O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (I): Apresentação.

Lançado em 2011 na Itália, a prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, chega agora ao público lusófono. A Editora Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns excertos deste trabalho que é um verdadeiro marco na historiografia do Concílio Vaticano II.

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Um Concílio “pastoral” ou “doutrinal”?

A fórmula do Concílio à luz da Tradição — ou, se se preferir, da “hermenêutica da continuidade” — propõe indubitavelmente aos fiéis uma indicação autorizada, com vista ao esclarecimento do problema da adequada recepção dos textos conciliares; mas deixa em aberto um problema de fundo: dado que a correcta interpretação é a da continuidade, resta explicar porque foi que, na sequência do Concílio Vaticano II, aconteceu aquilo que nunca tinha acontecido depois de qualquer dos concílios da história, a saber, o facto de duas (ou mais) hermenêuticas contrárias se terem confrontado e terem, para usar a expressão do Papa, lutado entre si. Assim, pois, se a época pós-conciliar deve ser interpretada como uma época de “crise”, podemos perguntar-nos se uma errada recepção dos textos terá uma incidência tal sobre os factos históricos, que constitua razão suficiente e proporcionada para a vastidão e a profundidade da mesma crise.

Por outro lado, a existência de uma pluralidade de hermenêuticas atesta a presença de certa ambiguidade ou ambivalência nos documentos. Quando se torna necessário recorrer a um critério hermenêutico exterior ao documento para interpretar o próprio documento, é evidente que este não é suficientemente claro, que precisa de ser interpretado e que, na medida em que é susceptível de interpretação, pode ser objecto de crítica, histórica e teológica.

O desenvolvimento mais lógico deste princípio hermenêutico é o que foi proposto por um eminente especialista em eclesiologia, Mons. Brunero Gherardini. De acordo com este teólogo romano, o Vaticano II, enquanto concílio que se auto-qualificou como “pastoral”, esteve privado de um carácter doutrinal “definitório”; contudo, do facto de o Vaticano II não poder ter a pretensão de ser qualificado como dogmático, sendo antes caracterizado pelo seu carácter pastoral, não se pode naturalmente deduzir que esteja privado de doutrina própria. O Concílio Vaticano II teve indubitavelmente ensinamentos específicos, que não estão privados de autoridade, mas, como escreve Gherardini, “as suas doutrinas, quando não reconduzíveis a definições anteriores, não são, nem infalíveis nem irreformáveis, e, portanto, também não são vinculativas; quem as negar não será, por esse facto, formalmente herege. Assim, pois, quem as impusesse como infalíveis e irreformáveis iria contra o próprio Concílio” .

O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, Roberto de Mattei, Ed. Caminhos Romanos, 2012, pp. 14-15

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Roberto de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.

Onde encontrar:  Livraria Petrus – R$ 89,00.

O “debate crítico” que a hierarquia não quer realizar. Recensão à obra “Concilio Vaticano II, il discorso mancato” de Monsenhor Brunero Gherardini.

Por Paolo Pasqualucci | Tradução: Gederson Falcometa

No presente ensaio, o Autor explica de modo claro e exaustivo, evitando as polêmicas inúteis e limitando-se a pontualizar sobriamente as inexatidões de certas críticas superficiais, os motivos pelos quais acredita ser seu dever continuar o “debate crítico” por ele começado sobre o Concílio Vaticano II (1962-1965) a partir da sua monografia de 2009 (Concílio Ecumênico Vaticano II. Um debate a ser feito, Casa Mariana Ed., Frigento, 2009), já traduzida nas principais línguas europeias (Ndt.: Também em português aqui); seguida em 2010 por uma outra não menos importante sobre o conceito de Tradição da Igreja (“Quod et tradidi vobis”. A tradição, vida e juventude da Igreja, Collana ‘Divinitas’ n.4, Cidade do Vaticano, 2010). A proposta do “discurso a ser feito”, destinado em primeiro lugar ao vértice da Igreja, embora destacando amplo interesse dentro e fora do âmbito eclesial, encontrou até agora uma difundida quanto preconcebida hostilidade por parte do fronte midiático coligado à oficialidade vaticana. O debate “a ser feito” não foi recebido, está “ausente”. Trata-se, então, de reiterar os temas do “debate [até agora] a ser feito”. Temas que contêm o significado a atribuir ao Vaticano II, a começar pelo seu famoso “espírito”.

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Orações por Monsenhor Brunero Gherardini.

Pedimos a nossos leitores que rezem pela saúde de Monsenhor Brunero Gherardini, cujo trabalho teológico divulgamos frequentemente em nosso blog.

Com o frio inesperado para a época, o velho professor da Lateranense, de 87 anos, foi acometido por uma forte bronquite ao retornar das férias para Roma. Ainda se recuperando, sofreu uma queda e quebrou o braço.

Que o Beato Pio IX, cujo postulador da causa de canonização até o fim do ano passado era justamente Gherardini, interceda por este grande teólogo da Santa Igreja.

Índole pastoral do Vaticano II: uma avaliação.

Apresentamos a tradução da preleção de Monsenhor Brunero Gherardini no Congresso sobre o Vaticano II realizado em Roma, em dezembro de 2010, pelos Franciscanos da Imaculada.

Por Monsenhor Brunero Gherardini

Fratres in Unum.com | Com a generosa contribuição de Gederson Falcometa – Era uma vez a ave Fênix. Todo mundo falava dela, mas nunca ninguém a havia visto. E hoje há uma versão sua aggiornata, da qual todos também falam e ninguém sabe dizer do que se trata: chama-se Pastoral.

1 – A Palavra – Sejamos bem claros: a palavra em si não é um problema, sendo evidente a sua derivação de pascere: verbo que vem do latim pabulum (pasto, alimento), da qual surge uma família não muito numerosa, mas bem identificável em seus componentes: pascere, precisamente, no sentido de conduzir à pastagem e dar de comer; pastum, do qual uma clara tradução é o italiano pasto [alimento, comida], mas que também pode se traduzir com cibo [pasto, comida] ; pastor, indicando que conduz ao pabulum, dá alimento e mantém rebanhos e manadas. Pastor se torna, por sua vez, o pai de pastoricia ars, em italiano pastorizia, ou a arte de quem cria animais; de pastura, com o significado de pasto aberto, e de pastu — ou pastoral, já presente no latim tardio para descrever o “vestuário, os alimentos, os costumes, a linguagem do pastor. Não descende, todavia, a pasteurização, ou procedimento de conservação de elementos líquidos, como o leite, porque a palavra vem do francês pastoriser, derivando por sua vez de L. Pasteur (1822-1895), seu inventor.

[…] [O termo] Pastoral entrou cedo no jargão eclesiástico, para qualificar três das cartas paulinas, ou a atividade dos evangelistas e de seu ensino, ou as insígnias episcopais, como o anel, o báculo, as cartas. Mais recente, mas não moderno, é o uso de pastoral em referência à teologia e com abordagem não-dogmática; originalmente, de fato, foi anti-dogmático. Aos que desconhecem o jargão eclesiástico, no entanto, um homem da média cultura muito facilmente associará pastoral à mocinha da poesia arcádica, à composição poética de origem provençal e de conteúdo amoroso, à écloga virgiliana, à tragédia “Aminta” de T. Tasso e à música de caráter simples e terno, com específica tipificação na “sexta” de Beethoven.

2 – O termo no Vaticano II – Depois de um espectro semântico de tal amplitude, a alusão à desconhecida e invisível ave fênix poderia parecer insustentável por evidente contradição. A não ser que o condicional “poderia” esteja neutralizado pela ausência, nos documentos conciliares, de uma razão suficiente que o justifique. Digo “razão suficiente”, porque se dissesse que nos documentos conciliares está ausente a “palavra”, daria demonstração de uma ignorância crassa e imperdoável do Vaticano II. A “palavra” não só existe, mas é abundante; na realidade, caracteriza o Vaticano II em sua especificidade de Concílio ecumênico diante dos vinte Concílios que o precedem. O Vaticano II fala, de fato, de ação pastoral em gênero, e mais diretamente de atividades pastorais;  identifica várias necessidades pastorais e, diante delas, pede a instituição e a recíproca colaboração de vários subsídios pastorais, não deixando de assinalar entre estes o planejamento e organização de “cursos, congressos, centros com bibliotecas conexas destinadas aos estudos pastorais, a serem confiados a pessoas altamente capazes”. A fim de expandir no mais amplo raio possível a sensibilidade pastoral e os conhecimentos conveninentes, o Vaticano II obriga os bispos a “estudar isoladamente ou em nível interdiocesano o melhor sistema” que assegure aos presbíteros, “sobretudo alguns anos após sua ordenação”, o adequado aprofundamento dos métodos pastorais. Dado que uma forte contribuição para a ação apostólica da Igreja pode vir também dos leigos, o Concílio convida aos bispos a escolher “sacerdotes dotados das qualidades necessárias e convenientemente formados”, que, por sua vez, dêem uma formação adequada aos leigos para então confiar suas especiais tarefas de ação pastoral. E porque “a unidade de propósito entre padres e Bispo torna sempre mais fecunda sua atividade pastoral”, encoraja-se uma periódica reunião do clero, estendida também a outros membros do organismo eclesial, “para tratar de questões pastorais”.

