Basílica de São Pedro, 16 de setembro de 2017: O Arcebispo Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, celebra Missa Pontifical por ocasião da 10ª peregrinação Summorum Pontificum — Missa que estava programada para ser celebrada pelo Cardeal Carlo Caffarra, falecido no último dia 6.
Nas exéquias do Cardeal Caffarra, na catedral de Bolonha, seu sucessor naquela sede, Dom Matteo Zuppi, declarou*:
“Ele [Caffarra] queria que a Igreja indicasse e pregasse a Verdade de Cristo sem acomodações e oportunismos ‘não procurando agradar os homens, mas a Deus que prova corações’, e o fazia com tal clareza que granjeou, inclusive, o respeito de quantos tinham sensibilidade e convicções diferentes da sua. Recentemente, muitos que, no passado, tiveram posições diferentes das dele, enfatizavam justamente a sua integridade e clareza, bem como a importância de ter um interlocutor como ele” (…) Em tempos de narcisismo protagonista e de exibição de si, é uma riqueza que ajuda a ultrapassar as aparências e procurar a profundidade interior em cada encontro e no sensibilíssimo relacionamento das pessoas”.
* Créditos da tradução ao leitor PW. Imagens: Messa in Latino.
IHU – A reforma da Cúria vaticana que o Papa Francisco está implementando é realizada em parte sob a luz do sol e em parte na sombra. Entre os procedimentos tomados recentemente na sombra, há dois emblemáticos.
A nota é de Sandro Magister, publicada no seu blog Settimo Cielo, 11-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sobre o primeiro, quem levantou o véu foi o vaticanista Marco Tosatti, no dia 26 de dezembro, quando deu a notícia da ordem dada pelo papa a um chefe de dicastério de demitir imediatamente três dos seus oficiais, ordem dada sem explicações e sem aceitar objeções.
Hoje, sabe-se que o dicastério em questão não é de segunda categoria, é a Congregação para a Doutrina da Fé. E os três demitidos gozavam da plena apreciação do seu prefeito, o cardeal Gerhard L. Müller, por sua vez objeto de repetidos atos de humilhação, em público, por parte do papa.
Mas quem é, dos três depostos, o oficial que Francisco em pessoa – como relatado por Tosatti – repreendeu duramente por telefone por ter expressado críticas contra ele, que chegaram aos ouvidos do papa por obra de um delator?
É o sacerdote Christophe J. Kruijen, 46 anos, holandês, em serviço na Congregação para a Doutrina da Fé desde 2009, teólogo de reconhecido valor, premiado em 2010 pela Embaixada de França junto à Santa Sé com o prestigiado Prix Henri De Lubac, conferido a ele por unanimidade por um júri que incluía os cardeais Georges Cottier, Albert Vanhoye e Paul Poupard, pela sua tese teológica intitulada “Salvação universal ou duplo êxito do juízo: esperar por todos? Contribuição ao estudo crítico de uma opinião teológica contemporânea relativa à realização da condenação”, defendida na Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino, sob a orientação do teólogo dominicano Charles Morerod, depois reitor da mesma universidade e hoje bispo de Lausanne, Genebra e Friburgo.
Os “novíssimos”, isto é, a morte, o juízo, o inferno, o paraíso, são o assunto preferido dos estudos de Kruijen. Mas dele também se aprecia um excelente ensaio sobre a filósofa judia e, depois, monja carmelita Edith Stein, morta em Auschwitz em 1942 e proclamada santa em 1998: “Bénie par la Croix. L’expiation dans l’oeuvre et la vie d’Edith Stein”.
Nos escritos e nos discursos públicos do Mons. Kruijen não há uma única palavra de crítica a Francisco. Mas bastou uma delação arrancada de uma conversa privada dele para fazê-lo cair em desgraça com o papa, que fez o machado cair.
Também disso é feita a reforma da Cúria, sob as ordens e com o estilo de Jorge Mario Bergoglio.
