e agir como se o Papa tivesse proibido a Missa Tradicional. Agora, o próprio Papa declarou que isso é um absurdo. Mas outra proposição absurda da correição pós-conciliar permanece em voga: que a Fraternidade de São Pio X não tem “plena comunhão” com a Igreja, embora seus bispos não sejam mais considerados excomungados.

Aqui a justiça exige-me que lembre que foi também o Papa Bento XVI quem afirmou (embora de passagem) que sua intenção ao levantar as excomunhões dos quatro bispos da FSSPX “foi tirar um impedimento que poderia dificultar a abertura de uma porta ao diálogo e, portanto, convidar os quatro bispos e a Fraternidade Sacerdotal São Pio X a redescobrir o caminho para a plena comunhão com a Igreja”.

Assim, o próprio Papa usou a frase. Mas o que isso significa? Considere a linguagem do decreto de levantamento das excomunhões, emitido pelo Cardeal Re, da Congregação para os Bispos, pela autoridade do Papa Bento XVI, em 21 de janeiro de 2009:

Com base nas faculdades expressamente concedidas a mim pelo Santo Padre Bento XVI, em virtude do presente Decreto, retiro dos Bispos Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta a censura de excomunhão declarada por esta Congregação em 1º de julho de 1988, enquanto declaro privado de efeitos jurídicos, a partir do dia de hoje, o Decreto emanado naquele tempo.

Privado de efeitos jurídicos! E quais são os “efeitos jurídicos” da excomunhão agora considerados nulos? De acordo com o Código de Direito Canônico de 1983:

Can. 1331, § 1. Uma pessoa excomungada é proibida:

1°- ter qualquer participação ministerial na celebração do sacrifício da Eucaristia ou em quaisquer outras cerimônias de culto;

2°- celebrar sacramentos ou sacramentais e receber os sacramentos;

3°- exercer quaisquer ofícios, ministérios ou encargos eclesiásticos ou praticar atos de regime;

Assim, os efeitos da excomunhão são essencialmente três: (1) proibido de administrar sacramentos, (2) proibido de receber sacramentos, (3) proibido de exercer qualquer ofício ou ministério na Igreja. A partir disso, segue-se que o levantamento da excomunhão dos quatro bispos da Fraternidade deveria significar — se as palavras têm significado — que os quatro bispos agora são capazes de administrar e receber os sacramentos e exercer ofícios e ministérios na Igreja, assim como os padres da Fraternidade, que nunca foram excomungados em primeiro lugar.

Então, qual é o problema? Aqui é preciso ler com muito cuidado uma passagem-chave na Carta do Papa aos bispos do mundo, sobre a remissão das excomunhões:

O facto de a Fraternidade São Pio X não possuir uma posição canónica na Igreja não se baseia, ao fim e ao cabo, em razões disciplinares, mas doutrinais. Enquanto a Fraternidade não tiver uma posição canónica na Igreja, também os seus ministros não exercem ministérios legítimos na Igreja. Por conseguinte, é necessário distinguir o nível disciplinar, que diz respeito às pessoas enquanto tais, do nível doutrinal em que estão em questão o ministério e a instituição. Especificando uma vez mais: enquanto as questões relativas à doutrina não forem esclarecidas, a Fraternidade não possui qualquer estado canónico na Igreja, e os seus ministros — embora tenham sido libertos da punição eclesiástica — não exercem de modo legítimo qualquer ministério na Igreja.[1]

Surpreendentemente, o Papa está dizendo, aqui, que o único impedimento para o status canônico da Fraternidade é doutrinário, e que o hipotético impedimento doutrinário envolve, não heresia ou discordância da doutrina abaixo do nível do dogma definido, mas questões que precisam ser esclarecidas. A declaração também especifica, bastante solenemente, que, como indivíduos, os sacerdotes e bispos da Fraternidade não estão mais sob nenhuma pena canônica que os impeça de exercer o seu ministério como padres e bispos. O único impedimento é um não especificado esclarecimento de não especificadas questões doutrinárias.

Devo confessar que eu não tenho idéia, a partir da leitura desta declaração, do que exatamente a Fraternidade deve fazer para alcançar a “plena comunhão” e, assim, obter “status canônico” e a capacidade de “exercer qualquer ministério” na Igreja. Se, como indivíduos, os clérigos da Fraternidade não estão mais sob qualquer incapacidade canônica como tal, qual é a base para um impedimento coletivo da Fraternidade que consista em questões doutrinais que precisam ser esclarecidas? Nenhuma parece evidente. É evidente por si mesmo que a Igreja hoje está cheia de clérigos e leigos cuja doutrina tem urgente necessidade de esclarecimento sobre os pontos fundamentais da fé e da moral, tais como a contracepção. Ainda não há pronunciamentos do Vaticano sobre a incapacidade dessas pessoas para administrar ou receber os sacramentos, exercer um ministério, ou até mesmo conduzir missões canônicas na Igreja, a menos que sua doutrina seja esclarecida.

É justo perguntar: Será que este impedimento da necessidade de esclarecimento de questões doutrinárias — o que significa, é claro, questões sobre o Vaticano II, e nada mais — foi erigido ad hoc para a Sociedade e só a Sociedade? Não seria o próprio impedimento que necessita de esclarecimento? Em particular, que proposições a Fraternidade precisa afirmar a fim de superar o nebuloso impedimento da necessidade de esclarecimento doutrinário? Não estaríamos lidando com, literalmente, o Impedimento Vaticano II, seja lá o que isso possa significar? E essa é a pergunta final: Há algum significado real afinal?

Acabamos de receber uma indicação de que a resposta é negativa. O blog Rorate Caeli relatou que, em 28 de maio de 2011, Padre Daniel Couture (a quem tive o privilégio de assistir durante uma peregrinação no Japão), Superior do Distrito da Ásia da Fraternidade, foi delegado pelo bispo Fellay para aceitar os votos de Madre Maria Micaela que foi transferida da Congregação das Irmãs Dominicanas da Nova Zelândia, uma congregação Novus Ordo, para a das Irmãs Dominicanas de Wanganui, erigida por Dom Fellay. O relatório observa que Madre Maria “tinha uma permissão especial da Congregação para os Institutos Religiosos e Seculares em Roma para fazer isso”[2].

Obviamente, a aprovação desta transferência reconhece implicitamente o ministério de Dom Fellay na constituição das Irmãs Dominicanas de Wanganui; o ministério de Padre Couture em receber os votos da freira Novus Ordo que foi transferida para aquela ordem; e a missão canônica da Fraternidade, em geral, ao delegar um de seus sacerdotes, através de um de seus bispos, para admitir uma freira em uma ordem com a qual a Fraternidade é associada e cujo superior é Dom Fellay.

As conversas doutrinárias entre a Fraternidade e o Vaticano sobre o esclarecimento de questões doutrinárias sobre o Vaticano II foram concluídas, estamos lendo relatos de que Dom Fellay e dois assistentes foram convocados ao Vaticano para uma reunião em 14 de setembro, aniversário da data efetiva do Summorum Pontificum, com o ostensivo propósito de entregar a declaração final da Fraternidade sobre as conversações. O “impedimento Vaticano II” está prestes a ser removido? Será que o disparate sobre a proibição da missa tradicional será jogado na lata de lixo da mitologia do Vaticano II? Será que o Vaticano finalmente admitirá que o Concílio nada mudou e nada exigiu dos Católicos a respeito do que eles devem acreditar e praticar a fim de estar em “plena comunhão” com a Igreja?

Ao que parece, dado o progresso com as Irmãs de Wanganui, estas questões podem já ter sido respondidas afirmativamente. É claro que serão respondidas afirmativamente, mais cedo ou mais tarde, assim como nós sempre soubemos que era apenas uma questão de tempo antes que o próprio Papa admitisse que a Missa tradicional nunca foi ab-rogada e sempre foi permitida.

Muitos absurdos têm sido dissipados durante este pontificado. A polêmica neo-Católica sobre o “cisma” dos tradicionalistas é agora em frangalhos. Quando a Fraternidade estiver, finalmente, “regularizada” de jure — e já está regularizada de facto, quem está enganando quem? — o que restará da posição neo-Católica? Exatamente nada. E quando exatamente nada restar de neo-Catolicismo, quando sua pretensão de ser a superioridade moral e teológica for definitivamente afastada, então a restauração da Igreja pode prosseguir por toda parte. Façamos votos que a data de extinção seja por volta de 14 de setembro de 2011.


[1] Carta de Sua Santidade Bento XVI aos Bispos da Igreja Católica a propósito da remissão da excomunhão aos quatro Bispos consagrados pelo Arcebispo Lefebvre.
[2] Rorate Caeli: Lætetur mons Sion, et exsultent filiæ Iudæ.

Raro vídeo de missa celebrada por Dom Lefebvre em Saint Nicholas du Chardonnet.

Raro vídeo de Missa Pontifical celebrada por Dom Marcel Lefebvre na igreja parisiense de Saint Nicholas du Chardonnet, na festa de Cristo Rei, em 1990.

As outras partes do vídeo podem ser encontradas aqui: partes 2, 3, 4, 5, 6 e 7. Nosso agradecimento ao leitor Pedro pelo envio.

Aproveite a ocasião e recorde nossa série “O milagre de Saint Nicholas du Chardonnet”, publicada em 2008.

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Dom Marcel Lefebvre: 20 anos depois – O nosso dever de devoção.