Às Conferências Episcopais de cada nação, recomenda-se calorosamente a atenção e promoção da formação pastoral do clero mediante “institutos pastorais em colaboração com paróquias oportunamente escolhidas, congressos periódicos, exercícios apropriados”. Não se podia evitar um chamado à “competente autoridade eclesiástica territorial” para o estabelecimento de um instituto “de pastoral litúrgica” que se valha de “especialistas em liturgia, música, arte sacra e pastoral”.

Estes dados demostram que a ave fênix está em casa no Vaticano II, mas o Vaticano II não disse o que é ou quem ela é.

Aquele que “governa e apascenta o povo de Deus” é, ademais, instigado a encarnar o Bom Pastor “que dá a vida por suas ovelhas (Jo 10:11)” e a seguir “o exemplo daqueles padres que também em nosso tempo não hesitaram a sacrificar-se a si mesmos pelo próprio rebanho”. Em suma, ao exortar o clero a se fazer dia após dia instrumento de um serviço sempre mais idôneo para o povo de Deus, o Vaticano II declara explicitamente que a sua finalidade pastoral se compromete com “uma renovação interna da Igreja, a difusão do evangelho em todo o mundo e no estabelecimento de uma relação dialógica com este”. Uma tal finalidade corresponde, evidentemente, a uma ideia de fundo, a uma noção de pastoral ao menos rudimentar e tão logo ofuscada: relação dialógica com o mundo da parte de uma Igreja renovada em seus métodos de evangelização e de apostolado. Aqui, um pouco vagamente, a ave fênix começa a se fazer conhecida.

Tal e tamanha insistência não surpreende. É, antes, um sinal de docilidade e fidelidade às linhas mestras que o Papa Roncalli, em 11 de outubro de 1962, apresentou aos Padres abrindo oficialmente a grande Assembléia conciliar: ao colocar a doutrina em primeiro lugar nos trabalhos conciliares, diversificou sua metodologia com relação ao passado. Antes, a Igreja não evitava a condenação, severa e firme. Hoje, à severidade prefere o remédio da misericórdia. Para o Papa Roncalli, então, especialmente diante de uma humanidade presa a tantas dificuldades, a Igreja deveria mostrar o rosto bom, benévolo, paciente da Mãe, fomentar a promoção humana expandindo os espaços da caridade, difundir a serenidade, paz, harmonia e amor. Desta forma, as características da ave fênix, embora permanencendo ainda indefinidas, se confundem com as da mãe paciente e boa.

Confirmando a orientação de Roncalli, o Papa Paulo VI, na homilia de 07 de dezembro de 1965, por ocasião da nona sessão do Concílio, declarou que a Igreja traz em seu coração, junto com o reino dos céus, o homem e o mundo, e mais, está toda a serviço do homem e do mundo, sendo íntima a ligação entre a religião católica e a vida humana, a ponto que a religião católica pode se dizer a própria vida do homem e do gênero humano graças à sua sublimedoutrina, ao cuidado materno com que acompanha o homem ao seu fim último e aos meios que lhes dá para que possam alcançá-lo. Enésima declaração de propósitos pastorais que, mantendo-se dentro dos limites do genérico, ainda não revelam o rosto ou as feições da ave fênix.

No entanto, não há nenhuma dúvida e nenhuma discussão sobre a pastoralidade do Concílio. O Vaticano II não foi, apenas porque não deveria sê-lo, um Concílio dogmático e, considerando tudo, nem mesmo disciplinar. Quis apenas ser pastoral. E mesmo assim, apesar das muitas intervenções internas e externas, o verdadeiro significado de sua declarada pastoralidade ainda está debaixo de um nevoeiro.

3 – Um conceito não definido – Pouco acima, indiquei as facetas da pastoralidade conciliar. A pastoral como adjetivo qualificativo ou como adjetivo substantivado dá, na verdade, dezenas e dezenas de voltas. Nenhuma, porém, para lhes dar, senão a definição, ao menos um indício de explicação. Reconheço que, analisando criticamente as diversas declarações, é possível ter uma vaga idéia; mas, no entanto, não seria uma expressão direta do ensinamento conciliar.

O exemplo mais probatório é dado pela Gaudium et Spes, qualificada como “Constituição Pastoral”, sendo inteiramente um fermento intelectual e proativo em favor do homem, da sua liberdade e dignidade, da sua presença na família, na sociedade, na cultura e no mundo, com o objetivo de conferir à vida privada e pública um sopro e uma dimensão à medida do homem. A união das duas palavras-chaves – Constituição Pastoral – é a mais recente novidade de todo o Vaticano II; o foi para os próprios Padres conciliares que, antes de aprová-la, discutiram várias outras denominações. A única justificativa para a união está na nota que acompanha o incomum documento, definido como “pastoral” seja porque, “baseado em princípios doutrinais, pretende apresentar a atitude da Igreja em relação ao “mundo e aos homens de hoje”, ou porque atitude e princípios doutrinais permeiam um ao outro. Se deveria inferir que a atitude em questão é sempre a aplicação e a tradução prática dos princípios doutrinários. Mas permanece um problema, a descobrir a origem: talvez dos princípios sociológicos, políticos, econômicos, mas, pelo menos diretamente, não dos princípios evangélicos.

A referência ao homem e ao mundo recorda de ambos a finitude original, a condição de criaturas, a temporalidade, o dinamismo, o constante evoluir, sobre o quais paira a espada de Dâmocles de uma sempre possível involução. Isto evidencia suas condições variáveis e contingentes, mas também a problematicidade da aplicação prática desses princípios doutrinais que são em grande parte absolutos irreformáveis.

Também a nota adverte uma tal aporia e a assinala; mas não a resolve. Antes, a complica no exato momento no qual estabelece que “a Constituição deverá ser interpretada segundo as normas gerais da hermenêutica teológica, tendo em conta… as circunstâncias mutáveis intrinsecamente conexas às matérias tratadas”. Na realidade, se a pastoral devesse consistir nesse balé de dizer sim-e-não, uma definição sua seria impossível. Diz-se que ao contingente vai aplicada a indiscutibilidade da doutrina; mas se essa aplicação reduzisse a doutrina à contingência, ou tornasse indiscutível e absoluto o contingente, perverteria um e outro elemento: o sim de mãos dadas com o não. Compreendo porque, já na Aula conciliar, Gaudium et Spes foi o texto mais discutido e mais obstaculizado, para o qual pouco valeu a sua designação a comissões e subcomissões, como também a passagem por bem quatro reformulações: a dificuldade, para chegarmos no limite da presunção, está na afirmação simultânea do sim e do não.

E talvez dependesse desta aporia não resolvida a problemática que ainda acompanha, após cerca de meio século de pós-concílio, todo discurso sobre a pastoral. Na prática, ela serve para legitimar um pouco de tudo e o seu próprio contrário. As duas hermenêuticas conciliares, as quais frequentemente se referiu a análise do Santo Padre, aquela que faz do Vaticano II o início de um novo modo de ser Igreja e aquela que, pelo contrário, o conecta à Tradição eclesial vivente, são ambas legitimadas pela aporia não resolvida. Nas duas hermenêuticas, na realidade, o Vaticano II:

  1. assume, no âmbito doutrinário, a aparência e o valor de um Concílio dogmático: uma [corrente] faz dele um super Concílio, enquanto a outra faz dele a síntese doutrinal de todos os concílios precedentes;
  2. no âmbito pastoral, ele surge como um recipiente sem diferenciação pela sua própria qualidade de pastoral, uma espécie de “franco atirador” ao qual, por razões pastorais, é concedido dizer simultaneamente o sim e o não.