O segundo procedimento implementado na sombra diz respeito à Congregação para o Culto Divino, da qual é prefeito o cardeal Robert Sarah, ele também objeto de repetidas humilhações públicas por parte do papa e já condenado a presidir os escritórios e os homens que remam contra ele.
Dirigida pelo secretário da congregação, o arcebispo inglês Arthur Roche, foi instituída, por vontade de Francisco, dentro do dicastério, uma comissão cujo objetivo não é a correção das degenerações da reforma litúrgica pós-conciliar – ou seja, aquela “reforma da reforma” que é o sonho do cardeal Sarah –, mas precisamente o contrário: a demolição de um dos muros de resistência aos excessos dos liturgistas pós-conciliares, a instrução Liturgiam authenticam, emitida em 2001, que fixa os critérios para a tradução dos textos litúrgicos do latim às línguas modernas.
Com Bento XVI, esses critérios foram ainda mais reforçados, em particular pela vontade daquele papa de manter firme o “pro multis” do Evangelho e do missal latino nas palavras da consagração do sangue de Cristo, contra o “por todos” de muitas traduções correntes.
Mas Francisco deixou logo claro que isso o deixava indiferente. E agora, com a instituição dessa comissão, ele vai ao encontro das ideias de modernização da linguagem litúrgica, defendidas, por exemplo, pelo liturgista Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo e muito apreciado na Casa Santa Marta:
Há quem tema que, depois da demolição da Liturgiam authenticam, o próximo objetivo dessa ou de outra comissão seja a correção do Summorum pontificum, o documento com que Bento XVI liberou a celebração da missa no rito antigo.
Basílica de São Pedro, sábado, 24 de outubro de 2015: Dom Juan Rodolfo Laise, OFM, bispo emérito de San Luis, Argentina, celebra Missa Pontifical no Altar da Cátedra de São Pedro, por ocasião da 4ª peregrinação Summorum Pontificum.
O idoso bispo, no alto de seus 89 anos, é talvez o mais antigo combatente público da Comunhão na Mão no episcopado, depois da introdução da prática por autorização do Papa Paulo VI em 1969; a este respeito, Sua Excelência publicou um livro na década de 90 (lançado em italiano, com prefácio de Dom Athanasius Schneider, por ocasião da peregrinação) e, enquanto bispo ativo, proibiu a prática em sua diocese.
A “lex orandi” está sempre ligada à “lex credendi”. Dependendo do modo em que os homens rezem, bem ou mal, assim também acreditarão, bem ou mal, e se comportarão, bem ou mal. A santa liturgia é, em absoluto, o primeiro acto da nova evangelização. Se não adorarmos a Deus em espírito e verdade, se não celebrarmos a liturgia com a maior fé possível, especialmente nessa acção divina que se desenrola ao longo da missa, então não poderemos ter a inspiração e a graça necessárias para participar na evangelização. Em suma, na santa liturgia está contida a forma da evangelização, na medida em que aquela é um encontro directo com o mistério da fé que nos cabe levar às almas que Deus traz ao nosso encontro.
Ela consegue, por ela mesma, conduzir ao conhecimento dos mistérios da fé. Se a santa liturgia for celebrada de uma maneira antropocêntrica, se ela mais não for do que uma simples actividade social, não terá qualquer impacto duradouro na vida espiritual. Uma das maneiras de conduzir os homens na direcção da fé consiste em restaurar a dignidade da liturgia. Celebrar uma missa com veneração é algo que sempre atraiu os homens para o mistério da redenção. É por isso que me parece que a celebração da missa na forma extraordinária pode ter um papel muito importante no âmbito da nova evangelização, porque ela acentua a transcendência da santa liturgia. Ela sublinha a realidade da união entre o Céu e a terra que a santa liturgia quer exprimir. A acção de Cristo por meio dos sinais do sacramento, por meio dos sacerdotes, instrumentos do próprio Cristo, torna-se muito evidente na forma extraordinária. Além do mais, ela ajuda‑nos a sermos mais respeitadores no modo de celebrar a forma ordinária.
