Os cardeais Roche e Cantalamessa confirmam:o rito de Paulo VI corresponde a uma nova teologia.

Por José Antonio Ureta

Os cardeais Arthur Roche e Raniero Cantalamessa reconheceram indiretamente, e talvez sem querer, o que os críticos do Novus Ordo Missae de Paulo VI vêm dizendo há mais de cinquenta anos: que o novo rito corresponde a uma nova teologia que “representa, tanto no seu conjunto como nos detalhes, um impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa, tal como foi formulada na sessão XXII do Concilio Tridentino” [1].

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Em 19 de março, questionado por seus compatriotas na rádio BBC sobre as restrições à celebração do rito tradicional latino, o prefeito do Dicastério para o Culto Divino declarou: “Como vocês sabem, a teologia da Igreja mudou. Antes, o padre representava, à distância, todo o povo: [os fiéis] eram canalizados por uma pessoa que sozinha celebrava a missa. Não é apenas o sacerdote que celebra a liturgia, mas também aqueles que são batizados [junto] com ele; nada menos!” [2] (Os destaques em negrito são sempre nossos).

Alguns dias depois, no quarto sermão da Quaresma para a Cúria Romana, o cardeal Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia, destacou:

“A liturgia católica se transformou, em pouco tempo, de ação com forte traço sacral e sacerdotal, a ação mais comunitária e participada, onde todo o povo de Deus tem a sua parte, cada um com o próprio ministério. […]

No início da Igreja e para os três primeiros séculos, a liturgia é realmente uma “liturgia”, isto é, ação do povo (laos, povo, está entre as componentes etimológicas de leitourgia). De São Justino, da Traditio Apostolica de Santo Hipólito e outras fontes do tempo, obtemos uma visão da Missa certamente mais próxima àquela reformada de hoje, do que aquela dos séculos que temos às costas. O que aconteceu depois de então? A resposta é, em uma palavra que não podemos evitar, mesmo se exposta a abuso: clericalização! Em nenhum outro âmbito ela agiu mais vistosamente do que na liturgia.

“O culto cristão e, particularmente, o sacrifício eucarístico, transformou-se rapidamente, no Oriente e no Ocidente, de ação do povo em ação do clero.” [3].

É consistente com o dogma católico dizer que o sacrifício eucarístico é uma ação realizada pelo povo e que se tornou primordialmente uma ação do clero devido a uma clericalização despropositada? Claro que não. Na Santa Missa, o celebrante não é um mero presidente da assembleia, mas o único sacerdos que oferece o sacrifício in persona Christi.

Para dirimir qualquer dúvida, basta ler o que Pio XII disse sobre isso em sua encíclica Mediator Dei: [4]

“Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus”(n° 35).

Por isso, na Santa Missa, “o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De missa II c.l.). O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).

Sem dúvida, é importante que os fiéis presentes participem do sacrifício do altar com os mesmos sentimentos que Jesus Cristo teve na Cruz, e que ofereçam esse sacrifício juntamente “com Ele e por Ele, santificando-se com Ele” (nº 73).

Mas, para evitar qualquer mal-entendido, Pio XII reitera que “o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que eles gozem de poderes sacerdotais”. A insistência do Papa Pacelli foi necessária, porque mesmo assim alguns afirmaram erroneamente “que o preceito que Jesus Cristo deu aos Apóstolos em sua última ceia, para fazerem o que Ele mesmo havia feito, se refere diretamente a todos os fiéis”, e julgaram que “o sacrifício eucarístico é uma concelebração estrita” (n° 75).

Contra este erro, ensinava a Mediator Dei que “a imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis” (n° 83).

Não se pode assim condenar missas privadas sem a participação do povo, nem a celebração simultânea de várias missas privadas em altares diferentes, invocando erroneamente “a índole social do sacrifício eucarístico” (n° 86).

Estes trechos da grande encíclica litúrgica de Pio XII mostram que, independentemente do que pensa o cardeal Cantalamessa, a vituperada “clericalização” da Santa Missa não foi fruto de uma adulteração humana produto da história, mas de um desígnio divino. Jesus instituiu o sacrifício eucarístico e o sacerdócio ministerial simultaneamente, e concedeu a seus ministros o privilégio exclusivo de renová-lo nos altares de maneira incruenta até a consumação dos tempos.

Deve-se também notar que o Pregador da Casa Pontifícia colocou suas sandálias de capuchinho em areia movediça ao declarar que as primeiras comunidades cristãs tinham “uma visão da Missa certamente mais próxima àquela reformada de hoje, do que aquela dos séculos que temos às costas”. Se isso fosse verdade, haveria duas possibilidades:

  • No melhor dos casos, a visão da Missa corporificada no novo rito de Paulo VI representaria uma regressão teológica, porque do começo do século terceiro à segunda metade do século XX houve um “desenvolvimento orgânico” do Depósito da Fé (isto é, uma melhor compreensão teológica) no que diz respeito ao sacerdócio e ao Sacrifício do Altar. Por isso, a “superação do passado recente para recuperar o mais antigo e originário” não é um “enriquecimento” [5], como afirmou o cardeal Cantalamessa, mas sim um empobrecimento, pois priva a Igreja da luz que emanou das definições dogmáticas de vários concílios ecumênicos sobre a Missa e o sacerdócio (o Segundo de Nicéia, o IV de Latrão, o de Florença, e principalmente o de Trento), assim como das fulgurações de alguns gigantes da teologia e da devoção eucarística como Santo Tomás de Aquino, São Roberto Belarmino, São Leonardo de Porto Mauricio e São Pedro Julião Eymard.
  • No pior dos casos, a visão da Missa corporificada no novo rito de Paulo VI representaria uma ruptura teológica com os dogmas de fé definidos nos “séculos que temos às costas”, os quais escoram a concepção supostamente clericalista do sacerdócio e da Eucaristia corporificada na Missa tradicional, cuja estrutura, até o Novus Ordo Missae do Papa Paulo VI de 1969, permaneceu praticamente inalterada desde as modificações feitas pelos Papas São Dâmaso I (m. 384) e São Gregório I (m. 604).

O cardeal Arthur Roche parece optar por esta segunda solução, já que, para ele, “a teologia da Igreja mudou”.

Porém, o novo rito de Paulo VI não representou uma mudança na teologia somente em relação à suposta clericalização da antiga liturgia. Após a publicação de Desiderio desideravi, mostrei que os princípios invocados pelo Papa Francisco em defesa da reforma litúrgica contradizem a Mediator Dei em vários aspectos. Em particular, destaquei os seguintes:

  1. A inversão sistemática entre o objetivo primário de adorar a Deus e o objetivo subsidiário de santificar as almas [6];
  2. O obscurecimento da centralidade da Paixão redentora, em benefício da Ressurreição gloriosa [7];
  3. A acentuação do memorial em detrimento do sacrifício [8]; e
  4. A diminuição do sacerdote celebrante, que se torna presidente da assembleia [9].

Diante dessas mudanças radicais, eu perguntava se a nova missa de Paulo VI ainda correspondia à fé de sempre [10]. Os cardeais Roche e Cantalamessa acabam de reconhecer que de fato ela corporifica uma “visão” diferente da liturgia, porque a teologia da Igreja teria mudado.

Antes que esses ilustres cardeais, dois conspícuos representantes do progressismo francês, Alain e Aline Weidert, haviam declarado a mesma coisa. Eles publicaram no jornal La Croix uma apologia do motu proprio Traditionis custodes, sob o expressivo título: “La fin des messes d’autre ‘foi’, une chance pour le Christ!” (O fim das missas de outra fé, uma oportunidade para Cristo).