Se impõe, sobre este ponto, um juízo sereno e objetivo sobre a qualidade geral do Vaticano II, que apressada e ingenuamente foi encerrado na área pastoral.

4 – Os quatro níveis do Vaticano II – Quem tem familiaridade não só com a Gaudium et Spes, mas com todos os dezesseis documentos conciliares, tem consciência de que a variedade temática e a co-respectiva metodologia colocam o Vaticano II sobre quatro níveis, qualitativamente distintos:

  1. o genérico, do Concílio ecumênico enquanto Concílio ecumênico;
  2. o específico, do âmbito pastoral;
  3. o nível do evocar outros Concílios;
  4. e os das inovações.

No âmbito genérico, o Vaticano II satisfaz todas as condições para ser um autêntico Concílio da Igreja Católica; o 21º da série. Provém dele um magistério conciliar, isto é, supremo e solene. O que, por si mesmo, não depõe pela dogmaticidade e infalibilidade de suas assertivas; antes, nem mesmo a comporta, tendo, de início, afastado-a de seu próprio horizonte.

No âmbito especifico, a qualificação de pastoral lhe justifica os vastíssimos interesses, dos quais não poucos excedem o âmbito da Fé e da teologia: por exemplo, a comunicação social, a tecnologia, o eficientismo da sociedade contemporânea, a política, a paz, a guerra, a vida econômico-social. Mesmo este nível pertence ao ensinamento conciliar e é, então, supremo e solene, mas não pode reivindicar, pela matéria tratada e pelo modo não dogmático de tratá-la, uma validade por si infalível e irreformável.

A evocação de alguns ensinamentos dos Concílios precedentes constituem o terceiro nível. É uma evocação por vezes direta e explícita (LG 1: “praecedentium Conciliorum argumento instans”; LG 18: “Concili Vaticani primi vestigia premens”; DV 1: “Conciliorum Tridentini et Vaticani I inhaerens vestigis”), por vezes indireta e implícita, que recorda a verdade já definida: por exemplo, a natureza da Igreja, a sua estrutura hierárquica, a sucessão apostólica, a jurisdição universal do Papa, a encarnação do Verbo, a redenção, a infalibilidade da Igreja e do magistério eclesiástico, a vida eterna dos bons e a eterna condenação dos maus. Sob este aspecto, o Vaticano II goza de uma incontestável validade dogmática, sem ser por isso um Concílio dogmático, sendo sua uma dogmaticidade de reflexo, própria dos textos conciliares citados.

As inovações constituem o quarto nível. Se olharmos para o espírito que guiou o Concílio, seria possível afirmar que o Vaticano II foi todo ele um quarto nível, animado como era de um espírito radicalmente inovador, mesmo onde buscava o seu enraizamento na Tradição. Algumas inovações são, porém, específicas: a colegialidade dos bispos, o absorvimento da Tradição na Sagrada Escritura, a limitação da inspiração e inerrância bíblica, as estranhas relações com o mundo hebraico e islâmico, o irromper da assim chamada liberdade religiosa. Por fim, é muito claro que, se existe um nível ao qual a qualidade dogmática absolutamente não é reconhecível, é propriamente este das novidades conciliares.

5 – Conclusão – A adesão ao Vaticano II é, pelo acima exposto, qualitativamente distinta. Enquanto todos os quatro descritos níveis exprimem um magistério conciliar, todos os quatro colocam ao individuo e à comunidade cristã-católica o dever de uma adesão que não necessariamente será sempre “de Fé”. Esta só vale para as verdades do terceiro nível e apenas enquanto provêm de outros Concílios, seguramente dogmáticos. Aos outros três níveis, é necessário reservar uma religiosa e respeitosa acolhida, até que qualquer uma de suas assertivas não se choque contra a perene atualidade da Tradição por evidente ruptura com o “eodem sensu eademque sententia” de qualquer variante formal sua. O dissenso neste caso, particularmente quando sereno e fundamentado, não caracteriza nem heresia, nem erro. Quanto ao segundo nível, aquele pastoral, como observei na nota n.19, é necessário pensar que os Padres conciliares não conheceram a hipoteca iluminista paga por eles mesmos com a abertura do Concílio a uma pastoral que, desde o começo, segundo a lógica iluminista da qual dependia, havia expulsado a Deus para substituí-lo pelo homem e por vezes para identificar no homem o próprio Deus. Foi, de fato, a pastoral do século XVIII quem deu as costas para as motivações, as fontes, os conteúdos e o método da teologia dogmática. E para abrir as portas da fortaleza teológica ao primado do natural, do racional, do temporal e do sociológico.

Com isto não digo, absolutamente, que a pastoral do Vaticano II seja a mesma pastoral do século XVIII. Mas seria ingênuo ou desinformado quem, para não afirmar-lhe a identidade, negasse todo o seu parentesco. Também no Vaticano II a matriz da pastoral permaneceu aquela iluminista, embora diversamente expressa e motivada. Coube a Paulo VI retirá-la da areia movediça do iluminismo e, na abertura do segundo período conciliar, transferí-la para uma esfera romântica, para fazer dela “uma ponte para o mundo contemporâneo”, comunicando a ele “a sua vitalidade interior… como fenômeno vivificante e instrumento de salvação do próprio mundo”. A ave fênix tornava-se assim uma ponte, um coeficiente de vida, um instrumento de salvação. Sem perder, porém, o seu parentesco com a matriz iluminista, através da inspiração neomodernista dos seus apoiadores. Não à toa, a partir de uma teologia pastoral assim entendida tem origem a secularização que, mais tarde, triunfará na presente fase pós-conciliar. E se da ignorância dos seus precedentes depende a indecisa noção de pastoralidade, de seu originário parentesco com eles dependeria o absurdo da dogmática de um concílio que se auto-definiu simplesmente pastoral. A ave fênix, dessa forma, revela o seu rosto. Somando tudo isto, teria sido melhor se ela tivesse continuado a escondê-lo.

Brunero Gherardini

“O Vaticano II – Às raízes de um equívoco”. Resenha de Cristina Siccardi ao novo livro de Monsenhor Gherardini.

Por Cristina Siccardi | Corrispondenza Romana

“O Vaticano II ensina realmente e apenas aquilo que foi revelado e transmitido?”. E “o significado objetivo das palavras usadas pelo Concílio Vaticano II corresponde ao do Magistério precedente e, em última análise, ao da divina Revelação?”.

Duas perguntas “de supetão” que são dirigidas por Monsenhor Brunero Gherardini a todos aqueles que terão a sorte de ler o seu livro mais recente, que brilha com clareza linguística e teológica, intitulado O Vaticano II às raízes de um equívoco (Lindau , pp. 410, € 26,00).

Cinquenta anos se passaram (1962-2012) desde a abertura de um Concílio que cada vez mais se torna protagonista de um verdadeiro processo. Finalmente, o tribunal foi aberto, graças, em particular, ao próprio teólogo Gherardini (com seu famoso Concílio Vaticano II, um discurso a ser feito) e ao historiador Roberto de Mattei (com o seu Vaticano II, uma história nunca escrita) para fazer entrar o réu: o Concílio Vaticano II.

Apesar de os conteúdos deste escrupuloso volume serem bastante profundos e complexos, o seu autor, como é próprio de seu estilo “gherardiniano“, torna a análise fresca, vibrante e bem sucedida. Esta obra nasce de uma inspiração polêmica, ou seja, para responder à má fé de alguns estudiosos e jornalistas em relação aos aprofundamentos que o teólogo vem realizando com rigor, há alguns anos. Algumas pinceladas irônicas, aqui e ali, lembram o humor ferino do Beato John Henry Newman, em sua obra-prima Apologia Pro Vita Sua, onde, ele também, como Gherardini, àqueles que o acusavam, respondia com a coragem própria de quem sabe, como Santo Tomás de Aquino, de estar possuído pela verdade.

Gherardini não engrossou as fileiras do comum, ou seja, de todos aqueles que continuam a exaltar o Vaticano II de uma forma apriorística e sem aceitar uma análise do mérito, mas foi ao âmago do problema, observando de perto a mudança radical de curso da Igreja pós-conciliar e identificando a causa dessa mudança nas atas da Assembleia Conciliar. E aqui está o grande ‘equívoco’, “que pouco levaram em consideração”, matriz dos muitos equívocos e dos muito erros que surgiram em cascata:

O antropocentrismo.