Todos vemos a necessidade dessa evangelização no mundo de hoje, que vive como se Deus não existisse. É importante que se ligue esta nova evangelização à celebração o mais cuidada possível da liturgia. Em muitas pessoas ateias ou não cristãs com quem me encontrei, pude ver que, ao travarem conhecimento com a missa na forma extraordinária, tinham a experiência de estarem realmente na presença da acção de Deus. E em seguida, esta mesma experiência veio a permitir-lhes acolherem os ensinamentos da religião. Os homens devem conseguir compreender que o sacerdote age na pessoa de Cristo. Devem poder compreender que é o próprio Cristo que desce sobre o altar para renovar o sacrifício da Cruz. Devem poder compreender que têm de unir os seus corações àquele Seu Coração que foi trespassado para os purificar do pecado, e para fazer crescer neles o amor de Deus e o amor pelo próximo. Devemos pois catequizar os homens com as realidades profundas da missa, em particular por meio da forma extraordinária do rito romano.
Palavras do Cardeal Raymond Leo Burke em entrevista a Paix Liturgique
Por Rorate-Caeli | Tradução: Fratres in Unum.com – Grande parte da atenção da mídia ao encontro anual do Papa Francisco com o clero de Roma (realizado ontem, 19 de fevereiro) se concentrou em suas observações sobre os padres casados. De igual e possivelmente mais importância imediata foram suas observações sobre a liturgia, que acabam de ser publicadas pela agência de notícias ZENIT.
O Papa não poderia ter sido mais claro em sua visão da “Reforma da Reforma”. Ele fala da necessidade de uma ars celebrandi mais respeitosa, mas qualquer um que tenha realmente acompanhado os debates litúrgicos dos últimos 20 anos saberá que isso não é a mesma coisa que a “Reforma da Reforma”. Esperamos, sinceramente, que os “costumeiramente suspeitos” na blogosfera e nas redes sociais não ignorem essa conversa completamente nem tentem minimizar esse assunto criando explicações complexas de como o Papa “realmente queria dizer” algo diferente, ou que tudo isso não passa de boataria, uma invenção, ou seja lá o que for. Qualquer coisa que lhes permita manter as cabeças na areia!
O Papa critica a “Reforma da Reforma” de maneira notável e abertamente, mas ele não diz nada negativo a respeito do próprio Summorum Pontificum em si, muito pelo contrário.Todavia, a sua aparente condenação e palavras desdenhosas sobre os seminaristas diocesanos “tradicionalistas” não podem e não devem ser minimizadas como simplesmente fazendo referência ao comportamento imoral de alguns deles – comportamento que também pode ser encontrado, empiricamente com muito mais frequência, entre seminaristas não tradicionalistas. Ao designar especificamente as “liturgias” (“Reforma da Reforma”?) celebradas pelos seminaristas “tradicionalistas”, uma vez ordenados, como a manifestação de seus “desequilíbrios” “morais e psicológicos”, fica claro que o alvo do Papa são os pontos de vista semelhantes aos tradicionais a respeito da sagrada liturgia de muitos jovens padres e seminaristas. Ao mencionar que a Congregação dos Bispos está conduzindo intervenções a este respeito, a mensagem enviada é clara e em bom tom: bispos, aceitem seminaristas com tendências “tradicionalistas” por sua conta e risco. Ao declarar abertamente que os problemas morais e psicológicos “acontecem com frequência” em “ambientes” tradicionalistas, aparentemente desprovido de misericórdia, doravante uma grande tarja poderá ser utilizada para denegrir esses jovens.