Eles não abordaram a suposta clericalização da liturgia tradicional em detrimento do povo, mas se centraram na transição da Missa como sacrifício propiciatório para a Missa como celebração eucarística e jubilosa da Aliança:

O espírito da liturgia de outra fé, a sua teologia, as normas da oração e da missa de antes (a lex orandi do passado), não podem mais, sem discernimento, continuar a ser as normas da fé de hoje, o seu conteúdo (nossa lex credendi). […]

“Uma fé que ainda deriva da lex orandi de ontem, que fez do catolicismo a religião de um deus perverso que mata o filho para aplacar sua cólera, religião de perpétuo mea culpa e reparação, levaria a um antitestemunho da fé, a um imagem desastrosa de Cristo. […]

“Nossas Missas, infelizmente, ainda estão marcadas com um forte caráter sacrificial ‘expiatório’ com finalidade ‘propiciatória’ para aniquilar os pecados (mencionados 20 vezes), para alcançar nossa salvação e salvar almas da vingança divina. ‘Propiciação’ que as comunidades Ecclesia Dei defendem com unhas e dentes, com seus sacerdotes votados ao sacrifício, treinados para rezar o Santo Sacrifício da Missa, verdadeira imolação”. […]

Prosseguem os Weidert:

“Se quisermos poder oferecer no futuro uma fé e uma prática cristã atraentes, devemos nos aventurar, através da reflexão e da formação, a descobrir um fundo ainda desaproveitado (e inexplorado) de salvação por Jesus, não colocando em primeiro lugar sua morte contra (‘pelos’) pecados, mas sua existência como uma Aliança. Porque ‘a sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação’ (Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 5). A opção é clara! Não entre sensibilidades e estéticas religiosas diferentes, mas entre intermináveis sacrifícios para apagar os pecados e Eucaristias que selam a Aliança/Cristo” [11].

Quanta razão teve o Papa Francisco ao afirmar em Desiderio desideravi que “seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes gostos em relação a uma determinada forma ritual”. [12]

De fato, os cardeais Roche e Cantalamessa acabam de unir suas vozes, volens nolens, à de modernistas enragés como o casal Weidert, julgando que o rito de São Pio V é a missa de “outra fé.

Assim sendo, o Vaticano não pode estranhar que a fidelidade ao Depósito da Fé obrigue os católicos tradicionalistas a resistir resolutamente a uma legislação litúrgica ilegítima, porque procura impor uma construção litúrgica artificial (Ratzinger dixit), a qual se desvia em pontos essenciais dos dogmas definidos no Concílio de Trento, e porque visa restringir progressivamente, até à sua extinção, um rito sagrado da Missa que se desenvolveu harmoniosamente ao longo dos séculos.

Notas

  1. Cardeais A. Ottaviani e A. Bacci, carta a Paulo VI, introdução ao Breve Estudo Crítico do Novus Ordo Missae
  2. “Sunday”, B.B.C., 19 de março de 2023, https://www.bbc.co_uk/sounds/play/m001k7kb, entre os minutos 10:37 e 11:02.
  3. https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-03/iii-pregacao-da-quaresma-2023-mysterium-fidei-texto-integral.html
  4. Pio XII, encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947), https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-dei.html
  5. Cantalamessa, https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-03/iii-pregacao-da-quaresma-2023-mysterium-fidei-texto-integral.html
  6. Uma crítica doutrinária de Desiderio desideravi: A primazia do culto de adoração. https://fratresinunum.com/2022/08/18/uma-critica-doutrinaria-de-desiderio-desideravi/
  7. O obscurecimento da centralidade da Paixão redentora, https://fratresinunum.com/2022/08/20/obscurecimento-da-centralidade-da-paixao-redentora/
  8. Do sacrifício do Calvário ao memorial da Presença, https://fratresinunum.com/2022/08/26/do-sacrificio-do-calvario-ao-memorial-da-presenca/
  9. De sacerdotes do Sacrifício a presidentes de assembleias, https://fratresinunum.com/2022/08/30/de-sacerdotes-do-sacrificio-a-presidentes-de-assembleias/
  10. O Novus Ordo como arma para promover “outra fé”?, https://fratresinunum.com/2022/09/10/o-novus-ordo-como-arma-para-promover-outra-fe/
  11. Aline e Alain Weidert, em La Croix, 10/02/2022,
  12. https://www.vatican.va/content/francesco/es/apost_letters/documents/20220629-lettera-ap-desiderio-desideravi.html, nº 31.

Publicado originalmente em inglês no site Rorate Caeli.

O Novus Ordo como arma para promover “outra fé”?

Hoje publicamos a parte final do estudo de José Antonio Ureta sobre a  Desiderio desideravi. Para posts anteriores, veja a Parte 1; Parte 2; Parte 3; Parte 4

Uma pergunta incômoda

Nos quatro itens analisados ​​acima – (1) a finalidade do culto litúrgico, (2) o mistério pascal como centro da celebração, (3) o caráter memorial da Santa Missa e, por fim, (4) a presidência da assembleia litúrgica – fica bastante claro que a visão da Liturgia de Desiderio desideravi é unilateral, pois coloca todos os acentos nas sílabas erradas, embora suas palavras, consideradas individualmente, possam parecer justas a ponto de merecerem elogios de alguns tradicionalistas, mesmo entre os mais instruídos. O que o Papa Francisco parece querer enfatizar são as teorias e preferências dos liturgistas inovadores, não a doutrina tradicional da Igreja.

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De sacerdotes do Sacrifício a Presidentes de Assembleias.

Continuamos com a Parte 4 da crítica de cinco partes de José Antonio Ureta a Desiderio desideravi. Para as partes anteriores, veja aqui: Parte 1; Parte 2; Parte 3.

O Papel único do Padre na Missa

Na Mediator Dei, Pio XII ensina explicitamente que “Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus”(n° 35). Mas, acrescenta, na Santa Missa “o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De missa II c.l.). O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).

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Do Sacrifício do Calvário ao Memorial da Presença.

Nota do editor: Continuamos com a terceira parte do estudo de José Antonio Ureta sobre Desiderio desideravi. Para a Parte 1, veja aqui. Para a Parte 2, veja aqui.

Continuamos com a terceira parte do estudo de José Antonio Ureta sobre Desiderio desideravi. Para a Parte 1, veja aqui. Para a Parte 2, veja aqui.

A Santa Missa é um verdadeiro e próprio sacrifício

Ao tratar do sacrifício eucarístico, a Mediator Dei reitera o ensinamento do Concílio de Trento no sentido de que a Santa Missa é um sacrifício próprio e verdadeiro, e não apenas um memorial da Paixão ou da Última Ceia:

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Obscurecimento da centralidade da Paixão redentora.

Nota do editor: Continuamos com a segunda parte da crítica de José Antonio Ureta a Desiderio desideravi, publicada originalmente em OnePeterFive. A primeira parte da série pode ser lida aqui

O mistério pascal como centro da celebração

Na encíclica Mediator Dei, Pio XII sublinha a centralidade da Paixão na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e na nossa redenção (doravante, todos os destaques em negrito são nossos):

“A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: ‘Jesus Cristo ontem e hoje: ele por todos os séculos’ (Hb 13,8) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que somos membros, vivendo da sua própria vida.

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Uma crítica doutrinária de “Desiderio desideravi”.

Introdução do Editor: O site OnePeterFive está publicando, em cinco artigos sucessivos, um importante estudo de José Antonio Ureta a respeito dos fundamentos teológicos sobre os quais repousa a recente exortação apostólica Desiderio desideravi. O autor argumenta que esses fundamentos diferem manifestamente daqueles da encíclica Mediator Dei de Pio XII, na medida em que a primeira acentua precisamente as perigosas inclinações do “Movimento litúrgico” na sua fase terminal, contra as quais o último Papa pré-conciliar quis alertar os fiéis. A seguir, o primeiro dos artigos, traduzido por Hélio Dias Viana.