O homem moderno, para o qual tende o antropocentrismo conciliar, deste absorve a ideias que subvertem as relações naturais e reveladas entre a criatura e o Criador, torna-se o porta-bandeira e o arauto destas ideias, e por elas resta, por assim dizer, pregado em um estado de inconciliabilidade com as verdades da doutrina e da Tradição”. Estes são os desvios da Nouvelle Théologie e da Teologia da Libertação.

O equívoco antropocêntrico encontra suas raízes, segundo Gherardini, na declaração conciliar sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), na declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs (Nostra Aetate) e no decreto sobre o diálogo ecumênico (Unitatis redintegratio).

O antropocentrismo contaminou toda a cultura moderna e o pensamento majoritário conciliar, e nada, “no modernismo e em sua endemoninhada revivescência neomodernista, é poupado do tesouro de verdades recebidas e transmitidas”, ou seja, a Sagrada Escritura, os dogmas, a Liturgia, a moral. Hoje, aquele verme modernista que corroía por dentro eclodiu vigorosamente, mas a assembleia conciliar já havia testemunhado isso quando foram tratadas temáticas nodais, que se distanciavam, em sua elaboração, da Tradição.

Gherardini, por causa de sua postura diante do Concílio, foi acusado de ser um ‘lefebvriano’, dando-se à palavra, como sempre, uma acepção meramente negativa. Ele, a este respeito disso, afirma que, mesmo não pertencendo à Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, compartilha as linhas de construtiva crítica ao Vaticano II.

Além disso, o autor concentra sua atenção na linguagem conciliar e pós-conciliar, totalmente diferente, no geral, da patrística e da Tradição; dá, também, nome e sobrenome aos protagonistas das modernas filosofias e teologias, porém não as interpreta, mas faz a radiografia das ideias; ideias que envenenaram o espírito da Assembleia Conciliar e, “se a sagrada hierarquia não parar este desvio antropocêntrico, o futuro da Igreja não será mais o da Igreja Una Santa Católica Apostólica em sua gloriosa e universalista configuração romana”.

Excomunhão de Gherardini?

Uma postagem do colunista convidado Côme de Prévigny

Rorate-Caeli | Tradução: Fratres in Unum.com

Mons. Brunero Gherardini no Congresso dos Franciscanos da Imaculada. Na mesma foto (à direita), Dom Luigi Negri, bispo de San Marino.
Mons. Brunero Gherardini no Congresso dos Franciscanos da Imaculada. Na mesma foto (à direita), Dom Luigi Negri, bispo de San Marino.

Dom Bernard Fellay, o Superior Geral da Fraternidade de São Pio X (FSSPX / SSPX), disse em seu sermão de 8 de dezembro que: as propostas romanas estão cada vez mais interessantes, mas em suas formulações permanece um ponto com gosto amargo, que exige antes de mais nada a admissão de que o Vaticano II é compatível com a Tradição da Igreja.

Após as declarações de Sua Excelência suíça, a pressão aumenta, as mentes estão inflamadas. Agora que as sirenes familiares soam novamente o sinal de alerta de cisma definitivo, que o vaticanista Tornielli se deixa tomar pelo sentimento – ao imaginar o que o Arcebispo Lefebvre faria em circunstâncias semelhantes (ao falar que ele acha que ele “diria sim”), as exigências romanas parecem receber, no mesmíssimo coração da Cidade Eterna, um sério golpe. Por 25 anos, a Santa Sé não arredou o pé dos famosos textos conciliares, e, no exato momento em que o Superior Geral da Fraternidade de São Pio X entrega a sua nota ao Vaticano, um dos melhores alunos, dentre os mais fiéis e mais eruditos, se levanta para dizer que as exigências do mestre não resistem a exame.

Monsenhor Gherardini é decano dos teólogos da Universidade de Latrão, uma das instituições romanas mais veneráveis. Por meio século, ele tem formado centenas de bispos e padres, tentando apresentar-lhes o Concílio Vaticano II em continuidade com o magistério da Igreja. Ao final de uma longa e séria carreira, ele faz essa terrível confissão: a tentativa incansável não funciona. Falando do Concílio, ele descreve a sua continuidade com a Tradição como “problemática”: “não porque ele não tivesse declarado tal continuidade, mas sim porque, especialmente, naqueles pontos chave onde era necessário que essa continuidade fosse evidenciada, a declaração continuou sem comprovação.”

Em outras palavras, o teólogo diz que todas as demonstrações que tentam apresentar o Vaticano II em continuação com o magistério da Igreja são aos seus olhos nada mais que argumentos pouco convincentes.

No momento em que um dos teólogos vivos mais notáveis declara ter sérias dúvidas sobre os méritos dos textos conciliares, no momento em que ele pede um “exame crítico” desses textos, como a Santa Sé pode exigir o seu reconhecimento prévio como uma condição indispensável para a regularização da Fraternidade? Como se pode brincar com a esperança de milhares de fiéis ao redor do mundo, fazendo-os crer que a bola está do lado de Écône? A competente congregação [para a Doutrina da Fé] tem toda a capacidade de reconhecer, ao final de minuciosas discussões doutrinais, a catolicidade perfeita da Fraternidade e conceder-lhe a regularização que merece cada trabalho feito fielmente com o seu zelo pelas almas. Enquanto a Sagrada Liturgia e mesmo as verdades mais elementares (a Ressurreição de Cristo, a Presença Real, a universalidade salvífica de Jesus Cristo) são desprezadas por um bom número de bispos que não precisam assinar qualquer condição para serem nomeados e mantidos em exercício, será que esse reconhecimento realmente se revelaria uma aposta de alto risco?

Se afirmar que os textos do Concílio estão desconectados da Tradição torna a Fraternidade digna de ser considerada fora da Igreja, deve-se pensar que Monsenhor Gherardini merece excomunhão por ter ousado afirmar publicamente aquilo que outros nunca terão a coragem de dizer?

Gherardini responde a Ocariz. E o debate sobre o Vaticano II prossegue.

Por Disputationes Theologicae | Tradução: Fratres in Unum.com

Disputationes Theologicae solicitou a Monsenhor Brunero Gherardini uma contribuição sobre a noção de Magistério Autêntico e seus eventuais limites. O ilustre professor emérito da Universidade do Papa, decano da faculdade de teologia, que já interveio nestas colunas para qualificar o ensinamento constituído pelo Concílio Vaticano II, traz agora, com maior amplitude, de maneira ágil e profunda, certas precisões, chamando a atenção para distinções freqüentemente omitidas. Tal recordação está em consonância com o que havia sido observado a respeito da liberdade religiosa durante os anos 70 por Sua Excelência Reverendíssima Dom Antonio de Castro Mayer, à época Ordinário de Campos, na conclusão do estudo teológico sobre a liberdade religiosa enviado ao Papa Paulo VI (que não o condenou): há um caso específico no qual um ensinamento não é vinculante em consciência, embora sendo um ato do Magistério Autêntico:  quando há uma dissonância em relação ao que a Igreja já ensinou longamente.

A Redação

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Igreja-Tradição-Magistério

Por Monsenhor Brunero Gherardini

Começou a grande celebração cinqüentenária. Ainda não se ouve os tambores, mas percebe-se no ar. O cinqüentenário do Vaticano II deixará o caminho aberto ao que se poderá inventar de mais grandioso em matéria de juízos elogiosos. Da sobriedade que havia sido pedida como momento de reflexão e de análise para uma avaliação crítica e mais aprofundada do acontecimento conciliar, não se vê sequer a sombra. Já se atua desenfreadamente dizendo e repetindo o que se diz e repete há cinqüenta anos: o Vaticano II é o ponto culminante da Tradição e a sua própria síntese. Congressos internacionais sobre o maior e mais significante dentre todos os Concílios ecumênicos já estão programados; outros, de maior ou menor alcance, sê-lo-ão durante o período, e as publicações sobre o assunto crescem a cada dia. O Osservatore Romano, sem dúvida, faz a sua parte e insiste, sobretudo, na adesão devida ao Magistério (2/12/2011, p. 6): o Vaticano II é um ato do Magistério, logo… A razão aduzida é a de que qualquer ato do Magistério deve ser recebido como proveniente de pastores que, em razão da sucessão apostólica, falam com o carisma de verdade (DV 8), com a autoridade de Cristo (LG 25), à luz do Espírito Santo (ibid.).