Reproduzimos abaixo a passagem relevante do relatório da Zenit, com os nossos destaques:
No entanto, alguns trechos do discurso do Papa foram liberados graças em parte a vários padres que falaram com a imprensa após a reunião. Alguns até mesmo conseguiram gravar as palavras do Papa. Além de várias frases relatadas por algumas agências de notícias italianas nesta manhã, o Pontífice de 78 anos abordou o tema, por exemplo, do “rito tradicional” com o qual Bento XVI concedeu a celebração da Missa. Através do Motu Propio Summorum Pontificum, publicado em 2007, o atual Papa Emérito permitiu a possibilidade de celebrar a Missa segundo os livros litúrgicos editados por João XXIII, em 1962, não obstante a forma “ordinária” de celebração na Igreja Católica continuar sempre aquela estabelecida por Paulo VI em 1970.
O Papa Francisco explicou que esse gesto por parte de seu antecessor, “um homem de comunhão”, foi concebido para oferecer “uma mão corajosa aos lefebvrianos e tradicionalistas”, bem como àqueles que desejavam celebrar a Missa de acordo com os ritos antigos. A chamada Missa “tridentina” – disse o Papa – é uma “forma extraordinária do Rito Romano”, aprovado após o Concílio Vaticano II. Assim, ele não é considerado um rito distinto, mas sim uma “forma diferente do mesmo rito”. (sic)
Entretanto, o Papa observou que há padres e bispos que falam de uma “reforma da reforma.” Alguns deles são “santos” e falam “de boa fé.” Mas isso “é um equívoco”, disse o Santo Padre. Então, ele mencionou o caso de alguns bispos que aceitaram seminaristas “tradicionalistas” que foram expulsos de outras dioceses, sem averiguar informações sobre eles, porque “eles se apresentavam muito bem, eram muito devotos.” Então, eles foram ordenados; porém, mais tarde ficou comprovado que eles tinham “problemas psicológicos e morais”.
Esse não é o costume, mas “muitas vezes isso acontece” nesses ambientes, destacou o Papa, e ordenar esse tipo de seminaristas é como “hipotecar a Igreja.” O problema subjacente é que alguns bispos às vezes ficam sobrecarregados com “a necessidade de novos sacerdotes na diocese.” Portanto, não é feito um discernimento suficiente entre os candidatos, entre os quais alguns podem esconder certos “desequilíbrios” que então se manifestam nas liturgias. Na verdade, a Congregação dos Bispos – continuou o pontífice – teve que intervir com três bispos em três desses casos, embora eles não tenham ocorrido na Itália.
Durante o inicio de seu discurso, Francisco falou sobre homilética e a ars celebrandi, encorajando os padres a não cair na tentação de querer ser uma “estrela” no púlpito, talvez até mesmo falando de uma “maneira sofisticada” ou “com excesso de gestos.”
Todavia, os padres também não deveriam ser “chatos” ao ponto das pessoas “darem uma saidinha para fumar um cigarro lá fora” durante a homilia.
(Fonte: Pope Holds Two Hour Meeting with Roman Clergy)
Roma, 1º de novembro de 2014, Peregrinação Summorum Pontificum. Um pequeno coroinha beija o anel de Sua Eminência Reverendíssima Raymond Leo Cardeal Burke.
Obrigado, Eminência, por seu corajoso trabalho em defesa da Fé Católica — assine um manifesto de agradecimento pelo trabalho do Cardeal Burke clicando aqui.
São as palavras do Papa emérito Bento XVI aos participantes da Peregrinação Summorum Pontificum, concluída ontem, em Roma, festa de Cristo Rei no calendário tradicional. Convidado para estar presente na Santa Missa Pontifical celebrada na Basílica de São Pedro pelo eminentíssimo Cardeal Raymond Leo Burke, Bento XVI respondeu aos organizadores por carta:
Benedictus XVI
Papa emeritus
Città del Vaticano
10-10-2014
Ilustríssimo Delegado-General,
Finalmente encontrei um tempo para agradecer-lhe pela sua carta do último dia 21 de agosto. Estou muito contente que o Usus antiquus agora viva em plena paz dentro da Igreja, também entre os jovens, apoiado e celebrado por grandes cardeais.