A primazia do culto de adoração

José Antonio Ureta

A necessidade de um exame cuidadoso

Nos meios tradicionalistas, os comentários sobre a exortação apostólica Desiderio desideravi limitaram-se até agora a lamentar a reiteração da tese de que a missa de Paulo VI é a única forma do rito romano e a negar que o novo Ordinário da Missa é uma tradução fiel dos desejos de reforma expressos pelos Padres conciliares na Constituição Sacrosantum Concilium.

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Carta aberta do Pe. Paul Aulagnier (+ 06-05-2021) do IBP ao Papa Bento XVI.

Faleceu ontem padre Paul Aulagnier, um dos fundadores do Instituto do Bom Pastor e dos primeiros discípulos de dom Lefebvre. Há diversas publicações dele no histórico de nosso blog — a seguir, republicamos um post de 2009. RIP.

Original em La Revue Item

Tradução de Marcelo de Souza e Silva

Santíssimo Padre,

Permiti-me dirigir-me a vós com toda simplicidade de coração, com toda lealdade num espírito filial. Permiti-me expressar minha inquietação… desta maneira em uma «carta aberta», minha estupefação sobre um ponto preciso: a condenação de Dom Lefèbvre. Não compreendo porque vós não reexaminais este assunto.

Esta é a razão desta minha defesa.

Vós bem sabeis que ele foi um grande prelado, um grande missionário. Delegado apostólico para a África de língua francesa. Ele foi o grande defensor da Igreja em terras africanas. Deixou, quando de lá partiu, uma obra extraordinária. Tal é o reconhecimento de todos. Tudo isso postula em seu favor.

Tendo ele retornado à França, foi nomeado pelo Papa João XXIII, Arcebispo-bispo de Tulle, pôs-se então à tarefa sem ressentimentos e com o mesmo zelo que na África. Uma única coisa lhe interessava: servir a Igreja na fidelidade ao Sumo Pontífice. Apenas nomeado para a diocese de Tulle, ele foi eleito superior geral da Congregação dos Padres do Espírito Santo, uma congregação forte que contava mais de cinco mil membros no mundo todo.

O Concílio Ecumênico do Vaticano II fora então convocado pelo Papa João XXIII. Enquanto superior geral ele participou das sessões preparatórias do Concílio. Ele nos contou tudo… assim que tivemos a graça de conhecê-lo primeiro em Roma depois e em seguida em Ecône.

Abbé Paul AulagnierDolorosamente afetado pela crise sacerdotal, pelo colapso das vocações no Ocidente e pela perda do senso sacerdotal, tendo sido liberado de todas as suas responsabilidades – ele apresentou sua demissão, Roma o aconselhara a tal – ele decidiu enfim fazer de tudo para lutar contra. Fundou seu seminário em Friburgo com a autorização episcopal de Dom Charrière e com os encorajamentos do Cardeal Journet. Ele criou seu instituto sacerdotal: a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, sempre com a autorização de Dom Charrière, Bispo de Friburgo-Lausanne-Genebra. Que alegria foi a sua logo que recebeu o decreto do bispo! Uma alegria própria da Igreja! Ele nos ensinou a grandeza do sacerdócio, seu papel, seu sentido.  Ele nos fez apreciar o tesouro da Missa, da Missa Católica. Ele nos fez relembrar sua finalidade, seus frutos e sua importância para o sacerdote e para os fiéis. Ele nos deu desde o coração até a obra um «moral de ferro». Ele multiplicou seus contatos para permitir a expansão de sua obra. Ele era incansável.

Chegou o ano de 1969, abril de 1969. Deu-se a publicação da Constituição Missale Romanum e do novo rito da Missa, a Nova Missa de Paulo VI. Terrível reforma litúrgica… contestada, contestável, que ia abalar desde as bases ao cume a Santa Igreja e sua unidade.

Teólogos se levantaram para se opor a aquilo, cardeais também. Intelectuais de renome fizeram ouvir sua voz. Para citar apenas um nome, permiti que eu invoque o Cardeal Ottaviani. Em uma carta ao Sumo Pontífice, Paulo VI, ele lhe apresentou uma crítica ao novo rito pedindo-lhe «ab-rogar este novo rito ou, ao menos, não privar o orbe católico, da possibilidade de continuar a recorrer à integridade e fecundidade do Missal Romano de São Pio V». Tudo isso provocou grande celeuma. Dom Lefèbvre tomou posição tarde demais.

Foi somente em 2 de junho de 1971 que ele reuniu em Ecône seu corpo docente e os seminaristas. No dia seguinte, ele foi ter com «os teólogos» e os seminaristas. Ele expôs sua posição. Explicou sua intransigência, seu «non possumus», com argumentos claros. Ele nos deixou, ao fim desta conferência, um texto, um pequeno texto que resumia sua corrente de pensamento. Naquela época, eu, seminarista, guardei ciosamente esse texto. Com freqüência eu o lia e relia. A posição de nosso fundador é simples, doutrinal, fundamentada sobre a mais segura teologia, sobre os decretos solenes do Concílio de Trento e sobre os princípios do Direito Canônico. Esta posição era púbica. Ela está escrita. Nas conferências ele jamais cessou de explicá-la e de justificá-la.

Ora, foi em razão dessa posição sobre a Missa que Dom Lefèbvre foi condenado.

Sua fundação foi tratada inicialmente como «selvagem». O primeiro a pronunciar tal termo foi Dom Etchegaray. Ele era naquela época Arcebispo de Marselha… Primeira afirmação falsa: Seu seminário não tinha nada de selvagem, tampouco seu instituto. «Tudo» foi aprovado por Dom Charrière, por Dom Adam. A fundação de Albano gozou do beneplácito do bispo local. Nada de «selvagem» a bem da verdade. Muito ao contrário, Dom Lefèbvre, como homem da Igreja, respeitador de suas leis, quis fazer tudo de acordo com as autorizações necessárias. E foi assim que ele fez. Mas pouco importava, ele não estava mais na linha. Porque ele não queria seguir cegamente as reformas conciliares… Tendo ele impedido que se voltasse atrás, era necessário desacreditá-lo. Suas fundações só poderiam ser classificadas como selvagens e condenadas.

Iniciava-se o ciclo infernal.

Então teve lugar uma visita canônica. Dom Onclin e Dom Deschamps foram enviados de Roma. Eles tinham propostas «novas» de tal forma que Dom Lefèbvre precisou protestar logo que ambos partiram. Foi quando surgiu então seu protesto de Fé de 24 de Novembro de 1974. Deus! Como tal declaração fez jorrar tinta! Como foi comentada! No exterior e no interior… e pelo próprio corpo docente. Era necessário que Dom Lefèbvre se retratasse. «Ele assinara sua própria condenação»… E foi então intimado em Roma diante de uma comissão «ad hoc», diante do Cardeal Garonne, Cardeal Wright e Cardeal Tabera. Eles tentaram convencê-lo da «futilidade» de sua posição. Tentativa inútil. Eles não imaginaram que encontrariam tamanha segurança, tamanha força, a força simples da doutrina católica, amada mais que a si mesmo.

Não podendo convencê-lo, era necessário esmagá-lo. Assim, sobrevieram-lhe as sanções canônicas. As pressões psicológicas foram terríveis a princípio.

Houve a ameaça de se fechar o seminário da Fraternidade. Como as ameaças não o detiveram, delas se passou para as sanções. E foi Dom Mamie, Bispo de Friburgo, que tomou a frente em tudo isso. Ao pobre, foi-lhe dada ordem de não realizar as ordenações do dia 29 de Junho de 1976. Terrível dilema do qual eu fui uma testemunha privilegiada. Na noite do dia 28, em meu escritório, ele ainda buscava uma solução… pesava os prós e os contras… A festa já se aproximava com todo seu fulgor.