Fora o fato de provar o Magistério do Vaticano II pelo Vaticano II, o que outrora se chamava petitio principia [ndr: “petição de princípio”: demonstrar uma tese partindo do princípio de que ela já é válida], parece evidente que tal maneira de proceder parte da premissa de um Magistério considerado absoluto, sujeito independente de tudo e de todos, exceto da sucessão apostólica e da assistência do Espírito Santo. Ora, se a sucessão apostólica é garantida pelo critério da legitimidade da sagrada ordenação, parece, em contrapartida, mais difícil estabelecer um critério que garanta a intervenção do Espírito Santo nos termos evocados.

Uma coisa, entre outras, está fora de discussão: nada no mundo, receptáculo das coisas criadas, tem o dom do absoluto. Tudo está em movimento, num circuito de interdependências recíprocas, e, por conseguinte, tudo é dependente; tudo teve um começo, tudo terá um fim: “Mutantur enim — dizia o grande Agostinho — ergo creata sunt”. A Igreja não é exceção; a sua Tradição e o seu Magistério também não. Certamente são realidades sublimes, situadas no topo da escala de todos os valores que pertencem à ordem criada, dotadas de qualidades que dão vertigens; mas permanecerão sempre “realidades penúltimas”. O eschaton, a realidade final, é Deus e só Ele. Com frequência se recorre a uma linguagem que abala este dado certo, e se atribui a essas sublimes realidades um alcance e um significado para além de seus confins: se lhes absolutiza. A conseqüência é que elas são expropriadas de seu estatuto ôntico, fazendo-se delas um pressuposto irreal, o que lhes faz perder a sublime grandeza de sua “realidade penúltima”.

Imersa no movimento trinitário que está na origem de sua estrutura, a Igreja é e opera no tempo como sacramento de salvação. O teandrismo, que dela faz uma continuação misteriosa de Cristo, não se discute; suas propriedades constitutivas (unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade) também não, nem mesmo sua estrutura e seu serviço; mas tudo isso permanece dentro de uma realidade deste mundo; qualificada para mediar sacramentalmente a presença divina, mas sempre como e enquanto realidade deste mundo, que, por definição,  exclui o absoluto.

De tal modo que Ela se identifica em sua Tradição, da qual extrai a continuidade consigo mesma, à qual deve a sua respiração vital, e pela qual é garantida de que o seu “ontem” se torne sempre o seu “hoje”, para preparar o seu “amanhã”. A Tradição, portanto, dá a ela o movimento interior que a impulsiona em direção ao futuro, salvaguardando o seu presente e o seu passado. Mas nem mesmo a Tradição é um absoluto: ela começou com a Igreja, terminará com ela. Só Deus permanece.

A Igreja exerce um verdadeiro controle sobre a Tradição: um discernimento que distingue o autêntico do não autêntico. Ela o faz com um instrumento, ao qual não falta “o carisma da verdade”, desde que não se deixe levar pela tentação do absoluto. Este instrumento é o Magistério, do qual são titulares o Papa, como sucessor do primeiro Papa (o apóstolo São Pedro) sobre a cátedra romana; e os bispos, como sucessores dos Doze no ministério ou serviço da Igreja, por toda a parte onde são a sua expressão local. Recordar as distinções do Magistério — solene, se for do Concílio Ecumênico ou do Papa, quando um ou outro define verdades de fé ou de moral; ordinário, se do Papa em sua função específica, ou dos bispos como um todo e em comunhão com o Papa — é coisa supérflua; bem mais importante é precisar em quais limites “o carisma da verdade” é garantido ao Magistério.

É necessário dizer, em primeiro lugar, que o Magistério não é uma super-igreja que imporia seus juízos e comportamentos à própria Igreja, nem uma casta privilegiada acima do povo de Deus, uma espécie de poder forte ao qual se deveria obedecer e ponto final. Ele é um serviço, uma diakonìa, mas é também um dever a cumprir, um múnus, o munus docendi, que não pode nem deve se sobrepor à Igreja, da qual nasce e pela qual trabalha. Do ponto de vista subjetivo, coincide com a Igreja docente (o Papa e os bispos a ele unidos), em vista da proposição oficial da Fé. Do ponto de vista operativo, é o instrumento pelo qual esta função é realizada.

No entanto, muito freqüentemente se faz do instrumento um valor em si, independente, e se recorre a ele para cortar toda discussão desde sua origem, como se ele estivesse acima da Igreja e como se  não houvesse diante de si o peso enorme da Tradição a acolher, interpretar e retransmitir em sua integridade e fidelidade. É precisamente aí que aparecem com evidência os limites que o salvaguardam da elefantíase e da tentação absolutista.

Não é o caso de nos determos sobre o primeiro desses limites, a sucessão apostólica. Não deveria ser difícil a ninguém demonstrar, caso a caso, a legitimidade e, portanto, a sucessão na posse do carisma próprio dos Apóstolos que dela decorre. É necessário, ao invés, dizer algumas palavras sobre o segundo, ou seja, sobre a assistência do Espírito Santo. O método apressado hoje estabelecido é mais ou menos o seguinte: Cristo prometeu aos Apóstolos, e, conseqüentemente, aos seus sucessores, ou seja, à Igreja docente, o envio do Espírito Santo e a sua assistência para um exercício do munus docendi na verdade; o erro, assim, estaria prevenido desde o início. Certamente, Cristo fez tal promessa, mas também indicou as condições de seu cumprimento. Ora, o que se passa é que nesta maneira de reivindicar a promessa se entrevê uma grave adulteração desta: ou não se cita as palavras de Cristo, ou, se são citadas, não se lhes dá o significado que têm. Vejamos do que se trata.

A promessa é relatada principalmente em dois textos do quarto evangelista: Jo 14, 16.26 e 16,13-14. Já no primeiro, um dos limites que mencionamos ressoa com extrema clareza: Jesus, com efeito, não pára na promessa “do Espírito da verdade” – destacado em itálico por causa do artigo “especificativo” thV, que se continua, de qualquer forma, a traduzir “de”, como se a verdade fosse um atributo opcional do Espírito Santo, quando é Ele quem a personifica –, mas anuncia sua função: recordar tudo que Ele, Jesus, havia antes ensinado. Trata-se, portanto, de uma assistência conservadora da verdade revelada, e não de uma integração nela de verdades outras ou diferentes das que foram reveladas, nem de verdades presumidas tais.

O segundo dos dois textos de São João, confirmando o primeiro, desce a precisões ulteriores: o Espírito Santo, com efeito, “ensinar-vos-á toda a verdade”; mesmo as verdades das quais Jesus não fala naquele momento, porque estavam acima da capacidade dos seus (16,12). Ao fazê-lo, o Espírito “não falará por si mesmo, mas dirá o que ouvir […] receberá do que é meu, e vo-lo anunciará”. Não haverá, portanto, outras revelações. A única Revelação se encerra com aqueles aos quais Jesus falava naquele momento. As suas palavras se apresentam com um significado unívoco, relativo ao ensinamento fixado por Ele, e apenas este ensinamento. Linguagem esta que não é codificada nem cifrada, mas límpida como o sol. Poder-se-ia levantar uma objeção sobre a perspectiva da aparente novidade em relação ao que Jesus não fala no momento e que será anunciado pelo Espírito Santo, mas a delimitação de sua assistência a uma ação de guia em direção à posse de toda a verdade revelada por Cristo exclui toda novidade substancial. Emergindo novidades, tratar-se-ão de significações novas e não verdades novas; de onde o justíssimo “eodem sensu eademque sententia” de S. Vincent de Lérins. Em suma, a pretensão de forçar à assistência do Espírito Santo não importa que farfalho, quero dizer, não importante que novidade, e especialmente as que querem redimensionar a Igreja às medidas da cultura dominante e da suposta dignidade da pessoa humana, não somente é um distúrbio estrutural da própria Igreja, mas é também uma formidável rejeição dos textos acima indicados.