Estarei espiritualmente com vocês. Minha condição de “monge enclausurado” não me permite uma presença que também é exterior. Deixo o meu claustro somente em casos particulares, [quando] pessoalmente convidado pelo Papa.
Em comunhão de oração e amizade.
No Senhor,
Bento XVI
Não deixa de ser significativa, como que um aparente ato de reconhecimento em quase desagravo, a menção a “grandes cardeais” que hoje celebram a Missa Tradicional. Desgraçacadamente, eles têm sido as maiores vítimas do pontificado bergogliano. Burke, que nas últimas semanas despontou como a grande liderança da “ala conservadora”, realmente, parece dar adeus a Roma, e recebeu também o apoio do ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal William Levada, que declarou ter ido à Missa em São Pedro “em amizade ao Cardeal Burke”.
Autoridade Litúrgica Suprema, em texto inovador, diz:– Summorum Pontificum prevê condição de igualdade para ambas as Formas
– As condições para a participação na Missa Tradicional são as mesmas da Missa nova
– e muito mais
Por Rorate-Caeli | Tradução: Teresa Maria Freixinho – Fratres in Unum.com: Em 25 de julho de 2013, festa do Santo Padroeiro da Espanha, São Tiago o Grande, o Cardeal Cañizares Llovera, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, assinou o prefácio de uma obra notável, a tese de doutorado apresentada por seu confrade espanhol, o Padre Alberto Soria Jiménez, O.S.B., dedicada a uma profunda consideração canônica da natureza jurídica do motu proprioSummorum Pontificum, suas disposições relativas às formas e usos do Rito Romano, e a história que levou a ele.
Santa Cruz del Valle de los Caidos
O padre Soria é um monge da abadia de Santa Cruz do Vale dos Caídos (Santa Cruz del Valle de los Caídos), uma fundação de Solesmes perto da capital espanhola, e sua tese foi defendida e aprovada na Faculdade de Direito Canônico da Universidade de San Dámaso, a casa principal para a formação de sacerdotes e teólogos que pertence à Arquidiocese de Madri, em 29 de maio de 2013. A tese foi publicada há poucos dias pela editora espanhola “Ediciones Cristiandad” sob o título “Los principios de interpretación del motu proprio Summorum Pontificum”, razão pela qual só agora o texto do Cardeal se tornou disponível.
O prefácio do Cardeal Cañizares faz uma longa apresentação do livro e obviamente inclui muitas referências à própria obra – mas o que o torna particularmente especial é a profundidade da avaliação do Cardeal sobre o motu proprio e sua defesa (que sempre foi defendida por nós que apreciamos profundamente a natureza de Summorum Pontificum) de que aquilo que o motu proprio estabeleceu em lei não foi nada menos do que a igualdade jurídica de ambas as formas do Rito Romano. Trata-se de um texto inovador, e abaixo traduzimos os trechos mais importantes do original em espanhol.
* * *
PREFÁCIO DO CARDEAL CAÑIZARES À TESE DE DOUTORADO DO PADRE ALBERTO SORIA JIMÉNEZ, O.S.B.
Cardeal Cañizares Llovera
Estamos diante de um trabalho que aborda, em termos científicos, um tema que nos últimos anos tem sido objeto de controvérsias acirradas. Todavia, desde o início duas características de sua obra devem ser levadas em consideração: seu caráter acadêmico e a pertença do autor a uma comunidade fiel aos grandes princípios da liturgia, mas na qual a forma extraordinária do Rito Romano não é celebrada. Isso lhe permitiu observar a situação “de fora”, tornando possível a grande objetividade refletida em sua pesquisa.