Tudo estava pronto… «apesar de tudo, dizia-me ele, podemos ainda não fazer as ordenações». Ele era de uma calma suprema, tranqüilo. E no dia 29, diante de uma imensa multidão, ele explicou sua atitude. Ele falou com clareza e sem meios termos: nossa fidelidade à missa de sempre, à missa codificada, e mesmo canonizada por São Pio V é a causa de nossas dificuldades com Roma.

A sanção canônica sobreveio em 22 de Julho de 1976. Ele foi declarado «suspenso a divinis». Ele não poderia exercer nenhum poder inerente ao seu estado sacerdotal e episcopal. Em Lille, aos 29 de Agosto de 1976, ele explicou tudo novamente. Ele falou abertamente da reforma litúrgica, da reforma da missa, da missa «equívoca». Foi lá que ele falou da missa «híbrida»: «a Nova Missa é uma espécie de missa híbrida que não é hierárquica, mas democrática, onde a assembléia ocupa lugar mais importante que o sacerdote». Pode-se resumir a posição de Dom Lefèbvre dizendo que ele rejeita a nova missa porque ela é equívoca, mais protestante que católica, distante da Tradição católica e até mesmo em total ruptura com a Tradição e os dogmas católicos.

E o conflito perdurou. Hoje, vós sois a autoridade. É por isso que eu me dirijo a vós. Vós tendes mantido a condenação de Dom Lefèbvre, de sua fundação, de seus sacerdotes porque eles querem permanecer fiéis a esta Missa católica para salvaguardar sua Fé, garantia da eternidade.

No entanto, vós, quando éreis cardeal, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, vós vos tornastes bem severo quanto a essa reforma litúrgica que nos entristece.

Permiti que eu vos cite.

Vós prefaciastes um livro de Monsenhor Gamber em sua edição francesa gratamente difundida por Dom Gérard Calvet e intitulada A Reforma Litúrgica em Questão. Neste prefácio, vós elogiastes Monsenhor Gamber por sua obra teológica e litúrgica. Vós o recomendastes fortemente e fizestes dele um modelo, «um padre» desse renovar litúrgico que  trouxestes e ainda traz entre todos os vossos anseios. «Esse novo recomeço precisa de padres que lhe sejam modelos… Quem procura hoje tais padres encontrará um sem sombra de dúvida na pessoa de Monsenhor Klaus Gamber… ele poderia com sua destreza litúrgica – vós o dissestes – tornar-se um padre do novo recomeço» (p. 7). Não se pode ser mais claro.

Vós criticais «graciosamente» neste prefácio a reforma litúrgica. Vós afirmais que «a liturgia é (deve ser) um desenvolvimento contínuo», harmonioso (p. 7). E de fato a liturgia católica foi isto, aquela codificada por São Pio V. Ela evoluiu harmoniosamente através dos séculos. Tal se pode dizer tanto da liturgia quanto da doutrina católica. Não há pior herético que o «fixista». Não há nada mais radicalmente estático que a morte. A liturgia católica não é isso. Nós bem o sabemos. Isto posto, vós partis «em guerra» contra a liturgia reformada oriunda do Concílio Vaticano II. «O que se deu após o Concílio significa uma outra coisa: no lugar da liturgia, fruto do desenvolvimento contínuo, foi colocada uma liturgia fabricada. Saiu-se do processo vivo de crescimento e de transformação para se vagar na fabricação». Esta é a obra de Dom Bugnini. «Não se quis continuar a transformação e a maturação orgânica do ser vivo pelos séculos e as substituíram – segundo um modo de produção técnico – pela fabricação, produto banal do momento» (p. 7).

Vós dissestes também: «A liturgia não é o produto do nosso fazer». Esta é a grande idéia de Monsenhor Gamber. Dom Lefèbvre teria sido desta mesma opinião, ele que sustentou até a ruptura as reformas de São Pio X, de Pio XII e mesmo de João XXIII em matéria litúrgica, contra certos seminaristas americanos que as rejeitavam.

Vós nos pedistes que pendêssemos para o pensamento de Monsenhor Gamber, que nós o tomássemos por nosso. Vós destes uma aprovação sentida de sua obra. É o que eu tenho feito.

Por vossa recomendação, eu li este livro. Devo confessar que jamais encontrei crítica tão forte, tão radical à Nova Missa mesmo sob a pena de Dom Lefèbvre.

Então observe agora minha questão. Vêde onde quero chegar. Vêde o que eu quereria vos dizer se vós me recebêsseis: «Por que aprovar tão denodadamente Monsenhor Gamber, aplaudi-lo, recomendá-lo e continuar a reprovar Dom Lefèbvre?» Monsenhor Gamber é, porém, ainda mais severo em sua crítica ao novo rito que Dom Lefèbvre. Não haveria então dois pesos e duas medidas? Eis meu pasmo e mesmo minha angústia!

Vêde algumas críticas de Monsenhor Gamber: «Colocou-se, doravante (com a reforma litúrgica) e de modo exagerado, o peso sobre a atividade dos participantes, deixando num segundo plano o elemento cultual» (p. 15).

Foi isso que Dom Lefèbvre afirmou em Lille, nem mais, nem menos. «Esse (elemento cultual, i.e. o Sacrifício, a própria ação eucarística) foi empobrecida mais e mais no nosso meio». «Do mesmo modo, agora falta em larga medida a solenidade que faz parte de toda a ação cultual, sobretudo se esta é realizada diante de uma grande multidão» (p. 12). É isso o que nós dizemos, nem mais, nem menos. Monsenhor Gamber ousa escrever a este respeito: «Em lugar da solenidade vê-se reinar freqüentemente uma austeridade calvinista» (p. 13).

Monsenhor Gamber prossegue… «Não raro, vemos certos ritos serem desprezados pelos próprios pastores e deixados de lado sob pretexto de que seriam antiquados: não se quer deixar suspeitar que se teria fracassado o trem da evolução moderna. Não obstante, uma multidão do povo cristão permanece ligada a tais formas antigas cheias de piedade. Os reformadores de hoje, muito apressados, não consideraram suficientemente até que ponto, no espírito dos fiéis, a doutrina e as formas piedosas coincidem. Para muitos modificar as formas piedosas significa modificar a fé».

Prefaciando este livro, vós destes vossa aprovação a esta crítica geral.

Dom Lefèbvre disse a mesma coisa. Ele não cessou durante toda a sua vida de nos lembrar o axioma fundamental em matéria litúrgica: lex orandi, lex credendi. Foi o tema de sua conferência – entre mais de mil – de 15 de Fevereiro de 1975, dada em Florença: «Para muitos, modificar as formas tradicionais significa modificar a fé».

«Os responsáveis na Igreja não escutaram a voz daqueles que não cessaram de adverti-los pedindo-lhes que não suprimissem o Missal romano tradicional (e autorizassem a nova liturgia somente em certo limites e «ad experimentum»)… Hoje, eis infelizmente esta situação: numerosos bispos se calam diante de quase todas as experiências litúrgicas, mas reprimem mais ou menos severamente o sacerdote que, por razões objetivas ou de consciência, se prende à antiga liturgia» (p. 14).

Foi a essa constatação que chegaram os «Grandes» no cardinalato. Foi isso o constatado por Dom Lefèbvre. Era isso o que fazia com que Dom Lefèbvre se ativesse por razões objetivas ou de consciência à antiga liturgia.

Então, já que vós sustentastes o pensamento de Monsenhor Gamber, visto haverdes prefaciado seu livro, querei, eu vos suplico fazer abrir o dossiê «questão Lefèbvre» e o julgar em bom e devido modo.