E isso não é tudo. O limite da intervenção magisterial está também na sua própria formulação técnica. Para que ela seja realmente magisterial, em sentido definitório ou não, é necessário que a intervenção recorra a um conjunto de fórmulas já consagrado, do qual emerge, sem nenhuma incerteza, a vontade de falar como “Pastor e Doutor de todos os cristãos em matéria de Fé e Moral, em virtude de sua Autoridade Apostólica”, se aquele que fala é o Papa; ou que emerge com similar certeza, por parte do Concílio Ecumênico, por exemplo, através das fórmulas habituais da asserção dogmática, a vontade dos Padres Conciliares de ligar a Fé cristã com a Revelação divina e a sua transmissão ininterrupta. Na ausência de tais premissas, somente se poderá falar de Magistério em sentido lato: nem toda palavra do Papa, escrita ou pronunciada, é necessariamente Magistério; diga-se o mesmo dos Concílios Ecumênicos, dentre os quais um bom número não falou de dogma, ou não falaram dele exclusivamente; por vezes, alguns até enxertaram o dogma num contexto de diatribes internas e de litígios pessoais ou partidários, e uma pretensão magisterial dentro de tal contexto seria absurda. Ainda, um Concílio de indiscutível importância dogmático-cristológica como foi de Calcedônia, que dispensou a maior parte de seu tempo numa vergonhosa luta de personalismos, de precedências, de deposições e de reabilitações, suscita uma impressão claramente negativa; não é nisso que Calcedônia é um dogma. Assim como não o é a palavra do Papa quando declara de maneira privada que “Paulo não entendia a Igreja como instituição, como organização, mas como organismo vivo, no qual todos operam um para o outro e um com o outro, estando todos unidos a partir de Cristo”; é exatamente o contrário que é verdadeiro, e sabe-se que a primeira forma institucional, exatamente para favorecer o organismo vivo, foi estruturada por Paulo de maneira piramidal; o apóstolo no topo, e depois os episcopoipresbuteroi, os hgoumenoi, os proistamenoi, os nouqetounteV, os diakonoi: trata-se de distinções de encargos e de ofícios ainda não exatamente definidos, mas são já as distinções de um organismo institucionalizado. Mesmo neste caso, que isso fique bem claro, a atitude do cristão é de respeito e, ao menos em linha de princípio, de adesão. Mas se a consciência de um crente não puder dar sua adesão à afirmação exposta acima, isso não comporta uma rebelião contra o Papa ou uma negação de seu Magistério: significa apenas que esta afirmação não é do Magistério.

Por fim, retornemos agora ao Vaticano II para nos pronunciarmos, se possível de modo definitivo, sobre a sua pertença ou não à Tradição e sobre a sua qualidade magisterial. Sobre esta última, não cabe nenhum questionamento, e esses laudatores que não se cansam nunca, há cinqüenta anos, de sustentar a identidade magisterial do Vaticano II, perdem seu tempo e fazem com que os outros percam o deles: ninguém o nega. Contudo, observadas as suas exuberâncias acríticas, um problema se impõe quanto à qualidade: de que Magistério se trata? O artigo de “L’Osservatore Romano” que citei acima, fala de Magistério doutrinal: e quem alguma vez o negou? Mesmo uma afirmação meramente pastoral pode ser doutrinal, no sentido em que pertence a uma dada doutrina. Mas se enganaria quem dissesse doutrinal no sentido de dogmático: nenhum dogma é creditado ao Vaticano II que, se tem um valor dogmático, apenas o tem por modo de reflexo, onde ele se refere a dogmas previamente definidos. Resumidamente, o magistério do Vaticano II, como se diz e rediz a todos os que têm ouvidos para ouvir, é um Magistério solene e supremo. Mais problemática é a sua continuidade com a Tradição: não porque não a tenha afirmado; mas porque, sobretudo, nos pontos chaves onde era necessário que tal continuidade fosse evidente, esta afirmação permaneceu sem demonstração.

“Sentinela, quanto resta da noite?” (Isaías 21,11). Reflexões sobre o livro de Lorenzo Bertocchi e Francesco Agnoli.

por Dom Massimo Vacchetti [1] – 30/09/2011

Esperei o lançamento deste livro por quase cinquenta anos. Conheço os autores e sei do amor pela verdade que os anima. No entanto, não é por eles que desejei ter em minhas mãos este ágil texto. ‘Sentinelas no pós-concílio’ (p. 156, Ed. Cantagalli) recolhe, pelas mãos de diferentes autores, o perfil de “dez testemunhas contracorrente”, como diz o subtítulo, dez protagonistas da vida e do pensamento católico nos anos pós-conciliares.

O ‘atraso da publicação’ se deve, entre outras coisas, a uma infeliz expressão do Beato João XXIII, quando na abertura do Concílio, proclamou que: “não sem ofensa aos Nossos ouvidos, nos são reportadas vozes de alguns que, embora acesos de zelo pela religião, avaliam, no entanto, os fatos sem uma suficiente objetividade nem prudente juízo. (…) Nos parece de ter que resolutamente dissentir de tais profetas de desgraça, que anunciam sempre o pior, como se fosse iminente o fim do mundo. No atual estado dos acontecimentos humanos, no qual a humanidade parece entrar em uma nova ordem de coisas, precisam, mais, ser vistos os misteriosos planos da Divina Providência que (…)com sabedoria dispõem tudo, mesmo os adversos acontecimentos humanos, pelo bem da Igreja” (Discurso de abertura do Concílio, 11 de Outubro de 1962).

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“Concílio Vaticano II: um Debate que não aconteceu”, por Monsenhor Brunero Gherardini.

Por DICI | Tradução: Fratres in Unum.com

Este livro é uma continuação do Concilio Ecumenico Vaticano II, un discorso da fare, que surgiu em italiano em 2009, e desde então foi traduzido para o francês, inglês, alemão, português e espanhol. Nesta obra, Monsenhor Brunero Gherardini, cônego da arqui-basílica vaticana e diretor do periódico teológico internacional Divinitas, não pára de lamentar que o debate sobre o Concílio Vaticano II não tenha ocorrido, chegando até mesmo a mostrar o porque este seria mais indispensável do que nunca hoje em dia. E acima de tudo, ele indica como este debate poderia ser aberto, dando ao leitor os primeiros elementos de uma análise rigorosa, longe de injúrias estéreis e elogios cegos.

Com a autorização amigável das edições do Courrier de Rome, publicamos aqui de antemão alguns textos particularmente esclarecedores sobre o “espírito do Concílio” e sobre o seu “contra-espírito”. Monsenhor Gherardini mostra que não se trata apenas do pós-Concílio que é responsável pela crise atual na Igreja, mas o próprio Concílio, cujo espírito continha a semente de seu “contra espírito” (gegen-Geist), que Bento XVI denuncia, atribuindo-o apenas ao pós-concílio.

O professor emérito da pontifícia Universidade de Latrão indica no que ele está próximo e no que ele se distancia da hermenêutica proposta por aquele que foi o então Cardeal Ratzinger, em sua Entrevista sobre Fé com Vittorio Messori (Fayard, 1985):

“Minhas duas publicações têm em comum com a hermenêutica de Ratzinger, e ressaltando uma rejeição do gegen-Geist (o contra-espírito do Concílio), ou seja, este julgamento absurdo do Vaticano II que deixou de levar em consideração mais de vinte séculos de história e impôs uma maneira de ver as coisas que é radicalmente diferente de toda a Tradição eclesiástica e de seu conteúdo integral”.

“Minhas duas obras não falam que este gegen-Geist apagou, ou tentou apagar, o verdadeiro ‘espírito’ do Concílio. Elas até mesmo fazem a pergunta paradoxal e provocante de se o autêntico ‘espírito’ do Concílio não está, depois de tudo, aliado ao “contra-espírito’. (p. 24)

“Assim com relação a valores tradicionais, o ‘espírito do Concílio’ foi em si mesmo um gegen-Geist, antes que isso mesmo fosse difundido pelos respectivos comentadores. O ‘espírito do Concílio’ em geral colocou o Concílio em oposição mesmo com tudo o que a Igreja até então tinha acreditado como o seu pão diário, especialmente, os Concílios de Trento e Vaticano I. Não podemos deixar de ficar impactados pela presença de várias frases, espalhadas aqui e acolá em determinados documentos, especialmente, nos parágrafos estratégicos da inovação introduzida, com o simples objetivo de garantir entre ontem e hoje uma correspondência que de fato não existe.” (p. 30)

“Não devemos imaginar que houve uma reviravolta. O Concílio Vaticano II não inovou no que tange a todas as verdades contidas no Credo e definidas pelos Concílios precedentes. O problema não está na quantidade, mas na qualidade. Não é por nada que falamos do ‘espírito’ e do ‘contra espírito’ dentro do Concílio”.

“A ruptura, antes de recair sobre determinada questões, recaiu sobre a inspiração fundamental. Um certo ostracismo havia sido decretado, mas não em direção a uma ou outra das verdades reveladas propostas como tal pela Igreja. Este novo ostracismo atacou uma certa maneira de apresentar essas verdades. Assim ele atacou um método teológico, o escolasticismo, que não é mais tolerado. Com a energia particular contra o Tomismo, considerado por muitos como ultrapassado e atualmente muito distante da sensibilidade e problemas do homem moderno”.

“Não se percebeu, nem se quis acreditar, que a rejeição de Santo Tomás de Aquino e o seu método implicaria um colapso doutrinal. O ostracismo havia começado por se fazer sutil, penetrante e envolvente. Ele não jogou ninguém ou qualquer teoria teológica porta à fora, e muito menos certos dogmas. O que ele evidenciou foi a mentalidade que em seu tempo havia definido e promulgado esses dogmas”.

“Assim ele foi uma verdadeira ruptura porque ela foi fortemente desejada, como uma condição necessária, como a única maneira que permitiria uma resposta a esperanças e indagações que até então – desde o iluminismo, ou seja – haviam permanecido sem resposta”.

“Perguntei-me se verdadeiramente todos os Padres conciliares perceberam que eles estavam objetivamente no processo de se afastarem desta mentalidade multi-secular que até então havia expresso a motivação fundamental de vida, de oração, do ensino e governo da Igreja”.

“No todo, eles propunham novamente a mentalidade modernista, aquela contra a qual São Pio X havia tomado uma posição muito clara, expressando a sua intenção de ‘instaurare omnia in Christo’, restaurando todas as coisas em Cristo’ (Efe 1:10). Assim esta foi claramente uma manifestação do gegen-Geist.” (p. 31-32)

“A mesma coisa, é difícil ignorar que tudo começou precisamente com o Concílio Vaticano II. Alguém observou que o Concílio Vaticano II poderia ser comparado ao Aeolus’ goatskin (que na lenda grega detém todos os ventos contrários). É desde o Vaticano II que este furacão a que chamamos de “o espírito do Concílio” foi deixado solto, um espírito no qual reconheci sem problema a presença de ‘contra’”.

“Sim, ‘contra’:

– contra a espiritualidade que guiou a Igreja de sua origem até 1963;

– contra os seus dogmas, reinterpretados não teologicamente, mas de uma maneira historicista;

– contra a sua Tradição, suprimida como uma fonte de Revelação e reinterpretada como a aceitação daquilo que alguém encontra no seu caminho, acima de tudo no pluralismo cultural moderno, seja ele homogêneo ou não em relação ao seu status ontológico”.

“Se somente desejamos culpar o pós-Concílio, então que seja, porque ele não é de jeito algum todo livre de erros. Mas também, não devemos nos esquecer que ele é o filho natural do Concílio, e que ele está inserido no Concílio, que nele achou os princípios nos quais então encontrou os seus conteúdos mais devastadores, ao ponto de esgotá-los”.

“Entretanto, devemos dizer algumas palavras com relação a um aspecto do aggiornamento conciliar. Isso é particularmente importante para mim, porque é uma parte da tradição Tridentina e porque está em conformidade com a realidade sacramental do sacerdote. É dele que desejo falar agora”.

“Tanto na Lumen gentium 28/1, que diz textualmente: “Os sacerdotes […] são consagrados para pregar o Evangelho,” quanto na Presbyterorum Ordinis 13/2, que voluntariamente coloca o ministério da Palavra no mais alto lugar nas funções do sacerdote, vemos uma modificação clara da tradição Tridentina, de acordo com a qual o sacerdote é ‘ad conficiendam eucharistiam.’ Evidentemente, ele está destinado a outras finalidades, mas tudo está colocado depois do sacrifício Eucarístico”.

“Porém, nos textos do Vaticano II, tudo o que não está em relação ao ministério da Palavra se torna secundário, esquecendo-se da condição do sacerdote como uma continuação mística de Cristo e, assim, a base crística do sacrificante e glorificador do Pai, que se reflete nos sacerdotes e forma a sua primeira característica”.

“Conseqüentemente, como pode ser coerente declarar que tal reviravolta radical da tradição Tridentina também é perfeitamente coerente com o magistério precedente, e constitui o material de validade infalível, irreformável e dogmática? Admito candidamente que não compreendo.” (p. 82-83)

Então, Monsenhor Gherardini oferece ao teólogo que aceitaria “abrir o debate” um método de trabalho, e ele o convida a começar com a distinção dos quatro níveis nos documentos conciliares:

“Parece-me que para começar, e sempre depois de ter considerado todas as implicações, um bom crítico deveria considerar o Concílio Vaticano II nos quatro níveis distintos:

a)      o nível genérico do concílio ecumênico como um concílio ecumênico;

b)      o nível específico como pastoral;

c)      o nível de referência a outros concílios;

d)     o nível de inovações.” (p. 84)

“O Concílio Vaticano (…) apresenta um quarto nível, o de suas inovações. Se não olharmos para cada ensinamento, mas para o espírito que os concebeu e produziu todos, poderíamos sustentar que o Concílio foi inteiramente no nível “quarto”, ou que todos podem ser encontrados neste nível. O ‘contra’, de que falei nesse lugar, posiciona o Concílio Vaticano II, quer gostemos ou não dele, no nível de inovação; e mesmo de uma inovação singular, a mais radical, que, antes de olhar para as coisas, tomou um “Garibaldi”, ou seja, uma fascinação revolucionária; e digamos que antes de chegar concretamente a rupturas surpreendentes e manifestas, o ‘contra’ foi um “não em voz alta e decidida à inspiração fundamental do magistério anterior. As inovações que foram decididas sucessivamente foram a conseqüência lógica”.

“Um leitor que não necessariamente seria um especialista, mas que teria algumas noções histórico-teológicas, será capaz de distinguir entre elas sem problema. Tomemos um ponto de vista formal, o novo conceito de ‘constitutio‘: é nesse novo ponto de que ele engendrou cópias de constituições nas quais o modo constitutivo desapareceu atrás de uma linguagem imprópria e vaga, voluntariamente privada de intenções definitórias, e freqüentemente substituída por linguagem profana; e isso, a convite do Papa Roncalli, repetidas em seguida por seus sucessores. O que é mais, este conceito abriu as portas dos elementos “constitutivos” mesmo para elementos estrangeiros. Você precisa ler Gaudium et Spes atentamente e sem idéias pré-concebidas: alguém poderá perguntar, em suma, que elo poderá existir entre a grande maioria de temas tratados, não somente na segunda parte, mas também na primeira parte deste texto, com a natureza e a atividade apostólica específica da Igreja. A novidade coloca a Igreja no nível dos Estados e suas instituições; ela torna a Igreja uma parte interveniente dentre outras, e a despe não tanto de sua função como crítica conscienciosa da história, mas sim de sua natureza de ‘sacramentum Christi‘ e da responsabilidade que segue disso com relação à salvação eterna. A Igreja assim se torna uma entidade, em diálogo com outras entidades. A Igreja promove diálogo para realizar fins que indubitavelmente são sublimes – progresso, paz – que a afasta de sua tarefa específica que é a de pregar o Evangelho, tornar real e aplicar os méritos da Redenção, e propagar o reino de Deus: em tudo, tudo que tem a ver com a vida da graça até o momento da Parusia” (p. 87-88)

Monsenhor Brunero Gherardini, Vatican Council II: a Debate That Has Not Taken Place, Ed. Courrier de Rome, 112p. A tradução francesa pode ser encomendada no início de outubro da Courrier de Rome – B.P.156 – F – 78001 Versailles ou através do e-mail courrierderome@wanadoo.fr

Os grandes desiludidos pelo Papa Bento XVI.

São alguns dos maiores pensadores tradicionalistas. Haviam apostado nele e agora se sentem traídos. As últimas decepções: o Pátio dos Gentios e o encontro de Assis. A acusação que fazem contra Ratzinger é a mesma que fazem ao Concílio: ter substituído o anátema pelo diálogo.

por Sandro Magister | Tradução: Fratres in Unum.com

ROMA, 8 de abril de 2011 – A Santa Sé confirmou oficialmente que no próximo dia 27 de outubro, em Assis, Bento XVI presidirá uma jornada de “reflexão, diálogo e oração” junto a cristãos de outras confissões, expoentes de outras religiões e “homens de boa vontade”.

O encontro se dará vinte e cinco anos depois daquele primeiro que se tornou célebre, desejado por João Paulo II. Joseph Ratzinger, na época cardeal, não participou dele. E já deu a entender que, com ele como Papa, o próximo encontro de Assis será revisado e corrigido, purificado de toda sombra de assimilação da Igreja Católica às outras confissões de fé.

Mas, da mesma forma, os tradicionalistas não o perdoaram. Alguns deles assinaram um apelo crítico. O “espírito de Assis”, segundo eles, é parte da confusão mais geral que está desintegrando a doutrina católica e que teve origem a partir do Concílio Vaticano II.

Uma confusão contra a qual Bento XVI não reagiu como deveria.

* * *

Nestes últimos tempos, no campo tradicionalista, as críticas contra o Papa Ratzinger não diminuíram, mas antes cresceram em intensidade. Refletem uma crescente desilusão com relação às esperanças inicialmente renovadas na ação restauradora do atual pontificado.

As críticas de alguns tradicionalistas se concentram, em particular, no modo com que Bento XVI interpreta o Concílio Vaticano II e o pós-concílio.

Segundo eles, o Papa se equivoca quando limita sua crítica às deteriorações do pós-concílio. Com efeito, o Vaticano II – sempre segundo o juízo deles – não foi apenas mal-interpretado e aplicado: ele mesmo foi portador de erros, o primeiro dos quais a renúncia das autoridades da Igreja a exercer, quando necessário, um magistério de definição e de condenação: isto é, a renúncia ao anátema para privilegiar o diálogo.

No plano histórico, tende a convalidar esta tese o volume recentemente publicado pelo Professor Roberto de Mattei: “Il Concilio Vaticano II. Una storia mai scritta” [O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita]. Segundo de Mattei, não se pode isolar os documentos conciliares dos homens e das vicissitudes que os produziram: desses homens e dessas manobras, cuja intenção deliberada — muito bem sucedida —  era romper com a doutrina tradicionalista da Igreja Católica, nos pontos mais essenciais.

No plano teológico, um conhecido crítico tradicionalista de Bento XVI é Brunero Gherardini, com 85 anos vigorosamente vividos, cônego da basílica de São Pedro, professor emérito da Pontifícia Universidade Lateranense e diretor da revista de teologia tomista “Divinitas”.

No ano de 2009, Gherardini publicou um volume intitulado: “Concilio Vaticano II. Un discorso da fare” [Concílio Vaticano II. Um debate a se realizar], que concluía com uma “Súplica ao Santo Padre”, na qual pedia que se submetesse a um exame os documentos do Concílio e se esclarecesse, de forma definitória e definitiva, “se, em que sentido e até que ponto” o Vaticano II esteve ou não em continuidade com o magistério anterior da Igreja.

Agora, dois anos depois desse livro, Gherardini lança um novo, intitulado: “Concilio Vaticano II. Il discorso mancato” [Concílio Vaticano II. O debate ausente], no qual lamenta o silêncio com que as autoridades da Igreja responderam a sua publicação anterior. E leva sua crítica mais a fundo.

Escreve Gherardini:

“Se desejam continuar culpando apenas o pós-concílio, podem, de fato, fazê-lo, porque, efetivamente, ele não é absolutamente isento de culpa. Mas seria necessário também não se esquecer que ele é o filho natural do Concílio, e extraiu do Concílio esses princípios sobre os quais, exasperando-os, basearam seus conteúdos mais devastadores”.

Na visão de Gherardini, pelo contrário, predomina nos altos poderes da Igreja uma cega exaltação do Concílio, que “corta as asas da análise crítica” e “impede de ver o Concílio com um olhar mais agudo e menos ofuscado”.

E os primeiros responsáveis por esta exaltação acrítica seriam justamente os últimos Papas: desde João XXIII, passando por Paulo VI até João Paulo II. Quanto ao pontífice reinante – observa Gherardini –, “até agora não corrigiu nem um ponto nem uma vírgula dessa ‘Vulgata’ que foi patrocinada pelos predecessores”: ele, que também “como outros poucos oficiais católicos rugiram realmente contra as deformações do pós-concílio, jamais deixou nem de entoar o hosana ao Concílio nem de afirmar a continuidade com todo o magistério anterior a ele”.

* * *

Outro grande decepcionado com Bento XVI é Enrico Maria Radaelli, filósofo e teológo, discípulo do maior pensador tradicionalista do século XX, Romano Amerio.

A principal obra de Radaelli é o ensaio “Ingresso alla bellezza”, de 2007, tendo nestes dias publicado a edição – no momento “pro manuscripto” e impressa em pouquíssimas cópias – de um segundo ensaio, também notável, intitulado: “La bellezza che ci salva”.

O subtítulo do novo ensaio de Radaelli sintetiza assim o conteúdo:

“A força do ‘Imago’, o segundo nome do Unigênito de Deus, que com o ‘Logos’ pode dar vida a uma nova civilização, fundada na beleza”.

E, com efeito, é este o coração do ensaio, como enfatiza no prefácio Antonio Livi, sacerdote do Opus Dei e filósofo metafísico de primeiro nível, docente na Pontifícia Universidade Lateranense.

Porém, nas cultas e vibrantes páginas de seu novo livro, Radaelli não deixa de submeter à crítica, em sua quase totalidade, a atual hierarquia da Igreja Católica, inclusive o Papa.

As decepções pelas ações de Bento XVI deriva – para Radaelli como para outros tradicionalistas – não só por ter convocado um novo encontro interreligioso em Assis, ou por ter dado vida ao “Pátio dos Gentios”, ambas iniciativas julgadas como fonte de confusão.

A maior culpa apontada ao Papa Ratzinger é a de ter renunciado a ensinar com “a força de um cetro que governa”. Em vez de definir a verdade e condenar os erros, “colocou-se dramaticamente disponível a ser também criticado, não pretendendo nenhuma infalibilidade”, como escreveu ele mesmo no prefácio de seus livros sobre Jesus.

Conseqüentemente, Bento XVI teria também ele se dobrado ao erro capital do Vaticano II: a renúncia às definições dogmáticas, em prol de uma linguagem “pastoral” e, portanto, inevitavelmente equívoca.

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De Mattei, Gherardini e Radaelli não estão sós.

O livro de Gherardini, de 2007, tem o prefácio do Arcebispo de Colombo, hoje Cardeal, Albert Malcolm Ranjith. E outro bispo, Mario Oliveri, de Albenga-Imperia, escreveu que teve de se unir “toto corde” à súplica ao Papa, com a qual termina o volume, para reexaminar os documentos do Vaticano II.

Radaelli escreve em “L’Osservatore Romano”. E tanto Gherardini como de Mattei tomaram a palavra, em dezembro passado, em um congresso, a poucos passos da basílica de São Pedro, “para uma justa hermenêutica do Concílio à luz da Tradição da Igreja”.

Neste congresso discursaram também o Cardeal Velasio de Paolis, o bispo Luigi Negri, de San Marino e Montefeltro, e Monsenhor Florian Kolfhaus, da Secretaria de Estado vaticana.

E outro bispo muito estimado, o auxiliar de Astana, no Cazaquistão, Athanasius Schneider, concluiu sua intervenção com a proposta ao Papa de elaborar um “Syllabus” contra os erros doutrinais de interpretação do Concílio Vaticano II.

Mas Dom Schneider, assim como quase todos os participantes do congresso de dezembro, organizado pelos Franciscanos da Imaculada, não considera que nos documentos do Vaticano II haja efetivos pontos de ruptura com a grande tradição da Igreja.

A hermenêutica com a qual [Dom Scheneider] interpreta os documentos do Concílio é a definida por Bento XVI em seu memorável discurso à cúria romana de 22 de dezembro de 2005: “a hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja”.

É uma hermenêutica seguramente compatível com o apego à tradição da Igreja. E é também a única capaz de vencer a contrariedade de alguns tradicionalistas acerca das “novidades” do Concílio Vaticano II, como Francesco Arzillo mostra na seguinte nota [leia a nota em espanhol aqui].

Com efeito, a linguagem “pastoral” do Vaticano II, precisamente por sua natureza não definitória, exige, com maior razão, ser compreendida à luz da tradição da Igreja, tal como o fez o próprio Bento XVI no discurso supracitado, a respeito de uma das “novidades” conciliares mais impopulares para muitos tradicionalistas, a da liberdade de religião.