…
A concepção, claramente presente tanto no motu proprio como nos documentos relacionados, de que a liturgia herdada é uma riqueza a ser preservada deve ser entendida no espírito do movimento litúrgico na linha de Romano Guardini, a qual Bento XVI deve tanto de sua relação pessoal com a liturgia desde sua juventude. A história detalhada e documentada do processo, desde seu início nos anos 70 até os dias de hoje, que o autor dessa obra nos apresenta, mostra como essa legislação não foi um resultado momentâneo de pressão, nem uma reflexão da opinião pessoal e isolada do Papa, mas que outras pessoas haviam desejado por muito tempo uma solução semelhante. Esses critérios do jovem padre Joseph Ratzinger foram consolidados e purificados ao longo dos anos, e foram assumidos por João Paulo II, que havia considerado a possibilidade de oferecer uma legislação apropriada.
O clima entre os cardeais designados para refletir sobre esse tema era favorável [Nota do Rorate: referência à comissão de 1986 – cf a nossa postagem de 2007 sobre a revelação feita pelo Cardeal Castrillón Hoyos]. A comissão cardinalícia constituída por João Paulo II, na qual a influência do Cardeal Ratzinger era inegável, havia proposto, “eliminar a impressão de que cada missal é o produto temporal de um época histórica,” e havia afirmado que, “as normas litúrgicas, não sendo verdadeira e propriamente ‘leis,’ não podem ser ab-rogadas, mas sub-rogadas: as precedentes nas subsequentes.” A demonstração muito relevante, e que está presente nesta investigação, é que a atitude de Bento XVI não é tanto uma novidade ou mudança de direção, mas sim uma realização do que João Paulo II já havia empreendido — com iniciativas, como, por exemplo, a consulta da comissão cardinalícia, o motu proprio Ecclesia Dei e a criação da Comissão Pontifícia de mesmo nome, a missa do Cardeal Castrillón Hoyos em Santa Maria Maggiore, em 2003, ou as declarações do papa à Congregação para o Culto Divino naquele mesmo ano.
A história do processo revela que, desde o início, o desejo de preservar a forma tradicional da missa não se limitava aos integristas, mas que pessoas do mundo da cultura ou escritores, como, por exemplo, Agatha Christie e Jorge Luis Borges, assinaram uma carta solicitando a sua preservação, e que São Josemaría Escrivá fez uso de um indulto pessoal concedido espontaneamente pelo próprio Arcebispo Bugnini. Deve-se observar também a preocupação de Bento XVI em enfatizar que a Igreja não descarta o seu passado: ao declarar que o Missal de 1962, “nunca foi juridicamente ab-rogado,” ele tornou manifesta a coerência que a Igreja deseja manter. De fato, ela não pode se permitir negligenciar, esquecer ou renunciar aos tesouros e à rica herança da tradição do Rito Romano, porque a herança histórica da liturgia da Igreja não pode ser abandonada, nem tudo pode ser estabelecido ex novo sem a amputação das partes fundamentais da mesma Igreja.
Outro aspecto importante resulta da leitura da narrativa histórica em sua obra: os avanços que ocorreram ao longo desses anos em relação à sensibilidade pastoral por esses fiéis, a maior atenção às suas pessoas e a seu bem-estar espiritual. Na verdade, no princípio, a legislação era [nota do Rorate: “Indulto Agatha Christie”, indultos pessoais, Quattuor abhinc annos, Ecclesia Dei adflicta] muito limitada, levava em conta somente o mundo eclesiástico e praticamente ignorava os fiéis leigos, considerando que a primeira preocupação era disciplinar: controlar a possível desobediência à legislação recém-promulgada. Com o passar do tempo, a situação assumiu um aspecto mais pastoral, a fim de atender às necessidades desses fiéis, o que acaba se refletindo na forte mudança de tom da terminologia que está sendo usada: é assim que o “problema” dos padres e fiéis que permaneceram ligados ao chamado rito tridentino não é mais mencionado, mas sim a “riqueza” que a sua preservação representa.