Monsenhor Gamber é deveras severo… contra essa reforma litúrgica. Após ter reconhecido que «as inovações litúrgicas» são possíveis, mas que tudo deve ser feito «com bom senso e prudência». Isso não é a razão última, mas pouco importa, ele conclui voltando-se então para o concreto da reforma litúrgica nascida do Concílio Vaticano II: «A ruptura com a Tradição está doravante consumada». Ele sublinha ainda: «Pela introdução da nova forma da celebração da Missa (trata-se aqui do próprio rito novo) e dos novos livros litúrgicos, e ainda mais pela liturgia concedida tacitamente pelas autoridades, organizada livremente na celebração da missa sem que se possa auferir de tudo isso uma vantagem do ponto de vista pastoral (e isto é o mínimo que se pode dizer!), juntamente a tudo isso, prossegue ele, constata-se em larga medida, uma decadência da vida religiosa que, é verdade, tem também outras causas. As esperanças postas na reforma litúrgica – já se pode dizer – não foram realizadas».

Vós prefaciastes isto.

Dom Lefèbvre jamais usou termos tão fortes e brutais.

Por graça! Retomai o dossiê. Dai nova vida ao recurso que o próprio Dom Lefèbvre levou às mãos do Prefeito da «Assinatura Apostólica» da época, mas que este último não pôde tratar por ordem do onipotente Cardeal Dom Villot. Hoje, vós tendes poder para isso. Fazei cessar a injustiça na Igreja… na França de modo particular… Fazei cessar a injustiça contra Dom Lefèbvre.

Vêde ainda! «De ano em ano, a reforma litúrgica, louvada com excesso de idealismo e grandes esperanças por numerosos sacerdotes e leigos, prova ser, como nós já havíamos dito, uma desolação de proporção assustadora». (p. 15)

Dom Lefèbvre disse isso, mas digo que jamais o fez tão fortemente.

Nosso autor prossegue: «Em vez das esperadas renovação da Igreja e da vida eclesiástica, nós assistimos a um desmantelamento dos valores da Fé e da piedade que nos foram transmitidas, já no lugar de uma renovação fecunda da liturgia, vemos uma destruição das formas da missa que foram organicamente desenvolvidas no curso dos séculos» (p. 15).

Vós aprovastes este julgamento, vós o prefaciastes elogiosamente. Dom Lefèbvre, que não disse nada além disso, foi condenado, mas Monsenhor Gamber foi aplaudido.

Prossigo minha leitura: «…a isto some-se uma amedrontadora aproximação das concepções do protestantismo sob a bandeira de um ecumenismo mal compreendido… Isto significa nada menos que o abandono de uma tradição até então comum ao Oriente e ao Ocidente» (p. 15).

Dom Lefèbvre não disse outra coisa. Foi o que ele disse em um artigo publicado em 1971 em La Pensée Catholique – mas já escrito em pleno Concílio: «Para se permanecer católico seria necessário tornar-se protestante?»… E ele concluía: «Não se pode imitar os protestantes indefinidamente sem de fato se tornar um». Mas eu julgo Monsenhor Gamber mais categórico ainda. Ele mesmo fala «de uma amedrontadora aproximação das concepções do protestantismo». A linha de pensamento é a mesma!

Então como é possível tecer louvores a um, Monsenhor Gamber, e continuar a condenar o outro, Dom Lefèbvre. Ambos dizem o mesmo.

Por graça, abri novamente o processo de Dom Lefèbvre. Esta é uma súplica legítima.

Monsenhor Gamber, em um segundo capítulo, trata da «ruína» do rito romano. Ele o pranteia, como vós o fazeis em vosso Motu Proprio Summorum Pontificum. De tal modo ele avança em sua análise que chega ao ponto de dizer que o rito novo, sem ser de per si inválido – o que Dom Lefèbvre jamais disse – é celebrado com mais e mais freqüência de maneira inválida. Dom Lefèbvre disse exatamente a mesma coisa. Nem mais, nem menos. Ele é apenas um pouco mais preciso: «Todas essas mudanças no novo rito são realmente perigosas, porque pouco a pouco, sobretudo para os jovens sacerdotes que não mais têm a idéia de sacrifício, da presença real e da transubstanciação, e para os quais tudo isso não significa mais nada, esses jovens sacerdotes perdem a intenção de fazer o que a Igreja faz e não celebram mais missas válidas» (Conferência de Florença de 15 de Fevereiro de 1975).

Esta foi a grande preocupação de João Paulo II no fim de seu reinado, sobremodo expressa em sua encíclica «Ecclesia de Eucharistia».

Eu passo, pois, ao capítulo IV do livro: o julgamento do prelado é terrível.

Ele expõe a princípio, brevemente, porém adequadamente, a reforma luterana, a reforma que Lutero fez a Missa católica sofrer, a Missa romana. «O primeiro, escreveu ele, a ter empreendido uma reforma da liturgia e isso em razão de considerações teológicas foi, incontestavelmente, Martinho Lutero. Ele negava o caráter sacrificial da Missa e por isso se escandalizava com certas partes da Missa, em particular as orações sacrificiais do Cânon» (p. 41).

Daí advém a reforma que ele empreendeu da missa e logo de início suprimiu as orações sacrificiais, mas ele agiu prudentemente – com a prudência da carne – para não chocar e criar reações.

Ora, nada de tão comparável com a reforma litúrgica conciliar.

Monsenhor Gamber é terrível. Ele afirma inicialmente que se agiu muito brutalmente no Concílio: «A nova organização da liturgia e, sobretudo, as modificações profundas do rito da Missa que apareceram sob o pontificado de Paulo VI e entrementes se tornaram obrigatórias – pode-se legitimamente discutir este ponto – foram muito mais radicais que a reforma litúrgica de Lutero e levaram muito menos em conta o sentimento popular» (p. 42).

Depois, ele afirma que alguns elementos da doutrina protestante foram levados em conta para justificar a reforma litúrgica. Ele fala ainda da «repressão do elemento latrêutico», «a supressão das formulas trinitária», e enfim do «enfraquecimento do papel do sacerdote». Aqui se encontra, pura e simplesmente, as afirmações de Dom Lefèbvre, aquelas do «Breve Exame Crítico» apresentado ao Papa pelo Cardeal Ottaviani. E diz ainda que «não foi suficientemente esclarecido em que medida, tanto aqui quanto no caso de Lutero, as considerações dogmáticas puderam exercer alguma influência» (p. 42).

Ele reconhece que «foi a nova teologia (liberal) que apadrinhou a reforma conciliar». Ele se ressente de que o Papa Paulo VI não tivesse acreditado que deveria ter levado a sério «as críticas dogmáticas», «nem as imperiosas e ásperas repreensões dos cardeais de mérito – como aqui não se pensar no Cardeal Ottaviani, no Cardeal Bacci, os quais haviam lançado objeções dogmáticas quanto ao novo rito da missa – nem as instantes súplicas provenientes de todas as partes do mundo impediram Paulo VI de introduzir imperativamente o novo missal» (p. 43).

Assim, para Monsenhor Gamber cuja doutrina vós tanto nos recomendais, o «Novo Ordo Missae» teria «odores» protestantes pelos traços de teologia protestante, teologia liberal.

Confessai que tudo isso, objetivamente, pode impedir qualquer entusiasmo de celebrá-lo e torna difícil falar de «santidade» ou de «valor» do novo rito como vós nos pedis para fazê-lo na carta que endereçastes aos bispos. A contradição permanece!

Vós aprovastes estas críticas. Por que então continuais a condenar Dom Lefèbvre?

Seu erro foi talvez ter tido razão cedo demais, ou de ter sido, em sua época, um bispo de caráter… Mas se ele demonstrava essa qualidade quem poderia com razão criticá-lo, ainda mais por tal lucidez e tamanha força? Foram estes os motivos da condenação?