Por Padre Guillaume de Tanoüarn

Artigo publicado em Monde & Vie n° 840 – março de 2011

Dom Lefebvre
Dom Lefebvre

Na Segunda-Feira Santa, 25 de março de 1991, na festa da Anunciação, Dom Lefebvre deixava este mundo. Tinha sido operado tarde demais de um tumor canceroso “do tamanho de três toranjas”… deixava para trás quatro bispos e a sua obra, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Deixava à Igreja universal uma questão, que pode ser entendida de múltiplas maneiras: o que fez das formas de sua Tradição? O que fez da sua liturgia? Da sua teologia? Da sua fé?

Ao ler o livro testemunho de Philippe Béguerie (ver abaixo), antigo espiritano (referência à Congregação dos Missionários do Espírito Santo), que deixou sua congregação em 1963, devido a um desentendimento com o Superior Geral – um certo Dom Marcel Lefebvre –, fica-se impressionado pelo respeito com o qual fala, 20 anos após a sua morte, deste homem que deveria ser seu inimigo e que foi – até certo ponto — seu adversário. Um respeito que sempre cercou a pessoa e a obra deste bispo em todos os momentos de seu longo episcopado. Não posso fazer melhor do que citar um de seus paroquianos muçulmanos, Ababacar Thiam, escrevendo, após tomar conhecimento de sua morte: “Monsenhor, o Bispo, o dacarense, o senegalês, o maior construtor, o homem de Deus, de fé, partiu”. Os que o criticam rudemente são os que não o conheceram. A sua obstinação sempre serena podia irritar. Mas a sua doçura desarmava. “Felizes os mansos, porque possuirão a terra”. É, antes de tudo, a doçura de Dom Lefebvre que permitiu o prodigioso resplendor de sua obra. Suas últimas palavras, repetidas no magnífico livro de Dom Tissier de Mallerais, parecem se dispor a cristalizar esta doçura num sorriso eterno: “Somos todos seus filhinhos”. Surpreendente para um homem que tem reputação de ter desafiado o Papa, de ter contestado as orientações tomadas pelo conjunto da Igreja! Este espírito de infância perante Deus seria o seu segredo mais íntimo, o mais bem guardado, razão última da audácia tranqüila com que desafiou os caminhos da sua época?

“O menos influenciável do mundo”

Isso posto, o traço mais aparente de Dom Lefebvre não foi a sua doçura, mas a sua força. O mundo podia desabar ao seu redor, tendo analisado uma situação, ele não alterava suas posições. Assim, foi durante o seu episcopado na África, quando havia decidido implantar um dispensário numa aldeia pagã a ser cristianizada. E assim continuou, quando de Ecône fazia tremer as sacristias da França, de Navarra e quiçá do mundo inteiro. De onde lhe veio tal estabilidade? Há necessariamente as predisposições da natureza, mas há a sua história pessoal, a história de sua santidade pessoal. Diz ter recebido os ensinamentos do Padre Le Floch, no Seminário francês de Roma, como “uma revelação”. Esta expressão é dele. Mas de que revelação se trata? Vejamos o contexto: “É ele, o Padre Le Floch, que nos ensinou o que eram os Papas no mundo e na Igreja, o que ensinaram durante um século e meio: o anti-liberalismo, o anti-modernismo, o anticomunismo, toda a doutrina da Igreja sobre esses assuntos, para tentar preservar a Igreja e o mundo desses flagelos que nos oprimem hoje. Isso foi para mim uma revelação”. Muito jovem, Dom Lefebvre formou o seu juízo se inspirando nos ensinamentos do Padre Le Floch, ele mesmo discípulo de São Pio X e leitor das encíclicas dos Papas, de Leão XIII a Pio XI.

Tendo seguido eu mesmo as conferências espirituais de Dom Lefebvre durante seis anos, posso testemunhar que ele não conhecia a obra de Charles Maurras, do que lhe acusam seus adversários. As citações de Maurras, em epígrafe de certos capítulos de sua obra “Ils l’ont découronné” são de Dom Tissier Mallerais (Charles Maurras tinha sido padrinho de casamento de seus pais). Este ponto — Maurras ou não Maurras — é importante. Se Dom Lefebvre não tivesse sido mais que um maurrassiano, cheio de doutrinas políticas, seria possível tratar esse bispo de ideólogo que mistura alegremente política e religião, o que não deixam de fazer os que, como Philippe Levillain, em seu recente Rome n’est plus dans Rome [ndr: “Roma não está mais em Roma”], escrevem a história esperada. Mas ninguém era menos político que Dom Lefebvre. Quem se recorda da sua protuberância por ocasião de seu Jubileu sacerdotal: “Não faço política, faço a boa política, o que não é a mesma coisa”. Não, não é a mesma coisa. Homem da Igreja, engajado nas realidades terrestres, testemunha da colonização e descolonização na África, Dom Lefebvre se pronuncia sobre política e quer “uma boa política” porque sabe que, segundo a palavra de Pio XII, “da forma de um Estado depende a salvação das almas”. Mas ele não é nem por um segundo o militante de uma causa política qualquer. A sua única preocupação é o caminhar da Igreja neste século e é o ensinamento dos Papas sobre “o direito natural e cristão”, como dizia Jean Ousset, o patrono desta Cidade católica cuja defesa tomou ao risco de sua própria reputação, a partir de 1956. Neste espírito, escreverá um prefácio a “Pour qu’il règne”[“Para que ele reine”], a obra maior do mesmo Jean Ousset em 1960, sem dúvida, entre outras coisas, para efetivamente mostrar que a controvérsia nascida então há quatro anos não o havia impressionado, nem feito alterar um só iota.

“Eu vos compreendi”

Philippe Bèguerie conta uma cena ocorrida na 2ª sessão do Concílio. Os bispos espiritanos – eram 12 — pediram para vê-lo e repreenderam suas posições já anti-conciliares. Respondeu-lhes com um sorriso: “Eu vos compreendi. (sic). Mas cada um deve agir segundo a sua consciência, não é?”. E os despediu, sem outra cortesia, sempre sorrindo. Quando descobri esta cena, disse a mim mesmo: é ele, já, “o homem menos influenciável que já existiu”, como nota Dom Tissier no início da sua Biografia. O menos influenciável? Porque ele é convicto desta “revelação”: o ensinamento dos Papas sobre o direito natural e cristão.

Dom Lefebvre não era teólogo de profissão. Freqüentemente foi acusado — do lado dos sedevacantistas, assim como dos conciliares — das tomadas de posição que podiam parecer vacilantes ou insuficientemente aprofundadas. Em sua condenação de toda prática de diálogo inter-religioso, era, sem dúvida, unilateral, como revelam certos episódios de sua carreira em Dacar: a recusa de um serviço religioso para as vítimas católicas e muçulmanas de um acidente aéreo, por exemplo.

Mas os seus adversários tinham, por sua vez, duas carências que lhes impediam de compreender esse homem e apreciar suas razões e seus justos valores. Por um lado, para a maioria, não tinham, na prática, a sua experiência missionária. Falavam da missão como hoje se fala da nova evangelização: de maneira encantadora. Dom Lefebvre — é um traço de seu caráter — tinha decidido, de imediato, responder às campanhas orquestradas contra ele com atos. Tal é o sentido de sua saída impetuosa do capítulo geral dos espiritanos, no qual acabara de ser colocado em minoria. Ele não se defende. Nem se incomoda em passar uma boa impressão. É que algumas semanas mais tarde, funda um convento em Friburgo, na Suíça, e lança as bases de uma nova fraternidade sacerdotal. É esse gosto pela ação e esse sentido de organização que vão dar uma importância excepcional ao seu protesto, tornando-o incontornável.

Por que as sagrações ilegais?

Tendo assistido os vai-e-vens que cercaram a sagração dos quatro bispos em 30 de junho, recordo-me que havia dito a mim mesmo: as razões especulativas das sagrações são pouco claras. Roma concordou com um bispo. Por que querer quatro? Dom Lefebvre preferiu fazer essas sagrações sem o acordo de Roma por três razões. Primeiramente: não deixar calar a reprimenda que lançou, a partir do escândalo da primeira reunião de Assis: sem esse grito de indignação popular, perderia todo espaço de ação e deveria aceitar as condições de Roma. Em segundo lugar: ao instinto, o acolhimento dos “Romanos” lhe pareceu muito frio a fim de que uma “colaboração duradoura” pudesse ser vislumbrada. Novamente a prática! E em terceiro lugar: pretendia preservar a atmosfera espiritual própria de sua comunidade, que temia ver se diluir no estado de espírito dominante. Creio que, do ponto de vista prático, essas sagrações foram um grande momento da história da Igreja. Deram nascimento às comunidades Ecclesia Dei, sem, com isso, enfraquecer a Fraternidade São Pio X. E elas causaram um choque elétrico que permitiu uma verdadeira conscientização, como reconheceu um certo Cardeal Ratzinger, por ocasião de uma conferência em Santiago do Chile, no mês de julho de 1988. O pragmatismo de Dom Lefebvre é um elemento capital de seu itinerário espiritual. É reencontrado nos momentos mais críticos da sua vida.

Mas há uma segunda carência nos que quiseram se proclamar juízes dele: não conheciam — ou não queriam mais conhecer — a teologia romana à qual se reporta constantemente Dom Lefebvre e na qual foi formado pelo Padre Le Floch. Ainda, é desta teologia romana que ele recebeu sua segurança, convicto de que a fé católica em si se encontra expressa nessa teologia.

É através desse prisma que ele discerne muito rapidamente o perigo da colegialidade. Vê, de fato, que ela não é uma ameaça para a autoridade do Papa (como alguns deixavam desconfiar), mas para a autoridade de cada bispo em sua diocese. Muitas vezes havia repetido: “A crise da Igreja é uma crise da autoridade na Igreja”.

Um triplo prisma

É através deste prisma que se põe em causa a liberdade religiosa, não somente do ponto de vista das relações entre Igreja e Estado, mas porque esta liberdade mina a própria autoridade da fé: “Sendo aprovado o esquema sobre a liberdade religiosa, todo o vigor e todo o valor do magistério da Igreja são atacados mortalmente de maneira radical”. O Padre Congar, em seu privadíssimo Jornal do Concílio, lhe dá razão sobre esse ponto, confessando que o documento sobre a liberdade religiosa “fará a Igreja perder dois ou três séculos” (sic).

Neste contexto de destruição da Autoridade da verdade, podem o ecumenismo e o diálogo inter-religioso ser outra coisa senão manifestações de indiferentismo?

Aí estão as três as grandes intuições de Dom Lefebvre, como publicou em Rivarol de outubro de 1968 sob o título “Por uma verdadeira renovação da Igreja”. Seus confrades espiritanos, os bispos franceses, o próprio Papa não compreendem esta obstinação “misteriosa”, “mais católica que o Papa”, “inconcebível”.

Mas Dom Lefebvre não mudará nunca e até o seu último suspiro designará dessa forma o mal e a morte na Igreja. A História em maiúsculo está apenas começando a lhe dar razão. João Paulo II, refletindo sobre a primazia da verdade sobre a liberdade na encíclica Veritatis Splendor, confirmou (involuntariamente?) o terrível diagnóstico que fez de Dom Lefebvre o bispo de ferro. Resta ainda tirar todas as conseqüências: há muito trabalho por se fazer! E os anos passam, esterilizantes para a Igreja.

Padre G. de Tanoüarn

Duas novas “biografias”

Philippe Levillain, historiador midiático, acaba de lançar “Rome n’est plus dans Rome, Mgr Lefebvre et son église” [Roma não está mais em Roma, Dom Lefebvre e sua igreja] (Ed. Perrin), que não só é uma ação infeliz, mas antes e acima de tudo um péssimo trabalho. Exemplo aleatório: o Padre Laguérie acompanha Mons. Ducaud-Bourget desde 1972 em Laennec e abençoa a capela e reza as missas desde 1973. Em nota, ficamos sabendo que ele foi ordenado padre em 1979 (p. 285). Hipótese plausível: o escritor-fantasma de Levillain, encarregado por ela para as correções, não ousou assinalar os erros grosseiros do seu empregador… Esse tipo de obra é uma mancha na carreira de um historiador.

Sob o título “Vers Ecône” [Em direção a Ecône], da editora DDB, Philippe Bèguerie, antigo espiritano, adversário de sempre para Dom Lefebvre, publica um apaixonante dossiê e documentos inéditos sobre Dom Lefebvre anteriores a Ecône. Não nos deixa ignorar suas posições tomadas, mas nos oferece uma nova ilustração da constância do bispo de ferro.

GT

“Somos todos filhinhos Dele”.

Aos 20 anos da morte de Dom Marcel Lefebvre, como nossa singela homenagem, apresentamos a nossos leitores os últimos instantes desse heróico bispo a quem a Igreja tanto deve neste sombrio momento em que vivemos. Obrigado, Monsenhor!

* * *

Tempo da paixão

Tomando conhecimento da morte de sua irmã mais velha, Jeanne, Dom Lefebvre decidiu não ir ao seu funeral [ndr: por conta de seus problemas de saúde]: “Rezo todo dia para que eu possa morrer antes de perder minha consciência. Prefiro partir, pois se caísse em contradição, diriam: ‘Aí está; ele disse que errou!’ E eles tirariam vantagem disso”.Muitas vezes o Arcebispo mencionava a morte suave de sua irmã mais velha, chamada de volta à casa por Deus quando acabara de ir tirar um cochilo; ele gostaria de ter falecido assim, embora com a Extrema Unção. Mas Deus pediria ao padre e bispo Marcel Lefebvre que tomasse parte em Seus sofrimentos redentores.

Em 7 de março de 1991, festa de Santo Tomás de Aquino, o Arcebispo deu a seus amigos e benfeitores de Valais a tradicional conferência. Cheio de fé e eloqüência, concluiu com estas palavras: “Nós as teremos!”. E no dia seguinte, às 11 da manhã, celebrou o que seria sua última Missa na terra. Mas tamanhas eram sua dor de estomago e fadiga que realmente pensou que não poderia terminá-la. Apesar disso, partiu de carro para Paris, a fim de assistir ao encontro dos fundadores religiosos nos “Círculos da Tradição”:  “É algo muito importante”, disse, “e está dentro do meu coração”.

Hospitalização, operação

Ele sequer passou de Bourg-en-Bresse; por volta das 4 da manhã, acordou seu motorista, Rémy Bourgeat: “Não estou bem”, disse, “vamos voltar para a Suíça”. E a seu pedido, ingressou no hospital em emergência na manhã de 9 de março. O direitor do hospital em Martigny, Sr. Jo Grenon, era um amigo de Ecône. O Arcebispo foi acolhido na ala operatória no quarto 213. Atrás das montanhas que cercam a cidade estava Forclaz, e França, e não muito distante o Grande Passo de São Bernardo, Itália, e Roma.

O Arcebispo estava confiante, mas sofria: “É como um fogo queimando meu estômago e subindo até meu peito”.

Padre Simoulin deu-lhe a Sagrada Comunhão, que receberia até a sua operação: Ele o agradeceu: “Fiz o senhor perder as vésperas… mas o senhor fez uma obra de caridade. Trouxe para mim o melhor Médico. Nenhum deles pode me dar mais do que o senhor deu”.

Admirava o Crucifixo, que fora trazido para o altar temporário em seu quarto: “Ele ajuda a suportar os sofrimentos”.

Analgésicos ajudavam a diminuir seus sofrimentos e era alimentado intravenosamente. Brincava, dizendo às enfermeiras: “Vocês fizeram um bom negócio comigo: estou pagando integralmente e vocês sequer estão me alimentando!”

Além do mais, era muito paciente e os médicos tiveram que repreendê-lo para que falasse sobre suas dores. As enfermeiras acharam-no muito gentil e excepcionalmente discreto: nunca usara o sino para pedir atenção. Não queria incomodar os outros. Estava um pouco preocupado com as conseqüências de uma cirurgia, mas ao mesmo tempo resignado e confiante. Disse por diversas vezes: “Terminei meu trabalho e não posso fazer mais. Não me resta senão rezar e sofrer”.

Na segunda-feira, 11 de março, sentiu um calafrio subindo suas pernas e pediu a Extrema-Unção, que recebeu com grande recolhimento e simplicidade, mantendo seus olhos fechados e respondendo ao sacerdote de maneira muito clara. Em seguida, pediu a benção apostólica in articulo mortis (na hora da morte) e então abriu seus olhos tranquilos, sorriu, agradeceu ao sacerdote e acrescentou: “Quanto às orações pelos moribundos, podemos esperar um pouco mais”.

Melhorara um pouco, mas ainda não havia começado a rezar novamente seu breviário. “Então rezo algumas orações simples. Não sirvo para mais nada. Nada mal”.

Ele já havia passado por numerosos exames quando na quinta-feira, 14 de março, os médicos decidiram dar-lhe uma refeição que apreciasse e que lhe desse alguma resistência. Mas ele não a comeu, a fim de que pudesse receber a Sagrada Comunhão… o Padre estava com pressa. Na mesmo dia, um dos médicos disse ao Padre Denis Puga: “Padre, devo lhe dizer algo. Passei o dia com o Arcebispo por causa dos exames. Ele é um homem extraordinário, e sinceramente é um prazer estar com ele. Que bondade! É possível ver a bondade divina em sua face. O senhor realmente é privilegiado por estar tão próximo dele. As pessoas não percebem quando o vêem nos jornais. Pedi ao Arcebispo que rezasse por mim”.

Esse médico não era católico. Na sexta-feira, 15 de março, Dom Lefebvre foi levado a Monthey para ser examinado por um tomógrafo. Voltou ao hospital onde seus padres o encontraram com certa dificuldade por causa do intravenoso, que estava lhe causando inchaço:

“Suas veias estão muito difíceis”, disse-lhe o Padre Simoulin.

“Não, muito pelo contrário, parece que elas estão bem e miúdas. Que tal… para um bispo de ferro!”

No sábado, dia 16, Sitientes, as ordenações ao subdiaconato ocorreram em Ecône. “Estava unido em oração com a ordenação”, disse o Arcebispo ao Padre Puga.

“É a primeira ordenação, e ela não teria ocorrido se o senhor não nos tivesse dado bispos”.

“Sim, de fato aquele ano de 1988 foi uma grande graça, uma benção do Senhor, uma verdadeiro milagre. Esta é a primeira vez que fiquei seriamente doente em que também fiquei perfeitamente em paz. Devo admitir… desculpe… mas antes, quando eu ficava doente, estava sempre preocupado pelo fato da Fraternidade ainda precisar de mim e de que ninguém poderia fazer o meu trabalho. Agora estou em paz, tudo está pronto e caminhando bem”.

No domingo, dia 17, Domingo da Paixão, após receber a Sagrada Comunhão, ele explicou que seria operado nos próximos dias e advertia: “Que o Senhor me leve, se quiser”.

Assim, a cirurgia ocorreu na segunda-feira da Semana da Paixão: “Quando o médico me pediu para contar até dez enquanto eu adormecia, fiz um grande sinal da Cruz… e então… não havia mais nada. Depois acordei e perguntei: “Então a cirurgia não está indo adiante?”

“Mas Sr. Lefebvre [sic], já acabou”, responderam.

Este foi o relato que o Arcebispo fez de sua cirurgia. O cirurgião removeu um grande tumor, do tamanho de mais ou menos três toranjas. Aconteceu de ser canceroso, mas nada foi dito ao paciente. Estava exausto pela cirurgia, mas sorriu por detrás de sua máscara de oxigênio e do tubo estomacal. Na noite da quarta-feira, ficou ansioso; seus membros estavam terrivelmente inchados e tinha dores nas costas e de cabeça. Disse: “É o fim, tenho uma terrível dor de cabeça. O bom Deus deve vir e me levar. Quero realmente morrer com um pouco dos meus padres ao meu redor para rezarem a oração pelos agonizantes. Eles não podem me negar isso”.

Pensava que seus padres estavam sendo impedidos de vê-lo e a chegada de Padre Puga, na manhã da quinta-feira, o acalmou. Ficou novamente otimista e muito mais alegre. No Sábado da Semana da Paixão, Dom Lefebvre falou sobre os procedimentos humilhantes e dolorosos que tivera de sofrer, e disse que o menor dos esforços o exauria. Suas mãos estavam inchadas.

“Estamos no tempo da Paixão”, disse o Padre Simoulin.

O Arcebispo fechou seus olhos e repetiu: “Sim, é a paixão!”. Ele não podia receber a Comunhão: “Sinto falta… preciso dela… ela me dá força”, disse tristemente.

Na noite do mesmo dia, Padre Puga o contou sobre algumas observações do Cardeal Gagnon na 30 Giorni, no sentido de que não encontrara nenhum erro doutrinal em Ecône. O Arcebispo encolheu os ombros: “Um dia a verdade virá. Não sei quando, mas o bom Deus o sabe. Mas virá”.

Morte dolorosa

Ao final, o Arcebispo não tinha a menor dúvida de que fizera a coisa certa. Como veremos, seu fim foi, assim como sua vida, centrado e fortalecido por uma fé que era simples, discreta e modesta. Parece não ter havido mensagens espirituais ou novissima verba – “últimas palavras”. Fez algumas poucas observações que eram aparentemente comuns ou “mesmo travessas, embora não maliciosas”, cuja importância apenas seriam visíveis posteriormente, especialmente com relação àqueles que pouco ou nada conheciam Dom Lefebvre e que não poderiam imaginar como ele morreu, já que não viram como ele viveu.

No Domingo, 24 de março, o primeiro dia da Semana Santa, as condições do paciente repentinamente pioraram. Na sexta-feira, pediu por seu relógio e aparelho auditivo (prova de que estava se sentindo melhor) e no sábado pensaram em transferi-lo de volta para seu quarto no dia seguinte. Mas no domingo, a esperança deu lugar à preocupação: o Arcebispo tinha uma temperatura muito alta e o cardiologista decidiu mantê-lo na unidade de tratamento intensivo. Estava agitado e sentia dores, e falava incessantemente, mas por conta da máscara de oxigênio havia dificuldade para compreendê-lo. Todavia, Jo Grenon decifrou: “Somos todos filhinhos Dele”. Quando Grenon o deixou, o Arcebispo sorriu e estendeu sua mão para dizer adeus.

Quando o Padre Simoulin disse a ele que seu irmão Michel Lefebvre viera, sorriu o máximo que pôde e a alegria brilhou em sua face. Por volta das 7 da noite, o reitor de Ecône retornou ao hospital, mas assim que entrou na unidade de tratamento intensivo, ouviu o assustador som do forte gemido que podia ser ouvido acima dos barulhos vindos do equipamento ao lado; ele aumentava ainda mais por causa da máscara de oxigênio. O Arcebispo estava absolutamente exausto e não podia falar, mas compreendia tudo que o padre lhe disse: “Excelência, o retiro que o senhor estaria pregando para nós… está sendo pregado de uma maneira que não prevíamos!”. O Arcebispo sorriu. “Alguns dos fiéis de Valais, incluindo os motoristas [ndr: amigos pessoais de Dom Lefebvre], estão seguindo o retiro conosco”. E o Arcebispo sorriu novamente.

Então o padre notou o Crucifixo do cubículo e fez uma observação, enaltecendo o hospital e seu bom diretor, que colocava todo paciente sob o olhar do Redentor. Muito lentamente o Arcebispo moveu sua cabeça à esquerda, para olhar na direção em que o Padre apontara, e então suavemente fechou os olhos.

Um sorriso… um olhar para o Crucificado… estas foram as últimas palavras de Dom Lefebvre. Um sorriso… para dizer obrigado, para acalmar, para encorajar os outros a terem a mesma serenidade, um sorriso de caridade e atenção aos outros, no esquecimento de si mesmo. Um olhar em direção ao Crucifixo, o último gesto consciente que seus filhos viram-no fazer: o olhar adorador do contemplativo e do sacerdote.

Por volta das 11:30 da noite, o hospital ligou para Ecône: Dom Lefebvre acabara de sofrer uma parada cardíaca e estava em processo de ressuscitação. Os Padres Simoulin e Laroche encontraram o Arcebispo respirando com grande dificuldade: seus olhos estavam fixos e vidrados. Fora-lhe administrada uma massagem cardíaca e devia ter sofrido uma embolia pulmonar.

Enquanto o Padre Laroche retornava ao seminário para acordar a comunidade e levá-la para rezar na capela, Padre Simoulin permanecia com o Arcebispo, que dolorosamente tentava respirar; era como a agonia do Crucificado. Com o passar do tempo, seu rosto ficava mais revestido de dor enquanto as medições nos monitores diminuíam pouco a pouco.

Por volta das 2:30 da madrugada, seu declínio se acelerou e sua respiração diminuiu, ao passo em que a dor ainda traçava uma marca em sua fronte. Pouco a pouco tudo se acalmava. Em torno das 3:15 da madrugada, o padre disse à enfermeira: “Sua alma está apenas esperando por uma coisa: deixar seu corpo que sofre e estar com Deus”;

“Acho que a alma está deixando agora”, disse a enfermeira, saindo depois.

Padre Simoulin começou então as orações pelos agonizantes. “Exatamente no momento em que eu terminara”, disse, “era por volta das 3:20 da manhã, e o Superior Geral, Padre Schmidberger, entrou na unidade de tratamento intensivo. O monitor do pulso caiu até ‘00’, mas ainda se podia ouvir a respiração: era o Arcebispo ou a máquina? Ofereci o ritual ao Padre Schmidberger, que recomeçou as orações in expiratione”.

Alguns últimos surtos de dor relampejaram do rosto do Arcebispo e então, por volta das 3:25 da madrugada, os sofrimentos cessaram completamente e ele retornara à paz novamente. O Superior Geral então fechou os olhos do amado pai.

Era uma segunda-feira da Semana Santa, 25 de março, festa da Anunciação da Santíssima Virgem Maria, o dia em que o Céu sorriu para a Terra e quando a esperança renasceu nas almas: o dia da Encarnação do Filho de Deus e da ordenação sacerdotal de Jesus Cristo como Sumo Sacerdote. Neste dia, a alma de Marcel Lefebvre foi julgada…

Em Lille, quinze anos antes, ele disse: “Quando eu estiver diante de meu Juiz, não quero ouvi-lo dizer a mim: ‘Vós também, vós deixastes a Igreja ser destruída’”.

Então, naquele 25 de março de 1991, quando Deus o perguntou o que fizera com a graça de seu sacerdócio e episcopado, o que, de fato, poderia ele ter respondido, esse velho soldado da Fé, esse bispo que restaurou o sacerdócio Católico?

“Senhor, vede, eu transmiti tudo o que podia ter transmitido: a Fé Católica, o sacerdócio Católico e também o episcopado Católico; Vós me destes tudo isso e tudo isso transmiti para que a Igreja pudesse continuar”.

"Transmiti o que recebi".
"Transmiti o que recebi".

“Vosso grande Apóstolo disse, ‘Tradidi quod et accepi’ e como ele eu quis dizer: ‘Tradidi quod et accepi’, transmiti o que recebi. Tudo que recebi, transmiti”.

Ninguém tem maior amor

Os restos mortais do fiel lutador foram solenemente trazidos de volta para Ecône. Em vestes pontificais, ficaram velados na capela de Notre Dame des Champs. A multidão formou fila por toda a semana; até o Núncio e Dom Schwery, bispo de Sion, vieram e abençoaram o corpo daquele que o Papa declarou excomungado. O corpo foi assistido dia e noite, da segunda  [dia 25 de março] até a terça-feira da Páscoa [2 de abril]. O Arcebispo recebeu uma benção final na manhã de 2 de abril, e então o caixão foi fechado. Uma placa foi afixada sobre o mesmo, ornado com as armas do Arcebispo e as palavras que ele pediu que se gravasse: Tradidi quod et accepi.

Lentamente o Arcebispo foi carregado sobre os ombros de seus padres e passou pela multidão de vinte mil fiéis que se reuniram para o funeral. Foi levado pelo campo de Ecône no qual ele muitas vezes transmitiu a graça do sacerdócio. Então chegou à “basílica-tenda”, no fundo do campo, onde ocorreriam a Missa e as Absolvições Pontificais. O clima estava frio e nublado; o sol apenas brilhava no lado oposto do vale. De repente, no meio da cerimônia, ele lançou suas luzes na imensa multidão de amigos da Fraternidade São Pio X. O calor se espalhou. Então, quando o corpo foi levado de volta pelo campo, debaixo do céu azul, a seu lugar de descanso em Ecône, vinte mil almas sentiram em seus corações que ali a vida estava passando e continuando. Este também era o sentimento nos corações de seus filhos no sacerdócio, cada um deles segurando uma pequena vela acesa na ofuscante luz refletida nas rochas atrás de Ecône. A Tradição estava viva.

No livro de condolências, um dos “soldados católicos” que seguiu a Tradição da Igreja graças a Dom Lefebvre, escreveu estas breves linhas: “Obrigado por intervir, por salvar o sacerdócio, por ter sido o nosso porta-bandeira, por ter se oferecido em holocausto para salvar o seu povo”.