Dessa forma, o que se criou foi uma situação análoga àquela que havia sido normal por tantos séculos, porque devemos recordar que São Pio V não havia proibido o uso das tradições litúrgicas que tivessem pelo menos 200 anos de idade. Muitas ordens religiosas e dioceses, portanto, preservaram o seu rito próprio; como Arcebispo de Toledo, pude viver essa realidade com o Rito Moçárabe. O motu proprio modificou a situação recente, ao deixar claro que a celebração da forma extraordinária deveria ser normal, eliminando toda restrição [todo condicionamiento] relativa ao número de fiéis interessados, e deixando de fixar outras condições para a participação na referida celebração além daquelas normalmente exigidas para qualquer celebração da missa, o que permitiu acesso amplo a essa herança que, enquanto por lei constitui um patrimônio espiritual de todos os fiéis, é, na verdade, ignorada por grande parte deles. Na verdade, as restrições atuais à celebração na forma extraordinária não diferem daquelas em vigor para qualquer outra celebração, seja qual for o rito. Aqueles que desejam ver, na distinção feita pelo motu proprio de cum e sine populo, uma restrição à forma extraordinária, esquecem que, com o missal promulgado por Paulo VI, a celebração cum populo sem autorização e anuência do pároco ou reitor da igreja também não é permitida.
Por outro lado, a possibilidade, expressamente contemplada no motu proprio, de que na celebração sine populo a presença espontânea de fiéis seja admitida sem obstáculos (uma expressão que havia causado mais do que uma observação irônica por parte dos críticos do documento) simplesmente possibilitou o fim das circunstâncias estranhas pelas quais, embora celebrada por um sacerdote em situação canônica completamente regular, esta missa permanecia fechada à participação dos fiéis simplesmente por causa da forma ritual utilizada, uma forma que por outro lado era plenamente reconhecida pela Igreja. A situação dos anos 70 — em que os sacerdotes que não podiam adotar o novo missal por motivos de saúde, idade, etc, foram condenados a nunca mais celebrar a Eucaristia com a comunidade, por menor que fosse — também foi evitada, o que seria visto, de acordo com a sensibilidade atual, como discriminatória. Por outro lado, a restrição deliberada da missa cum populo, limitando na prática a celebração da forma extraordinária sine populo, seria uma contradição às palavras e intenções da constituição conciliar: “Sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e activa participação dos fiéis, inculque-se que esta deve preferir-se, na medida do possível, à celebração individual e como que privada” (Sacrosanctum Concilium, 27).
…
É por essa razão que absolutamente não tem cabimento declarar que as prescrições do Summorum Pontificum deveriam ser consideradas como um “ataque” contra o concílio; uma afirmação desse tipo demonstra uma grande ignorância do próprio concílio, porque o fato de oferecer a todos os fiéis a chance de conhecer e apreciar a multiplicidade de tesouros da liturgia da Igreja é precisamente o que esta grande assembleia desejava ao declarar: “O sagrado Concílio, guarda fiel da tradição, declara que a santa mãe Igreja considera iguais em direito e honra todos os ritos legitimamente reconhecidos, quer que se mantenham e sejam por todos os meios promovidos” (Sacrosanctum Concilium, 4)
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Outro aspecto para o qual essa obra que apresentamos chama a atenção, e que é imperativo que nunca se perca de vista, é a repercussão negativa que esses debates intra-eclesiais podem ter no campo do ecumenismo. Dentre a controvérsia, sempre se esquece que as críticas feitas contra o rito recebido da Tradição Romana também se aplicam a outras tradições, antes de tudo aos ortodoxos: quase todos os aspectos litúrgicos que aqueles que tem se oposto à preservação do missal antigo atacam fortemente são precisamente os aspectos que tínhamos em comum com a Tradição Oriental! Um sinal que confirma isso, por outro lado, são as expressões entusiasticamente positivas que chegaram do mundo ortodoxo com a publicação do motu proprio. Dessa maneira, esse documento torna-se um aspecto chave para a “credibilidade” do ecumenismo porque, de acordo com a expressão do presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Cardeal Kurt Koch, “na verdade, ele promove, se assim o pudermos chamar, um ‘ecumenismo intra-católico’. Consequentemente, poderíamos dizer que a premissa ut unum sint pressupõe o ut unum maneant, de modo que, como o referido Cardeal escreve, “se o ecumenismo intra-católico falhou, a controvérsia católica sobre a liturgia também se estenderia ao ecumenismo.”