Após estas críticas gerais, Monsenhor Gamber chega a um ponto mais peculiar: à prex eucharistica. Ainda nesse ponto a crítica permanece terrível. «Os três novos cânons constituem por si mesmos uma ruptura completa com a tradição. Eles foram compostos de acordo com modelos orientais e galicanos, e representam, ao menos em seu estilo, um corpo estranho no rito romano» (49). Ele aprofunda um pouco mais em seu «menu» até as palavras da consagração, e é ainda mais severo: «A modificação ordenada por Paulo VI das palavras da consagração e das frases que se seguem… não tinha a menor utilidade para a pastoral. A tradução de «pro multis» para «por todos» que se refere a concepções teológicas modernas e que não é de modo algum encontrado em nenhum texto litúrgico antigo, é duvidosa e tem na verdade causado escândalo» (p. 50).

Monsenhor Gamber estava chocado, deveras chocado, com a mudança do termo «mysterium fidei» da fórmula da consagração do vinho. Mas sua explicação é luminosa: «Do ponto de vista do rito, é para se ficar estupefato ao ver que se tenha podido retirar, sem razão, o termo «mysterium fidei» inserido nas palavras da consagração desde por volta do século VI, para lhes conferir um significado novo; ele se tornou uma exclamação do sacerdote após a consagração. Uma exclamação desse tipo jamais esteve em uso. A resposta da assembléia: «Proclamamos, Senhor, a vossa morte…» só é encontrada em anáforas egípcias. Porém é estranha aos ritos orientais e a todas as orações eucarísticas ocidentais e está em total desconformidade com o estilo do cânon romano» (p. 50).

Desse modo, nós nos prontificamos a nos ater a crítica de Monsenhor Gamber. Eu creio que ela basta para poder justificar nossa posição prática. No entanto, porque quisemos permanecer ligados a estas críticas, àquelas do Breve Exame Crítico, que são as mesmas, nós fomos praticamente excomungados, cassados de nossas igrejas, nós fomos tomados por retrógrados. E nos disseram que não temos o senso da Tradição…

Mas então porque elevar às nuvens Monsenhor Gamber e continuar a combater Dom Lefèbvre? Eu não entendo.

Não haveria injustiça nisso? Eis o que eu tenho em meu coração e o que eu quero vos dizer, vós que sois o pai de todos.

Monsenhor Gamber vem a concluir o capítulo por este veredito: «Com o novo, quis-se mostrar aberto à nova teologia, tão equívoca, aberta ao mundo de hoje» (p. 54). «O que é certo é que o novo Ordo Missae, desta forma, não recebeu o assentimento da maioria dos padres conciliares».

Incrível!

Esta única afirmação deveria bastar para que qualquer um se ativesse firmemente ao antigo rito… «Mas vós não tendes o espírito do Concílio»! Esta arma que mata. No entanto, o que é este espírito do Concílio que é necessário ter para viver… Monsenhor Gamber o tinha? Mas que arbitrário! Que arbitrário!

Vós poderíeis talvez me dizer: «Tu te enganas. Não é a missa que põe o problema. Mas as sagrações. Dom Lefèbvre as realizou sem autorização pontifical. Por isso devia ser punido. Hoje, o novo Direito canônico prevê a excomunhão. Eis o problema! Eis o porquê da condenação». Mas é realmente esse o problema?

A idéia da sagração de um membro da Fraternidade havia sido aceita quando do protocolo de 5 de maio de 1988. Vós mesmo a havíeis aceitado.

Mas para o momento, permaneçamos ao nível do simples bom senso.

Dom Lefèbvre não foi menos amado pelas autoridades eclesiásticas após as sagrações que antes delas. Ele não foi menos execrado depois das sagrações que antes das mesmas. Antes delas, fizeram-lhe guerra, sua obra foi declarada «selvagem». Dom Garonne o declarou «louco»… Os bispos das dioceses lhe escreveram cartas horríveis quando ele visitava os tradicionalistas de suas dioceses. E que cartas!

Sim, Dom Lefèbvre já não era amado desde antes das sagrações. Ele não mais estava, parecia-lhe, em sua «comunhão». Já se lhe fechavam as igrejas. Os corações dos bispos se lhe fecharam… Mesmo em Roma, não se ousava mais recebê-lo… quando ele visitava um dicastério… o Prefeito ficava embaraçado… Ser visto com Dom Lefèbvre era comprometedor… Já muito antes das sagrações, ele era o « mal amado» da Igreja. Ele não tinha o espírito conciliar… E de fato, sua obra, sua obra sacerdotal foi interditada, seu seminário foi fechado. Interditadas as ordenações sacerdotais… Obviamente, ele nos ordenou para o Sacrifício da missa…! Ele era execrado por seus pares bem antes das sagrações e mesmo durante o Concílio.

Não se lhe perdoava a posição, sua presidência do Coetus internationalis Patrum.

Mesmo antes do Concílio, quando ele era Arcebispo-Bispo de Tulle, os cardeais e arcebispos da França lhe fechavam a porta de suas assembléias e reuniões. Mas ele tinha pleno direito a tomar parte nelas. Eles lhe recusavam tal. Isto é histórico! Se o Cardeal Richaud – então Arcebispo de Bordeaux – estivesse ainda neste mundo, ele poderia testemunhar quanto a isso.

Dom Lefèbvre no-lo disse. Mas ele ria-se disso. Ele não era rancoroso. Sim, mesmo antes das sagrações, Dom Lefèbvre não era amado. Era assim.

Sob esses aspectos, o problema das sagrações toma seu sentido verdadeiro. É na verdade um problema menor, o que quer que se diga… Neste sentido, as sagrações não foram a razão fundamental de sua excomunhão. Na prática, ele já o era. Após as sagrações ele se tornou, pode-se dizer, canonicamente. E isso não mudou quase nada… A pena canônica – sua declaração – foi inicial e essencialmente diplomática: para fazer medo e assustar os fiéis e lhes fazer abandonar o barco… O Cardeal Gagnon julgou mal.

Mas admitamos que a excomunhão tenha sua razão essencial e exclusiva nas sagrações. Esta ação – esta sanção – estende-se a Dom Lefèbvre, aos quatro bispos consagrados e ao co-consagrador Dom Castro Mayer… a mais ninguém, e de modo algum à Fraternidade Sacerdotal São Pio X e seus padres. Eles não estão excomungados. Eles estão na Igreja e são da Igreja. Eu mesmo nunca recebi a menor notificação de excomunhão. O Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta não me diz respeito diretamente.

Vós me direis talvez que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X tenha sido suprimida por Dom Mamie, Bispo de Friburgo, e não exista mais. Ela não é mais de direito diocesano. Vós sois “zero”, nada. Vós não tendes qualquer existência legal.

Ah ! Permiti-me ainda!

Dom Mamie quis talvez suprimir a Fraternidade Sacerdotal São Pio X… Mas eu me permito humildemente vos lembrar que nós o fomos em razão de nossa ligação à missa tridentina e em razão de nossa rejeição do novo Ordo Missae.

Ora, prefaciando o livro de Monsenhor Gamber, vós prefaciastes nossas própria críticas.

Volto a repetir, Dom Lefèbvre e o Breve Exame Crítico são menos duros que Monsenhor Gamber e seu livro. Ademais vós nos dais razão em vosso recente Motu Proprio reconhecendo que a antiga missa «permaneceu sempre autorizada». Se ela permaneceu sempre autorizada, era legítimo a celebrar e ilegítimo condenar os que queriam celebrá-la.

Assim, pois, nossa condenação e nossa supressão estão sem razão suficiente.

Elas são injustas. Querei, Santíssimo Padre, restaurar a justiça, reparar a injustiça.

Dignai-vos, Santíssimo Padre, a receber a expressão de meu filial respeito e conceder-me vossa bênção.

Padre Paul Aulagnier.

Membro do Instituto do Bom Pastor.

Iniciada a reforma da reforma da reforma litúrgica?

Duas notícias de Blogonicus:

Piero Marini será o novo Prefeito do Culto Divino?

Segundo informa o Pe. Ray Blake, no seu sempre excelente blog, fazendo eco ao publicado por Liam Connolly (ver abaixo), o arcebispo Piero Marini seria nomeado, em questão de horas, como novo Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos.

Arcebispo Marini foi o responsável por boa parte das liturgias do pontificado de João Paulo II e por alguns anos de Bento XVI, sendo particularmente culpado pela péssima impressão que as missas pontifícias causavam aos olhos e ao coração dos católicos fiéis.

A saída de Piero Marini, que nunca é demais lembrar foi discípulo de Annibale Bugnini, da sua função de liturgista foi comemorada por muitos dentro e fora do Vaticano. Piero representava o pior gosto e senso litúrgico da pós-reforma e seu banimento significava apenas o óbvio – não há lugar para tais idiotices na liturgia da Igreja!

Entretanto, como afirmei mais cedo hoje:

Um novo estilo se instalou, para desespero daqueles preocupados com a coerência de uma reforma da reforma. Não é possível afirmar, com honestidade, que Francisco continua no caminho da reforma da reforma iniciado por Bento XVI, ainda que de forma diferente.

O cardeal Cañizares, atual prefeito, mesmo com sua predileção pelo movimento dos “neocatecumenais”, não é nem de perto um mau negócio quando comparado com Piero Marini. O retorno de Piero Marini, se confirmado, é um desagravo aos modernistas e uma humilhação (mais uma!) aos tradicionalistas ou mesmo conservadores. É, como disse o Pe. Blake, o “horror dos horrores”.

Se confirmado, será o ponto de “cisma” entre Francisco e Bento XVI. Lembrando que Francisco teve um encontro reservado com Piero Marini em abril, poucos dias após sua eleição, onde já se especulava a nomeação.

A elevação de Piero Marini a um posto que considero de importância igual ao da Doutrina da Fé é lamentável. Ela deixará claro, como já disse, a direção de Francisco e ferirá de morte o coração de muitos bons católicos.

“Quem viver, verá”.

* * *

DEMITIDOS – Liturgistas de Bento XVI

Como informam os blogs Rorate Caeli e Secretum Meum Mihi, os consultores da Oficina de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice foram todos – T.O.D.O.S – removidos dos seus postos [nota do Fratres: o que inclui Monsenhor Nicola Bux e o Pe. Uve Michael Lang].

Como acontece com todos os cargos consultivos na Cúria, há um prazo de cinco anos, que pode ser renovado por mais cinco, para que o sacerdote ou bispo membro de um dicastério exerça seu trabalho. Entretanto, Francisco preferiu nomear novos membros.

A liturgia foi o destaque do pontificado de Bento XVI e penso que o tema tem o mesmo peso para Francisco, mas numa direção inversa. O papa atual já deu mostras de como quer que a vida litúrgica do Sumo Pontífice seja conduzida – simplicidade e pobrismo.

Dos 5 nomes indicados por Francisco, 2 são ligados ao Santo Anselmo, que foi o grande centro disseminador da reforma litúrgica selvagem.

Um dos nomeados, o carmelita Giuseppe Midili, no centro, durante conferência na Espanha.

Mas o que isso significa?

Significa que as mudanças na liturgia do Papa serão rápidas. Um novo estilo se instalou, para desespero daqueles preocupados com a coerência de uma reforma da reforma. Não é possível afirmar, com honestidade, que Francisco continua no caminho da reforma da reforma iniciado por Bento XVI, ainda que de forma diferente.

Entretanto, Francisco começa da base. Remove-se os consultores, que são a “equipe teórica” das celebrações. Depois, penso eu, virá uma remodelação dos cerimoniários. Por último a demissão de Mons. Guido Marini.

Os consultores de Bento XVI representavam o “suprassumo” do seu pensamento litúrgico e davam ao departamento a condução teológica que Ratzinger sintetizou tão bem em “Introdução ao Espírito da Liturgia”.

Eu repito que somente alguém desonesto ou mentalmente afetado pode afirmar uma continuidade litúrgica entre Bento XVI e Francisco. Não há! Vivemos nestes dias uma transição, mas Francisco deixa muito claro qual o caminho a ser percorrido. E o Papa atual não está preocupado com hermenêuticas quaisquer que sejam.

Diferentemente dos nomes anteriores, que já eram conhecidos em diversas partes do mundo pela sua postura crítica em relação à reforma litúrgica e seus excessos, os nomes apontados por Francisco emergem do completo anonimato.

Podemos esperar de tudo um pouco. Um movimento reacionário e restauracionista está tomando conta do Vaticano. A Igreja, com Francisco, está na contramão, caminha de marcha ré e com os olhos fechados para a realidade. Oremos!

Cardeal Ranjith e a Sacra Liturgia.

Ocorre em Roma, de terça a sexta-feira desta semana [25 a 28], na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, a conferência Sacra Liturgia, que reúne renomados liturgistas do mundo todo. Da interessante conferência do Cardeal Malcom Ranjith, Arcebispo de Colombo, Sri Lanka, destacamos apenas alguns pontos para instigar os leitores à sua leitura na íntegra — aos que puderem traduzir outros trechos, agradecemos antecipadamente.

* * *

“Se tais improvisações tornassem a Liturgia verdadeiramente mais eficaz e interessante, então, por que com tais experimentações e criatividade o número dos participantes aos domingos caiu tanto e tão drasticamente em nossos dias?”

LATIM E LITURGIA

Cardeal Ranjith.
Cardeal Ranjith.

A respeito do uso do latim na liturgia, vale a pena sublinhar o que foi decretado pelo Concílio: “Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular” (Sacrosanctum Concilium, n. 36), e consentia no uso do vernáculo para as leituras, monições e algumas orações e cantos. Naturalmente, confiava à competente autoridade eclesiástica territoriais decidir se e em que medida o vernáculo seria usado na Liturgia, todavia, sempre com a aprovação da Santa Sé. Mesmo relativamente ao canto gregoriano, o Concílio é prudente enquanto, mesmo admitindo outros gêneros de música sacra, sobretudo a polifonia, afirma que a Igreja “reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano”, pelo que “terá este, na ação litúrgica, o primeiro lugar” (Sacrosanctum Concilium, n. 116). Tal concepção limitada do Concílio para o uso do vernáculo na Liturgia foi aventureiramente estendida pelos reformadores; tendo o latim quase totalmente desaparecido da cena, permaneceu como o órfão mais amado na Igreja. Digo isto não porque eu seja um fanático do latim; provenho de uma terra de missão, na qual o latim não é compreendido por quase toda a minha comunidade. Mas é um erro crer que uma língua deva sempre ser compreendida por todos. A língua, como sabemos, é um meio de comunicação de uma experiência que, quase sempre, é mais ampla do que a própria palavra. Língua e palavra são, portanto, secundárias e, em ordem de importância, estão, depois, a experiência e a pessoa. A língua leva consigo sempre uma originalidade do acontecimento. Por exemplo, o termo “OM” é intraduzível para a liturgia hinduísta; além disso, as religiões orientais usam uma língua que é estritamente limitada às suas formas de oração e de culto: o hinduísmo usa o sânscrito, o budismo o pali, e o islã o árabe corânico. Nenhuma destas línguas é falada hoje, e são usadas somente em sua forma cultual; cada uma destas línguas é respeitada e reservada, desde o início, pela expressão de “algo que está para além do som e das letras”. O judaísmo, por exemplo, usa o tetragrama YHWH para indicar o impronunciável nome de Deus. Por si mesmas, as quatro letras do sagrado tetragrama não têm nenhuma nuance linguística, mas constituem o nome santíssimo de Deus na tradição escrita da Massorá.

O uso litúrgico do latim na Igreja, mesmo que tenha se iniciado em torno no século IV, dá origem a uma série de expressões que são únicas e constituem a própria fé da Igreja. O vocabulário do Credo é claramente cheio de expressões em latim que são intraduzíveis. O papel da lex orandi em determinar a lex credendi da Igreja é validíssimo no caso do uso do latim na Liturgia, porque a doutrina é frequentemente mais compreendida na experiência de oração. Por tal razão, um sadio equilíbrio entre o uso do latim e do vernáculo deveria ser, segundo meu ponto de vista, mantido. A reintrodução do usus antiquor feita pelo Papa Bento XVI não era, então, um passo para trás, como alguns definiram, mas uma iniciativa que restituía à Sacra Liturgia um sentido de estupor místico, uma tentativa de impedir uma clara banalização daquilo que é fundamental para a vida da Igreja. Deve-se honrar e impulsionar tal iniciativa do Pontífice, que também pode conduzir à evolução de um novo movimento litúrgico, que poderia desembocar na “reforma da reforma”, desejo ardente do papa Ratzinger. De fato, alguns elementos do usus antiquor refletem melhor o sentido de maravilhamento e devoção com o qual nós somos chamados a re-presentar os acontecimentos do Calvário em nossas celebrações eucarísticas. E porque aceitamos os diversos desenvolvimentos positivos do novus ordo, como, por exemplo, o mais amplo uso do texto bíblico e um maior espaço à participação da comunidade nos vários momentos da Missa, deveríamos também assegurar que aquilo que acontece sobre os nossos altares não perca a própria capacidade de causar uma verdadeira transformação espiritual da comunidade. E é por isso que se torna necessária uma mutualidade dos elementos mais positivos das duas formas: isto é a “reforma da reforma”. A própria definição das duas formas como usus antiquor e novus ordo, para mim, é errônea, porque o sacrifício do Calvário nunca é antigo, mas é sempre novo e atual.

CONCEPÇÕES ERRÔNEAS

Outro aspecto do processo de uma verdadeira renovação profunda da Igreja, por causa do papel decisivo que o culto desempenhou em sua vida e missão, é a necessidade de purificar a Liturgia de algumas concepções errôneas que penetraram pela euforia das reformas introduzidas por alguns liturgistas depois do Concílio – coisa que, é necessário reconhecê-lo, nunca esteve na mente dos padres conciliares quando aprovaram a histórica Constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium.

a. Arqueologismo

A lista é aberta por um tipo de falso “arqueologismo” que tinha por slogan “voltemos à Liturgia da Igreja primitiva”. Escondia-se aqui a interpretação de que somente aquilo que se celebrava na Liturgia do primeiro milênio da Igreja fosse válido, pensava-se que o retorno a isto fizesse parte do aggiornamento. A Mediator Dei ensina que esta interpretação é errada: “A liturgia da época antiga é, sem dúvida, digna de veneração, mas o uso antigo não é, por motivo somente de sua antiguidade, o melhor, seja em si mesmo, seja em relação aos tempos posteriores e às novas condições verificadas” (Cf. Pio XII, S.S., Encíclica Mediator Dei, Enchiridion Encicliche, vol 6, Bolonha 1995, n. 487). Além disso, já que as informações sobre a práxis litúrgica dos primeiros séculos não são claramente atestadas nas fontes escritas do tempo, o perigo de um arbítrio simplista em definir tais práxis é ainda maior e corre o risco de ser uma pura conjectura. Além disso, não é respeitoso do processo natural de crescimento das tradições da Igreja nos séculos sucessivos. Nem está em consonância com a fé na ação do Espírito Santo ao longos dos séculos. E é, além de tudo, altamente pedante e irrealista.

b. Sacerdócio ministerial

Uma outra concepção errônea de reformismo em matéria de Liturgia é a tendência a confundir o altar com a nave. Observa-se frequentemente que a distinção essencial na Liturgia entre o papel do clero e dos leigos é confuso, por causa de uma compreensão errônea da diferença entre o ofício sacerdotal de todos os fiéis (sacerdócio comum) e o ofício do clero (sacerdócio ministerial): uma diferença muito bem explicada na Lumen Gentium. Este documento esclarece que o sacerdócio comum de todos os batizados foi sempre afirmado pela Igreja (cf. Ap 1,6; 1 Pd 2,9-10; Mediator Dei, nn. 39-41; e Lumen Gentium, n. 10), assim como o sacerdócio ministerial; os quais, cada um a seu modo, participam “do único sacerdócio de Cristo”… “embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau” (Lumen Gentium, n. 10). A Constituição litúrgica do Concílio afirma que a Liturgia prevê uma distinção entre as pessoas “que deriva do ofício litúrgico e da sagrada ordem” (Sacrosanctum Concilium, n. 32). A Mediator Dei era ainda mais categórica, afirmando que: “Ai soli Apostoli ed a coloro che, dopo di essi, hanno ricevuto dai loro successori l’imposizione delle mani, è conferita la potestà sacerdotale” (Mediator Dei, in Enchiridion Encicliche, vol. 6, Bolonha 1995, n. 468).

O resultado de tais confusões de papéis na época moderna é a tendência a clericalizar os leigos e a laicizar o clero. Índice de tais confusões é a sempre maior remoção das balaustradas dos altares dos nossos presbitérios e o fato de as pessoas permanecerem sentadas ou agachadas por terra em torno do altar; são pessoas demais a entrar e circular no presbitério, causando distração e distúrbio em nossas funções litúrgicas. A Santa Eucaristia, em tais situações, se torna um espetáculo, e o sacerdote um showman. O sacerdote não é mais como no passado – como escreveu K. G. Rey, em seu artigo Coming of age manifestations in the Catholic Church –: “ o mediador anônimo, o primeiro entre os fiéis diante de Deus e não do povo, representante de todos, que oferece com eles o sacrifício, recitando as orações prescritas. Hoje, ele é uma pessoa distinta, com características pessoais, o seu estilo de vida pessoal, com o seu próprio rosto voltado ao povo. Para muitos sacerdotes, esta mudança é uma tentação que não sabem gerenciar… se torna para eles o nível de sucesso do próprio poder pessoal e, por isso, o indicador do sentimento de segurança pessoal e de autoestima” (K. G. Rey, Pubertätserscheinungeng in der Katolischen Kirche, Kritische Texte, Benzinger, vol. 4, p. 25). O padre, aqui, se torna o ator principal, que recita um drama  com outros atores sobre o altar, e quanto mais são capazes e sensacionais, tanto mais sentem que recitaram bem. Em um cenário assim, o papel central de Cristo desaparece, e também, se num primeiro momento isso parece agradável, à longo prazo se torna extremamente banal e cansativo.

c. Actuosa participatio

(…)

Existem pessoas, também em nosso tempo, que desejam tornar a Liturgia mais interessante ou apetecível; fazem suas próprias regras, correndo, assim, o risco de esvaziar a Liturgia de seu essencial dinamismo interior, com o resultado final de que as chamadas formas de culto se tornam, por fim, insípidas e maçantes. Se tais improvisações tornassem a Liturgia verdadeiramente mais eficaz e interessante, então, por que com tais experimentações e criatividade o número dos participantes aos domingos caiu tanto e tão drasticamente em nossos dias? Esta é a pergunta que  devemos enfrentar com coragem e humildade. É justo considerar os requisitos antropológicos de uma sã Liturgia, sobretudo em relação aos símbolos, as rubricas e à participação; mas não se deve ignorar o fato de que estes não teriam significado sem uma correlação à chamada essencial de Cristo para unirmo-nos a Ele em Sua incessante Ação Sacerdotal.

Fonte: Diocese Suburbicária de Porto-Santa Rufina | Tradução e destaques: Fratres in Unum.com