Sim, ele amou a Igreja com todo o seu coração até os próprios limites do amor: in finem dilexit. Não teria ele mostrado o maior amor possível? Ele amou mais do que muitos, esse homem que até o último instante “acreditou na caridade que Deus tem por nós”.

Marcel Lefebvre, The Biography – Dom Bernard Tissier de Mallerais, 608-614, Angelus Press, 2004 – Tradução: Fratres in Unum.com

Porque, em 27 de outubro de 2011, não se deve “fazer memória deste gesto histórico” de Assis-1986.

Por Padre Paul Aulagnier, Instituto do Bom Pastor

Tradução: Fratres in Unum.com

Em 1º de janeiro de 2011, por ocasião da oração do Angelus, o Papa Bento XVI anunciou sua intenção de renovar a cerimônia inter-religiosa de Assis, de 27 de Outubro de 1986:

No próximo mês de Outubro, irei como peregrino à cidade de são Francisco, convidando os irmãos cristãos das diferentes confissões, os expoentes das tradições religiosas do mundo e, idealmente, todos os homens de boa vontade, a unir-se neste caminho com o objetivo de recordar aquele gesto histórico desejado pelo meu Predecessor e de renovar solenemente o empenho dos crentes de cada religião a viver a própria fé religiosa como serviço para a causa da paz”.

Ele já o havia anunciado em sua mensagem para a Paz para o ano 2011, intitulada: “A liberdade religiosa, caminho para a Paz”. Escreveu: “Em 2011, tem lugar o 25º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz, que o Venerável Papa João Paulo II convocou em Assis em 1986. Naquela ocasião, os líderes das grandes religiões do mundo deram testemunho da religião como sendo um factor de união e paz, e não de divisão e conflito. A recordação daquela experiência é motivo de esperança para um futuro onde todos os crentes se sintam e se tornem autenticamente obreiros de justiça e de paz.

Sabemos, no entanto, que o Papa Bento XVI, enquanto ainda Cardeal, não quis assistir a esta “jornada de orações inter-religiosas para a paz”, devido ao risco de sincretismo em uma tal jornada. Ele também desejou, desde que está sobre a sede de Pedro, duas vezes, dar precisões sobre esta jornada, talvez nessa perspectiva de aniversário.

Em uma mensagem dirigida ao bispo de Assis, em 2 de Setembro de 2006, escrevia: “Para que não haja dúvidas acerca do sentido de quanto, em 1986, João Paulo II quis realizar, e que, com uma sua expressão, se costuma qualificar como “espírito de Assis”, é importante não esquecer a atenção que então foi dada para que o encontro inter-religioso de oração não se prestasse a interpretações sincretistas, fundadas numa concepção relativista. […] Por isso, mesmo quando nos encontramos juntos a rezar pela paz, é necessário que a oração se realize segundo aqueles caminhos distintos que são próprios das várias religiões. Esta foi a escolha de 1986, e tal escolha não pode deixar de ser válida também hoje. A convergência do que é diverso não deve dar a impressão de uma cedência àquele relativismo que nega o próprio sentido da verdade e a possibilidade de a obter”.

Mas, como simples observação: ele não rezou com os judeus e rabinos da sinagoga de Roma por ocasião de sua última visita? Umas são palavras. Outras as atitudes.

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A renúncia do Cardeal Husar.

O Santo Padre aceitou, hoje, a renúncia do arcebispo maior de Kyiv-Halyč (da Igreja Greco-Católica Ucraniana), o senhor Cardeal Lubomyr Husar, por motivos de saúde. O purpurado foi sagrado bispo em 1977, em Castel Gandolfo (!!), sem mandato apostólico e em explícita oposição à vontade de Paulo VI, pelo Cardeal Arcebispo Josyf Slipyj.

Tempos de ecumenismo: Tal ato causou furor em Roma, mas, apesar do decreto do Santo Ofício, sob Pio XII, de 1951, excomungando ipso facto quem conferisse ou recebesse o episcopado sem mandato apostólico,  e procurando promover o “ut unum sint” com as Igrejas orientais, não houve declaração de excomunhão. Em 1996, Husar foi reconhecido e posteriormente nomeado Arcebispo e Cardeal.

Outro lado da moeda: Em 1988, um dia após a sagração episcopal conferida por Dom Marcel Lefebvre, acompanhado por Dom Antônio de Castro Mayer, a Congregação para os Bispos, na pessoa do Cardeal Bernardin Gantin, seu prefeito, procurando solucionar logo o problema dos “subversivos” que se entrincheiravam contra o ecumenismo, não perdeu tempo e declarou a excomunhão dos bispos envolvidos.

Curioso!…

Uma declaração surpreendente de Dom Fellay, superior da FSSPX.

Por Padre Paul Aulagnier – Instituto do Bom Pastor

Tradução: Fratres in Unum

Em 23 de dezembro de 2010, Dom Fellay, encontrando-se em Nova Caledônia para celebrar a missa de meia-noite, no dia de Natal, na pequena capela da comunidade de Katiramona, teve a oportunidade de responder a algumas perguntas de um jornalista de “Nouvelles Caledoniennes”.

Duas ou três reflexões do prelado me chamaram a atenção:

Eis a primeira: “Aliás, o Papa regressa às idéias tradicionais. Ele vê muito bem que há um desvio e que é necessário corrigi-lo. Estamos, talvez, mais próximos do Papa do que pareça”.

E por último: “Sempre sustentamos que não queremos caminhar por contra própria. Afirmamos que somos e permanecemos católicos. Desejamos que Roma nos reconheça como verdadeiros bispos. Aliás, não se usa mais a palavra cismático contra nós. Portanto, se não somos cismáticos, nem heréticos, somos verdadeiros católicos. Além disso, o Papa diz que há somente um problema de ordem canônica. Basta um ato de Roma dizendo que o problema acabou e que reentramos na Igreja. Isso virá. Estou muito otimista”.

Esta última declaração é extremamente importante e, confessemos, ligeiramente desconcertante.

Ao ler essa última passagem, nos dizeres do próprio Dom Fellay e do Soberano Pontífice, não haveria mais problemas doutrinais entre Roma e FSSPX, mas apenas um problema canônico: “há somente um problema de ordem canônica. Basta um ato de Roma dizendo que o problema acabou e que reentramos na Igreja. Isso virá. Estou muito otimista”.

Tem-se a impressão que hoje as discussões teológicas com Roma, empreendidas a pedido da FSSPX, não têm mais a mínima importância. Ao menos Dom Fellay não faz nenhuma alusão abertamente.

A FSSPX afirmava ontem, todavia, que essas discussões eram capitais, de primeira ordem, e que determinavam a sequência dos acontecimentos. Constituiriam uma diligência lógica, ou seja, que era impossível considerar um acordo com Roma antes de qualquer ajuste doutrinal, e cronológica, ou seja, que uma vez resolvido este difícil problema doutrinal viria então, e só então, o problema canônico, em si fácil de resolver. Eis a importância que davam a essas conversações doutrinais. Hoje, nada disso, nada próximo, nada mais de “conversações doutrinais” (?). Elas parecem ter sido lançadas ao “sótão das velhas idéias”. Já não atrai a mínima atenção, o mínimo interesse. Não se vê mais que o problema canônico. É a atitude do próprio Papa:“Além disso, o Papa diz que há somente um problema de ordem canônica”.

Ah bom! Ficarmos felizes em saber.

Mas por que ter anunciado “urbi et orbi”, se é possível dizer, que antes de qualquer acordo canônico, era necessário resolver os pontos doutrinais contestados a respeito do Vaticano II, como, por exemplo o problema da liberdade religiosa, como o problema do diálogo interreligioso?… Estes problemas estão, portanto, resolvidos? Por acaso foram resolvidos nas suas conversações teológicas?

Caso a resposta seja positiva, como ler textos como a última declaração do Vaticano, sob a pluma de Bento XVI, intitulado “a liberdade religiosa, caminho para a paz”? Este texto é um “copiar colar” do documento conciliar “Dignitatis humanae”. O Pontífice retornaria às idéias tradicionais sobre esse assunto, aquelas defendidas por seus predecessores como Leão XIII, Pio X, Bento XV, Pio XI e Pio XII? Retomaria o “magistério de sempre”? Quanto a mim, custa-me a crer.  Leiamos:

A liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda pessoa deve poder exercer livremente o direito de professar e manifestar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir a outra religião ou não professar religião alguma. Neste âmbito, revela-se emblemático e é uma referência essencial para os Estados o ordenamento internacional, enquanto não consente alguma derrogação da liberdade religiosa, salvo a legítima exigência da justa ordem pública. Deste modo, o ordenamento internacional reconhece aos direitos de natureza religiosa o mesmo status do direito à vida e à liberdade pessoal, comprovando a sua pertença ao núcleo essencial dos direitos do homem, àqueles direitos universais e naturais que a lei humana não pode jamais negar”.

(Vemos hoje como se concede o direito à vida com o direito ao aborto e direito à eutanásia já adotados em vários Estados da Europa….)

Dom Fellay estaria de acordo com esta declaração vaticana tão equívoca e por conseguinte falsa? Custa-me a crer. Ao menos que se afaste do pensamento dos Papas dos séculos XIX e XX, até Pio XII, sobre esse assunto. Está ele, portanto, próximo, sobre esse assunto, do pensamento expresso por Bento XVI? Ele diz, de fato, quando responde ao jornalista: “Estamos, talvez, muito mais próximos do Papa do que pareça”. Estivesse eu lugar no deles, vigiaria… Mas talvez tenha falado num momento de euforia…

Ao querer resolver primeiro e antes de tudo o problema doutrinal, Dom Fellay complicava não somente a vida, mas se afastava na mesma proporção do regulamento canônico desejado por Roma ,pelo menos desde o ano 2000, desde o ano jubilar. Veja o regulamento dos padres de Campos! E não se pense que foi a regularização canônica que fez Dom Rifan “evoluir” ou “se desviar”, foi Dom Rifan ele mesmo, ou talvez sua enorme astúcia…

O texto continua:

A liberdade religiosa não é patrimônio exclusivo dos crentes, mas da família inteira dos povos da terra. É elemento imprescindível de um Estado de direito; não pode ser negada, sem ao mesmo tempo minar todos os direitos e as liberdades fundamentais, pois é a sua síntese e ápice. É «o papel de tornassol para verificar o respeito de todos os outros direitos humanos». Ao mesmo tempo que favorece o exercício das faculdades humanas mais específicas, cria as premissas necessárias para a realização de um desenvolvimento integral, que diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em cada uma das suas dimensões”.

E se tiver assimilado bem o ensinamento da encíclica de Leão XIII, “Libertas praestantissimus”, comentado por Dom Lefebvre no seu livro “C’est moi l’accusé qui devrais vous juger!”, dificilmente se poderá afirmar que o problema doutrinal sobre este assunto tenha sido resolvido.

Ademais, o Vaticano, neste texto, convida-nos mesmo a comemorar o 25º aniversário da jornada de Assis de 1986, que tanto havia escandalizado o nosso santo fundador. Naquele dia, vimos o Soberano Pontífice, João Paulo II, enfileirado com os  “ líderes” das “religiões”, esquecendo-se por um instante, parece, que era o “Vigário de Cristo”, Ele, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; o Sucessor de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”:

Em 2011, tem lugar o 25º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz, que o Venerável Papa João Paulo II convocou em Assis em 1986. Naquela ocasião, os líderes das grandes religiões do mundo deram testemunho da religião como sendo um fator de união e paz, e não de divisão e conflito. A recordação daquela experiência é motivo de esperança para um futuro onde todos os crentes se sintam e se tornem autenticamente obreiros de justiça e de paz”.

Veremos uma jornada idêntica

Portanto, eis anunciada uma nova jornada sincretista. Não basta dizer que ela não o será para que não o seja. Como diz o professor Amerio em seu livro “Stat veritas”, “não se pode promover o sincretismo e em seguida advertir que é necessário tomar cuidado para evitar o sincretismo” (p 139).

Realmente, tenho dificuldade em acreditar que “basta um ato de Roma dizendo que o problema acabou e que reentramos na Igreja”. Não o creio. Simplesmente não penso dessa forma.

Sempre pareceu-me prudente – terminaria eu por ter razão? — se manter no pensamento de Dom Lefebvre, expresso na sua carta de 21 de novembro de 1987 — carta que nos faz pensar, em razão de sua importância e de coincidência de data com a sua famosa declaração de 1974, ela também de 21 de novembro — e que pedia:

– que nos aceitem tal como somos, sem procurar nos fazer desviar em nada de nossa ligação com a Tradição litúrgica e doutrinal. Que nos seja reconhecido o direito à missa tridentina. Algo já feito, melhor ainda, o direito a este rito é um direito universalmente reconhecido por Roma para qualquer padre. E é necessário a má vontade evidente dos bispos para ver tão pouco do fruto do Motu Proprio de Bento XVI.

– que se levante as excomunhões dos bispos sagrados por Dom Lefebvre, os quatro. Coisa já feita.

– que se reabilite a FSSPX e que Roma aceite as modificações dos estatutos quanto à sucessão de Dom Lefebvre. É algo a fazer, mas isso seria coisa fácil.

– que se reconheça, no estatuto canônico a ser dado à FSSPX, um jurisdição própria e pessoal à autoridade superior, uma espécie de isenção a exemplo da organização dos ordinariatos militares.

– por último, que os diversos institutos fiéis à missa tridentina sejam unidos numa espécie de “federação” ou de “confederação” e vinculados a Roma, a uma espécie de “Congregação romana”, para regulamentar com os episcopados os diferentes problemas inerentes aos desenvolvimentos da “Tradição”. Está em via de constituição. Mas isso permanece ainda no pensamento de Bento XVI. Ele o disse em seu Motu Proprio “Summorum Pontificum”.

Penso que o Instituto do Bom Pastor se prestaria de bom grado a tal “organização canônica”. O Sr. Padre Laguérie poderia exprimir seu parecer sobre esse assunto.

Nova entrevista de Dom Bernard Fellay: vivemos como que “uma dessas incursões dos exploradores que entrevêem a terra prometida, sem que as circunstâncias lhes permitam adentrá-la”.

Dom Bernard Fellay : “Em um ponto de inflexão” – 16 de outubro de 2010

Entrevista com Dom Bernard Fellay – Nouvelles de Chrétienté set.-out. 2010 – Fonte: DICI

A Fraternidade Sacerdotal São Pio X celebra seus 40 anos. É o fim da travessia pela deserto, como para os hebreus nos tempos de Moisés?

Creio que o que vivemos se parece mais com uma dessas incursões dos exploradores que entrevêem a terra prometida, sem que as circunstâncias lhes permitam adentrá-la.

Para evitar alguma falsa interpretação da imagem utilizada, quero precisar que continuamos afirmando sempre e firmemente que somos católicos e que, com a ajuda de Deus, queremos permanecer como tais. No entanto, para a Igreja toda, esta crise se parece muito com a travessia pelo deserto, com a diferença de que o maná é muito mais difícil de ser encontrado. Há sinais alentadores, sobretudo da parte de Roma, mas infelizmente estão juntos de outros sinais bem preocupantes. Algumas fiapos de grama no deserto…

Apesar de tudo, como se desenvolve a Fraternidade Sacerdotal São Pio X em todo o mundo?

Com efeito, a Fraternidade se desenvolve um pouco por toda parte. Algumas regiões tem um impulso maior que outras, penso, por exemplo, nos Estados Unidos, mas o grande obstáculo que encontramos é a falta de sacerdotes. Falta-nos desesperadamente sacerdotes para responder como deveríamos aos pedidos de auxílio que nos chegam de todas as partes. A cada nomeação fazemos uma escolha que deixa sem resposta um ou vários grupos de fiéis. Por um lado, é antes um bom sinal, pois mostra claramente o desenvolvimento de nossa obra, mas também é muito doloroso. Pensem nos países de missão, em particular na África ou no Brasil. Se pudéssemos enviar para lá uns cinqüenta sacerdotes seria um grande alívio. A Ásia também espera…

Dom Lefebvre dizia que para as autoridades romanas as cifras deste crescimento eram mais eloqüentes que os argumentos teológicos? Continua sendo assim?

Não sei se devemos dizer as “cifras” ou os “feitos”. De todo modo, ambos pertencem à mesma ordem de coisas. Segundo um velho adágio, contra factum non fit argumentum, contra fatos, não há discussão possível; isto conserva toda a sua força. E a afirmação de Dom Lefebvre é muito correta. Destaquemos que não é tanto o número o que impressiona Roma, pois continuamos a ser uma quantidade insignificante no conjunto do Corpo Místico. Esses frutos magníficos, que certamente são, segundo as próprias palavras de um alto prelado romano, a obra do Espírito Santo, são o que move as autoridades romanas ao voltar seus olhares para nós. Tanto mais quanto se trata de frutos frescos que crescem no meio do deserto.

Neste mês de setembro, os relatórios sobre a aplicação do Motu Proprio com referência à missa tradicional devem ser enviados à Santa Sé. São poucos os bispos que aplicaram generosamente as diretrizes romanas. Como o senhor explica esta reticência, ou melhor, esta resistência?

Do mesmo modo que a nova missa expressa um certo espírito novo que é o do Vaticano II, assim também a missa tradicional expressa o espírito católico. Os que se agarram com unhas e dentes ao Vaticano II por verem nele um novo ponto de partida da Igreja, ou os que consideram que com o Vaticano II uma página da história da Igreja foi deixada para trás definitivamente, são quem simplesmente não podem aceitar a co-existência de uma missa que recorda exatamente tudo o que pensavam ter deixado eternamente para trás. Há dois espíritos diferentes encarnados em duas missas. É um fato! E os dois não caminham juntos! Encontra-se no católico moderno um ódio semelhante para com o rosário, por exemplo. E tudo se relaciona. Vemos na questão da missa um exemplo muito bom da complexidade da crise que sacode a Igreja.

O senhor quer dizer que hoje, na Igreja, por detrás de uma fachada de unidade, esconderiam-se fraturas não só entre os episcopados locais e Roma, mas mesmo Roma entre diversas tendências opostas? O senhor tem provas?

Oh ! Sim, lamentavelmente estamos nos tempos anunciados em que se verão Cardeal contra Cardeal, Bispo contra Bispo. Este tipo de disputa é geralmente muito discreto e escapa à vista dos fiéis. Mas nesses últimos tempos, em diversas ocasiões, converteu-se em algo público e notório, como no ataque gratuito do Cardeal Schönborn contra o Cardeal Sodano. Isso se pareceu muito com um acerto de contas. Mas não é segredo que tendências opostas se chocam mesmo em Roma. Conhecemos vários fatos, mas não creio que seja útil para os fiéis que essas coisas sejam reveladas.

Em uma recente conferência no seminário da Fraternidade São Pedro (1), Mons. Guido Pozzo, secretário da Comissão Ecclesia Dei, esforça-se em dar uma prova de continuidade doutrinal entre Vaticano II e a Tradição. Cita, com este fim, a questão do subsistit in e a do ecumenismo. Esses exemplos lhe parecem convincentes?

Eu não diria convincentes, mas surpreendentes. Esta conferência é a aplicação muito lógica dos princípios enunciados em dezembro de 2005 por Bento XVI. E nos oferece uma apresentação do ecumenismo bastante diferente do que temos escutado durante quarenta anos…, uma apresentação mesclada com os princípios eternos sobre a unidade da Igreja e sua perfeição única, sobre a exclusividade da salvação. Claramente se vê uma tentativa de salvar o ensinamento de sempre e, ao mesmo tempo, um Concílio reconsiderado sob uma luz tradicional. A mescla, ainda que interessante, deixa ainda abertas questões de lógica sobre o papel que desempenham as outras confissões cristãs… chamadas, inclusive por Pio XII, de “falsas religiões”. Eles se atreverão, em algum momento, a utilizar novamente este termo?

 

Peregrinação da Fraternidade São Pio X a Roma para o Jubileu do ano 2000.
Peregrinação da Fraternidade São Pio X a Roma por ocasião do Jubileu do ano 2000.

 

Mons. Pozzo propõe em sua extensa conclusão um Concílio Vaticano II revisado – se não corrigido –, denunciando o relativismo, um certo “pastoralismo”, uma espécie de “dialoguismo” excessivo… O senhor pensa que esta apresentação é capaz de chegar à unanimidade em Roma e nas dioceses? Como o senhor julga esta versão revisada do Concílio?

É interessante no sentido de que se nos apresenta um novo Vaticano II, um Concílio do qual, de fato, nunca tivemos conhecimento, e que se distingue daquele que nos tem sido apresentado nos últimos quarenta anos. Uma espécie de nova pele! É interessante, sobretudo, porque a tendência ultra-moderna é condenada muito fortemente. Nos é apresentado uma espécie de Concílio moderado ou “acalmado”. Permanece, no entanto, a questão da recepção desta fórmula nova, certamente julgada como muito tradicional pelos modernos e não suficientemente tradicional por nós. Digamos que uma boa parte de nossos ataques se vê justificada, uma boa parte do que condenamos é condenado. Mas se certas coisas são condenadas, a divergência permanece sendo grande sobre as causas. Já que, enfim, se foi possível semelhante desorientação acerca do Concílio, e em tal escala, e com tal amplitude… é necessária uma causa proporcional! Se comprovam semelhante divergência de interpretação a propósito dos textos do Concílio, há de se concluir algum dia que as deficiências dos textos têm sua parte de culpa.

Alguns no seio da Tradição pensam que a crise deveria terminar instantaneamente, realizando a passagem desta crise até sua solução de uma só vez. Em sua opinião, trata-se de um sinal de confiança sobrenatural ou de impaciência demasiadamente humana? Em uma solução gradual da crise, quais são as etapas positivas já verificadas? Quais são as que o senhor desejaria ver no futuro?

A solução instantânea da crise, como alguns imaginam, não pode provir senão de um milagre ou de uma grande violência. Se não ocorre assim, permanece então a solução gradual. Mesmo que, em potência absoluta, não se pode excluir que Deus possa fazer tal milagre, todavia, de maneira habitual, Deus governa sua Igreja de outra maneira, por uma cooperação mais normal das criaturas e de seus santos. Em geral, a reabsorção de ma crise dura ao menos tanto tempo como sua ativação, inclusive mais. O caminho da reconstrução é longo, o trabalho é imenso. Mas, acima de tudo, a escolha dos homens será determinante. Se a política de nomeações dos bispos finalmente mudar, podemos ter esperança.  Na mesma ordem, seria necessária uma profunda reforma do ensinamento das universidades pontifícias, da formação dos sacerdotes nos seminários. Trata-se de trabalhos de longo prazo que, por ora, são ainda sonhos, mas que em um período de dez anos poderiam já tomar forma concreta. Tudo depende primeiramente do Papa. No momento, o positivo é o reconhecimento de que muitas coisas vão mal…  Aceita-se dizer que há uma enfermidade, uma grande crise na Igreja. Eles irão muito mais longe do que isso? Veremos…

Com o que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X pode contribuir, concretamente, para a solução desta crise sem precedentes? Que papel podem ter os fiéis da Tradição nesta obra de restauração? O que o senhor espera da jovem geração que hoje tem 20 anos e que terão 60… dentro de 40 anos?

Recordar que a Igreja tem um passado que ainda hoje permanece completamente válido. Um novo olhar, não empoeirado, sobre a Tradição da Igreja é uma contribuição decisiva para a solução da crise. A isso devemos acrescentar o chamar a atenção sobre o poder da Missa Tradicional, da missão e do papel do sacerdote tal como quer Nosso Senhor, segundo sua imagem e segundo seu Espírito. Quando perguntamos aos sacerdotes que se aproximam da Fraternidade o que esperam de nós, eles nos respondem primeiro que esperam a doutrina. E isso mesmo antes da Missa. É surpreendente, mas ao mesmo tempo é um bom sinal. Os fiéis têm o importante papel do testemunho, de mostrar que a vida cristã como sempre foi entendida, com suas exigências e o respeito à lei de Deus, é perfeitamente possível no mundo moderno. A vida cristã levada à prática é um exemplo muito concreto do que tem necessidade o homem da rua. E quanto à geração dos que hoje têm 20 anos, vejo que ela está à espera, pronta para a aventura da Tradição, sabendo bem que lhes é oferecido fora dela é pura aparência. Estamos em um ponto de inflexão para a reconstrução do futuro, e mesmo que isso ainda não seja visto claramente, creio que tudo é possível.

(1)    Conferência dada por Mons. Guido Pozzo, em 2 de julho de 2010, no seminário de Wigratzbad, intitulada, “Aspectos da eclesiologia católica na recepção do Vaticano II” [tradução do Fratres in Unum aqui] . Ver nosso comentário em DICI n. 220 de 7 de agosto de 2010, Vaticano II,um debate entre Romano Amerio, Mons. Gherardini e Mons. Pozzo”. [tradução do Fratres in Unum aqui].

O futuro FSSPX: nem concessão, nem “statu quo” confortável.

FONTE – Monsenhor Brunero Gherardini – tradução de Fratres in Unum a partir da versão francesa do Padre Matthieu Raffray, do Instituto do Bom Pastor – 29 de setembro de 2010

 

Cônego da Basílica de São Pedro e postulante da causa de canonização do Beato Pio IX, Mons. Gherardini é padre da diocese de Prato (Itália) e está a serviço da Santa Sé desde 1965, especialmente como professor de eclesiologia e ecumenismo na Pontifícia Universidade Lateranense até 1995.
Cônego da Basílica de São Pedro e postulante da canonização do Beato Pio IX, Monsenhor Gherardini é padre da diocese de Prato (Itália) e está a serviço da Santa Sé desde 1965, especialmente como professor na Universidade Lateranense.

 

Propomos aqui um texto sobre o futuro da Fraternidade São X que Monsenhor Brunero Gherardini nos pediu que traduzisse para o francês e publicássemos. Sua perspectiva realista, fundada sobre circunstâncias históricas que conhece bem por vários motivos, dá lugar a uma síntese teológica que novamente enfoca a vexata quaestio sobre a noção de “Tradição”.

Ele convida a trabalhar lucidamente na clareza teológica, sem temer iniciar um duro e longo trabalho, aberto às grandes colaborações e investigações aprofundadas sobre os documentos conciliares controversos, como já havia convidado em sua já famosa obra, Vaticano II, um discorso da fare. Nesta perspectiva, o acordo canônico desejado não seria o resultado de uma rápida confrontação ponto a ponto sobre o Vaticano II, mas, pelo contrário, o ponto de partida de um vasto programa de análises e de estudos que contaria com “a colaboração dos especialistas mais prestigiosos, seguros e reconhecidos de cada um dos âmbitos sobre os quais se articula o Vaticano II [e que daria lugar] a uma série de congressos ou a uma série de publicações sobre cada um dos diversos documentos conciliares” (B. Gherardini, “Súplica ao Santo Padre”, Ibid., ed. fr., p. 262).

Também nós nos inserimos nessa ótica, em especial, no que diz respeito a um sério renascimento do debate teológico, que deve comportar dos dois lados a revisão de “sensos comuns” não dogmáticos, no interesse supremo da Igreja universal, e não na busca de um statu quo que não visaria mais que cultivar os interesses particulares.

Padre Matthieu Raffray, IBP


 

Por ocasião de um encontro entre amigos, alguns deles me perguntaram qual poderia ser o futuro próximo da Fraternidade São X, ao fim das discussões em curso entre a referida fraternidade e a Santa Sé. Discutimos longamente e os pareceres estavam divididos. Por isso, expresso o meu por escrito, na esperança — sem nenhuma pretensão, Deus me livre — que possa ser útil não somente aos meus amigos, mas também aos que participam neste diálogo.

Tenho que dizer, antes de tudo, que ninguém é profeta, nem filho de profeta. O futuro está nas mãos de Deus. Às vezes é possível organizá-lo antecipadamente, ao menos em parte; noutros casos, ele nos escapa totalmente. É necessário, além disso, reconhecer às duas partes, que estão afinal trabalhando para encontrar uma solução ao problema dos “lefebvristas” que já durou muito, que elas, até agora, têm tido êxito em manter admirável e exemplarmente o silêncio que haviam prometido sobre os seus colóquios. Tal silêncio, no entanto, não ajuda a prever as saídas possíveis.

“Rumores”, em contrapartida, se fazem ouvir; e não pouco. Saber qual o seu fundamento é um enigma. Examinarei, então, algumas das opiniões expressas por ocasião da discussão mencionada, para posteriormente dar, de maneira clara, a minha.

 

Dom Fellay, Cardeal Hoyos e Papa - setembro de 2005
Dom Fellay, Cardeal Hoyos e Papa - setembro de 2005

 

1 – Durante a discussão, alguns julgaram positivo o recente convite feito à Fraternidade de “sair do bunker [refúgio, abrigo] no qual se trancou durante o pós-concílio para defender a Fé contra os ataques do neomodernismo”. Era claro que dar uma opinião a esse respeito não era coisa fácil. Que a Fraternidade, durante algumas décadas, esteve fechada num bunker, é evidente; e, infelizmente, ainda permanece. Menos evidente é saber se ela entrou sozinha, se fizeram-na entrar, ou se os acontecimentos a empurraram para lá. Parece-me que, se realmente se quer falar de bunker, Monsenhor Lefebvre mesmo foi quem encarcerou a sua Fraternidade, em 30 de junho de 1988, quando — após duas advertências de João Paulo II e uma admoestação formal para que renunciasse ao ato “cismático” que planejava realizar — ordenou bispos quatro dos seus padres. O bunker foi isso: não o de um cisma formal, dado que se tratou apenas de uma “recusa de submissão ao Soberano Pontífice” (CIC 751, §2), não havia dolo nem intenção de criar uma anti-igreja; pelo contrário, este ato foi determinado mesmo pelo amor à Igreja e por uma espécie de “necessidade” urgente de assegurar a continuidade da verdadeira Tradição católica, seriamente comprometida pelo neomodernismo pós-conciliar. Mas foi um bunker: o de uma desobediência aos limites do desafio, uma via sem saída e sem a perspectiva de nenhuma abertura possível. E não aquele de salvaguardar valores comprometidos.

É difícil compreender em que sentido se possa propriamente dizer necessário “trancar-se num bunker” “para defender a Fé contra os ataques do neomodernismo”. Isso seria dizer: deixar o campo livre à invasão da heresia modernista? Não, dado que, de fato, a passagem da heresia foi incessantemente posta em dificuldade. Pois, embora numa situação de condenação canônica, e, portanto, fora das fileiras oficiais, mas com consciência segura de trabalhar por Cristo e a sua Igreja, una, santa, católica, apostólica e romana, a Fraternidade se ateve acima de tudo à formação dos padres, já que aí está o seu propósito específico; fundou e dirigiu seminários; promoveu e apoiou debates teológicos às vezes de alto nível; publicou livros de um valor eclesiológico notável; prestou contas de si mesma, publicando folhetos de informação internos e externos; e tudo isso às claras, demonstrando assim de qual força — infelizmente deixada à margem — a Igreja poderia se prevalecer para realizar a sua obra de evangelização universal. O fato de que os efeitos da presença ativa lefebvrista possam parecer modestos, ou que, realmente, não sejam muito aparentes, pode depender de dois motivos: por um lado, da condição canônica anormal na qual evolui; por outro, das suas dimensões: sabemos que “la mosca tira il calcio che può” (“a mosca dá o pontapé que pode”).

Mas estou profundamente convencido que é precisamente por isso que se faz necessário agradecer a Fraternidade: por ter mantido, e por manter ainda, bem alta a tocha da Fé e da Tradição, num contexto de secularização que já chega à beira de uma era pós-cristã, e isso apesar de uma antipatia não dissimulada para com a mesma.

2 – Por ocasião do debate em questão no início, alguém fez referência a uma conferência na qual a Fraternidade foi convidada a ter uma confiança maior no mundo eclesial contemporâneo, recorrendo, se necessário, a certas concessões, dado que a “salus animarum” exige — é um lefebvrista que teria dito – que se corra até esse risco. Sim, mas certamente não o risco “comprometer” sua salvação eterna, nem a de outro.

É provável que as palavras tenham traído as intenções. Ou que não se tenha atentado ao valor das palavras. Pois se há uma coisa que se deve evitar em matéria de fé é fazer concessões. E para a Fraternidade, o recordar para si  o  “sim, sim, não, não” de Mt. 5, 37, como todo fiel autêntico de Cristo,  é a única resposta válida à perspectiva de concessão. O texto citado continua afirmando que “todo o resto vem do maligno”: portanto, também, e mais precisamente, a concessão. Pelo menos quando por ela se entende o renunciar aos seus próprios princípios morais e às suas próprias razões de ser.

Para dizer a verdade, desde que as discussões entre a Santa Sé e a Fraternidade começaram, chegou, também a mim, o rumor da possibilidade de uma concessão. Ou seja, de um comportamento indigno, ao qual o primeiro a recusar, imagino, seja a Santa Sé. Uma concessão sobre algo que não implique a autêntica confissão da Fé é possível, e mesmo plausível; mas nunca às custas de valores inegociáveis. Seria isso, sobretudo, uma contradição nos termos, pois que a concessão ela mesma é objeto de um “negotium” — e uma negociação de risco: risco do naufrágio da Fé. A própria idéia de que a Santa Sé possa propor e aceitar uma concessão me repugna: seria obter muito menos que um prato de lentilhas e endossaria então a responsabilidade de um delito gravíssimo. Igualmente, me repugna a idéia de que a Fraternidade, após ter feito da Fé sem concessões a bandeira da sua própria existência, possa escorregar na casca de banana da renúncia de sua razão de ser.

Acrescento que, a julgar por alguns indícios que talvez não sejam totalmente infundados, a metodologia colocada em ato por ambos os lados não parece abrir grandes perspectivas. É a metodologia do ponto contra ponto: Vaticano II “sim”, Vaticano II “não”, ou a rigor “sim, se…”. A condição de tal método é que de um lado ou do outro, ou dos dois, baixa-se a guarda. Uma capitulação sem condição? Para a Fraternidade, entregar-se nas mãos da Igreja seria o único comportamento verdadeiramente cristão, se não existisse a razão pela qual ela nasceu e que a levou a se retirar para o Aventin [ndt: uma das sete colinas de Roma]. A saber, este Concílio Vaticano II que, particularmente em alguns de seus documentos, é literalmente o oposto daquilo que ela crê e pelo que ela age. Com tal metodologia, nenhuma via média pode, então, ser entrevista: ou a capitulação, ou a concessão.

 

Bispos da Fraternidade nas exéquias de Dom Lefebvre
Bispos da Fraternidade nas exéquias de Dom Lefebvre

 

Tal saída poderia ser evitada se outra metodologia fosse seguida. O “punctum dolens” de todo o contencioso se chama Tradição. Uma e a outra parte não cessam de recordá-la, embora tenham uma noção claramente distinta. Em 1988, o Papa João Paulo II declarou oficialmente que a noção de Tradição defendida pela Fraternidade era “incompleta e contraditória”. Restaria demonstrar a razão de tal incompletude e contradição, mas o mais urgente é a necessidade de se chegar, para ambas as partes, a um conceito comum, isto é, bilateralmente compartilhado. Tal conceito se tornaria então o instrumento que permite desvendar o labirinto dos problemas. Não há questão teológica ou de problema eclesial que não encontre em tal conceito a sua solução. Se, então, continuarem a dialogar mantendo, de um lado e de outro, o seu ponto de partida, ou se dará lugar um diálogo de surdos, ou, para tentar provar que não se dialogou em vão, se dará livre acesso à concessão. Em particular, se fosse aceita a tese dos “contrastes aparentes”, que reduz as oposições não a causas de caráter dogmático, mas à interpretação sempre nova de fatos históricos, então a Fraternidade declararia o seu próprio fim, substituindo miseravelmente a sua noção de Tradição, que é a dos Apóstolos, pela noção vaga, inconsistente e heterogênea de Tradição viva dos neomodernistas.

3 – Em nosso colóquio amigável, abordamos enfim uma última questão, exprimindo aí mais esperança que previsões concretamente fundadas: a questão do futuro da Fraternidade. Sobre este assunto, já se inclinou o sítio http://cordialiter.blogspot.com, com uma antecipação idílica do feliz amanhã que poderia ocorrer à Fraternidade: um novo estatuto canônico — novo? Sim, porque por ora, nunca existiu –, significando o início do fim do modernismo, priorados abarrotados de fiéis, e pela Fraternidade transformada em “super-diocese autônoma”. Da minha parte, espero também muito da aproximação esperada e que está atualmente em curso, mas mantendo um pouco mais os pés no chão.

Tento lançar sobre essas coisas um olhar mais aguçado a fim de ver o que poderia ocorrer. A especificidade da Fraternidade, como já recordei, é a preparação ao sacerdócio e o cuidado das vocações sacerdotais. Portanto, não deveria se abrir para ela um terreno diferente do dos seminários, que é o seu verdadeiro campo de batalha: nos seus próprios seminários ou nos dos outros, aí, mais que em qualquer outro lugar, poderão se exprimir a natureza e a finalidade da Fraternidade.

Sob qual perfil canônico? Não é fácil prevê-lo. Parece-me, no entanto, que o fato de se tratar de uma fraternidade sacerdotal deveria sugerir o aspecto canônico sob forma de uma “sociedade sacerdotal”, colocada sob o governo supremo da “Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida apostólica”. Além disso, o fato de já possuir quatro bispos poderia sugerir, como solução, uma “Prelazia” que a Santa Sé, no momento oportuno, poderá precisar a configuração jurídica exata. Tudo isso não me parece, todavia, ser o problema principal. O que é bem mais importante, sem dúvida, é tanto a resolução dentro da Igreja de um contencioso incompreensível na época do diálogo com todos, como a liberação de uma força compacta unida à idéia e ao ideal da Tradição, para que possa operar não desde um bunker, mas à luz do sol e como expressão viva e autêntica da Igreja.

Brunero Gherardini

Roma, 27 de setembro de 2010