Bento XVI demonstrou, com a sua legislação, o seu amor paternal e compreensão por aqueles que são especialmente ligados à tradição litúrgica romana e que se arriscaram a se tornar, de maneira permanente, eclesialmente marginalizados; é dessa maneira que, falando sobre o assunto, ele recordou claramente que, “ninguém é demais na Igreja,” demonstrando a sensibilidade que antecipou a preocupação do atual Papa Francisco pelas “periferias existenciais.” Todos esses fatos indubitavelmente apresentam um forte sinal para os irmãos separados.
Mas o motu proprio também produziu um fenômeno que para muitos é assustador e constitui um “sinal verdadeiro dos tempos”: o interesse que a forma extraordinária do Rito Romano suscita, em particular dentre os jovens que nunca a experimentaram como uma forma ordinária e que manifestam sede por “linguagens” que não são “mais as mesmas” e que nos impelem em direção a horizontes novos e, para muitos pastores, imprevistos. A abertura da riqueza litúrgica da Igreja a todos os fiéis tornou possível a descoberta de todos os tesouros deste patrimônio por aqueles que ainda os ignoravam, os quais sentem-se comovidos com essa forma litúrgica, mais do que nunca, numerosas vocações sacerdotais e religiosas no mundo todo, dispostas a dar suas vidas para o serviço da evangelização. Isso se refletiu de maneira concreta na peregrinação a Roma em novembro do ano passado [2012], em gratidão pelos cinco anos do motu proprio, que reuniu peregrinos de todo o mundo sob o sugestivo motto “Una cum Papa nostro” e que era, devido a sua grande exibição, sua grande participação, e, acima de tudo, devido ao espírito que inspirou seus participantes, uma confirmação mensurável de como esta legislação estava correta, o resultado de tantas décadas de amadurecimento.
A impressão mais forte deixada após a leitura desta obra é que a estrutura jurídica fundada pelo motu proprio não está fadada a ser uma resposta a um problema delimitado no tempo, mas está respaldada em princípios teológicos e litúrgicos permanentes, criando, assim, uma situação jurídica sólida e bem definida que torna a questão independente tanto das correntes de opinião como das decisões arbitrárias. Dessa maneira, enquanto para uns e outros o problema e o debate durante anos girou acerca de uma decisão sobre uma matéria que, no final das contas, era de natureza histórica, Bento XVI, acima do debate “teórico”, tentou enfatizar a necessidade de alcançar coerência teológica e, acima de tudo, obter um importante resultado pastoral.
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Na verdade, se a partir de ambas as formas de celebração surgir claramente a unidade da fé e a singularidade do Mistério, isso somente pode ser motivo de profunda alegria e gratidão. Portanto, quanto melhor for vivida a liturgia, cada um em sua própria forma, com abertura de coração que supera exclusões e preconceitos, então será possível viver aquela “unidade na fé, liberdade nos ritos, caridade em tudo.”
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Confiamos à Mãe de Deus o tempo da graça em que estamos vivendo. Ela irá nos conduzir ao Filho, em quem podemos confiar. Será Ele que irá nos conduzir, inclusive em tempos turbulentos, para que possamos redescobrir o caminho da fé e assim iluminar cada vez mais claramente a alegria e o entusiasmo renovado do encontro com Cristo. O presente livro do Pe. Alberto Soria, O.S.B., sem dúvida contribuirá para essa finalidade, uma grande obra de pesquisa que prestará um importante serviço à reconciliação litúrgica e, consequentemente, à nova evangelização, e para uma unidade que cresce a cada dia, real e eficaz, no seio da Igreja. Mais uma vez meus parabéns e minha grande gratidão ao autor por esta obra magnífica, um grande serviço que, ademais, é tão apropriado a um filho de São Bento.
Antonio Cañizares Llovera
Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos